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A ADPF 701 como um caso emblemático de jurisprudência neoliberal

A ADPF 701 como um caso emblemático de jurisprudência neoliberal

Por Alexandre Melo Franco Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Na tradição cristã, a Páscoa tem uma significação especial. Páscoa simboliza para os cristãos a ressurreição de Jesus Cristo, a passagem (do hebraico Pessach, a celebração do Êxodo, a libertação do Egito, “a passagem de um modo de vida a outro modo de vida”, como lembra Jean-Yves Leloup[1]) da morte à vida, como a nos lembrar da prioridade de se garantir e de aumentar a vida (“a existência digna”, nos termos do caput do art. 170, da Constituição de 1988), em igualdade entre todas e todos, como um valor ou princípio supremo.

Em pleno Sábado de Aleluia, data em que celebra o aguardo da ressureição de Jesus Cristo e toda essa simbologia, após uma semana de recordes de mortes (quase quatro mil por dia) pela pandemia do coronavírus, o Ministro Kássio Nunes Marques, do STF, profere decisão monocrática na ADPF 701 que, a pretexto de proteger a liberdade religiosa, lhe dá interpretação que contrariaria os alicerces do Estado Democrático de Direito, correndo, assim, o risco de jogar a Constituição contra ela mesma: em última análise, como buscaremos mostrar, a de uma liberdade que se oporia à igualdade.

A ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) propôs ADPF contra diversos decretos municipais que, no contexto da pandemia e das medidas sanitárias de proteção à saúde, determinaram a suspensão irrestrita das atividades presenciais religiosas em seus respectivos municípios. O cerne da argumentação, então, é que os decretos seriam inconstitucionais por violarem a liberdade de locomoção, a laicidade do Estado e o direito fundamental à liberdade religiosa.

Na decisão, o Min. Nunes Marques considerou a parte autora como legítima, mesmo que em decisão anterior, na ADPF 703, o STF já houvera considerado a ANAJURE parte ilegítima para propor ação de controle concentrado de constitucionalidade. Em verdade, a decisão do Min. Nunes Marques buscou argumentar no sentido de se admitir um distinguishing, na medida em que na referida ação buscavam-se objetivos consistentes com as finalidades institucionais da Associação, já que a ação buscava a tutela da liberdade de culto e de religião. Assim, confunde-se legitimidade com pertinência temática. Não obstante, buscar reconhecer a legitimidade da parte autora realizando uma analogia com a ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) que, segundo menciona tal decisão monocrática, teria tido a sua legitimidade reconhecida implicitamente pelo STF na ADPF 696.[2]

Para desfazermos a confusão entre legitimidade e pertinência temática é importante considerarmos que a pertinência temática é requisito subjetivo que deve ser demonstrado/comprovado por alguns entes legitimados do art. 103 da Constituição com o liame entre as suas finalidades institucionais e o ato normativo questionado no caso concreto. No caso, da legitimidade das entidades de classe de âmbito nacional deve ser cumulado o requisito subjetivo com os objetivos consistentes em saber o que é “entidade de classe” e qual o âmbito territorial que as fazem ser classificadas como “nacionais”.

Não se desconhece que o STF vem ampliando o conceito de “entidade de classe” do art. 103, inc. IX. Na decisão cautelar da ADPF 527, o Min. Roberto Barroso buscou superar a antiga jurisprudência do STF que exigia para a configuração de entidade de classe de âmbito nacional a demonstração de filiados em, ao menos, 9 estados da federação[3] e, ainda, que representasse uma classe com a filiação de membros ligados entre si pelo mesmo exercício de atividade econômica ou profissional, com aplicação analógica do art. 920 da CLT como requisitos objetivos, além da pertinência temática como requisito subjetivo. Assim, a interpretação do Min. Barroso é a de que o conceito “classe” não pode se circunscrever às atividades econômicas ou profissionais, mas abranger também membros unidos por vínculo que tenha em conta a defesa de direitos de grupos minoritários e vulneráveis.[4]

Contudo, embora ampliando a semântica de “classe”, há elementos mínimos que determinam o enquadramento de entidades como “classe de âmbito nacional”. Sob este aspecto, o STF entende que deve a entidade representar toda uma categoria homogênea e não apenas parte dela, para que se enquadre como entidade apta a deflagrar o controle.[5] Assim, a ANAJURE representa qual categoria exatamente? Os juristas ou os evangélicos?

É sob este prisma que, há pouco mais de mês, o STF considerou essa entidade como ilegítima para impugnar decretos municipais na ADPF 703/BA.[6] Naturalmente, a exigência de uma jurisprudência estável, coerente e íntegra (art. 926 do CPC) deve se aplicar ao presente caso.

Para viabilizar o conhecimento do mérito alegado, a decisão monocrática em sede da ADPF 701, proferida pelo Min. Nunes Marques, considera que a subsidiariedade não seria óbice ao enfrentamento da questão. Em virtude da profundidade da suposta violação à liberdade religiosa e de culto, assim como a profusão de diversas normas, estaria a atrair a possibilidade de abrir a via da ADPF. Contudo, haveria, aqui, um outro equívoco: a análise da subsidiariedade não perpassa pela extensão da violação à Constituição, nem assim à quantidade de normas impugnadas, mas substancialmente se haverá ou não outros meios eficazes aptos a sanarem a lesividade (art. 4º, §1º da Lei 9882/99)[7].

É relevante lembrarmos que, no contexto da pandemia, o próprio STF inadmitiu ADPF contra atos dos governos estaduais e municipais para requisitar leitos de UTI da rede privada ao argumento de que haveria outros instrumentos hábeis para sanar a lesividade no ordenamento jurídico e – neste ponto importante – eventual prestação jurisdicional do STF substituiria os administradores dos diferentes entes federativos na tomada de decisões em esfera de suas competências. Substituir-se-ia o juízo de conveniência e de oportunidade dos administradores por uma decisão jurisdicional, violando a separação de poderes. [8]

Além dessas questões preliminares, a decisão monocrática também pretendeu, ao julgar as medidas de restrição quanto a cultos presenciais como violadoras da liberdade religiosa, superar a decisão firmada pelo Plenário do STF na ADPF 672, que reafirmou a constitucionalidade dos entes federativos para adotar as medidas administrativas sanitárias adequadas para a garantia do direito à saúde no enfrentamento da pandemia, de acordo com a predominância do interesse. Nesses termos, a decisão monocrática violaria não só a própria distribuição de competências federativas, mas também a autoridade das decisões tomadas pelo Plenário do STF, não havendo qualquer mudança da situação fática e/ou jurídica que pudesse amparar uma superação da jurisprudência em tão curto espaço de tempo. E mais, não havendo na decisão questionada o enfrentamento das decisões passadas para mostrar que elas estariam errada e deveriam ser superadas ou que a hipótese constituiria questão diversa dos precedentes que, prima facie, poderiam reger o caso.

Mas, como dissemos no início, a crítica à decisão seria especialmente quanto à interpretação que ali seria feita da liberdade religiosa ou, ainda, àquilo que a ela estaria pressuposto. Ao mencionar que os decretos ao proíbem cultos, missas ou rituais presenciais solapariam a liberdade religiosa, que deve ser tutelada pelo Estado mesmo nas atuais circunstâncias, a decisão confundiria restrição e proibição de atividade.[9] Em momento algum o Estado brasileiro está perseguindo ou criando embaraços a qualquer religião: o Estado é e permanece laico, podendo cada um seguir (ou não) uma determinada crença sem que com isso deva ser prejudicado ou favorecido. O que ocorre é que atividades essenciais como ensino, por exemplo, e tantas outras sofreram restrições em favor da emergência sanitária. Ora, então a educação não é um princípio igualmente relevante? E não está sendo realizada de forma não presencial? Por que, então, a religião teria algum privilégio sobre a educação e qualquer outra atividade que causa aglomeração?[10]

No centro do argumento do Ministro estaria a defesa de uma “jurisprudência neoliberal”, que acabaria por jogar a liberdade contra a igualdade. Destaca-se, assim, a seguinte passagem do voto para indicar como jurisprudência neoliberal é incorporada na decisão: “Entendo por demais gravosa a vedação genérica à atividade religiosa, da forma como prevista em parte dos diplomas objeto da presente ação, traduzindo-se em medida atentatória a preceito fundamental consubstanciado em liberdade religiosa”[11]. Qual é o sentido de liberdade religiosa tutelada na decisão? A que se opõe essa liberdade?

A filósofa e cientista política Wendy Brown realiza uma leitura instigante sobre a ascensão da política antidemocrática na atualidade, na obra Nas Ruínas do Neoliberalismo. A atual política antidemocrática seria uma deformidade do próprio neoliberalismo. Passo importante para a imposição dessa política é, exatamente, a destruição do social. Assim, a ideia do “social” ou de sociedade foram atacados como se fossem termos sem qualquer sentido. No fundo, décadas de ataque incrementaram o risco da derrota da ideia de uma sociedade política que poderia governar a si própria, de forma igualitária.[12]

Nesse sentido, o neoliberalismo considera que as liberdades individuais e o mercado, junto com a moralidade tradicional, seriam elementos ameaçados pelos próprios poderes do Estado. Assim, demandas democráticas em prol da garantia da saúde pública (tais como as que se apresentam agora com a pandemia) são ideologicamente identificadas com o “totalitarismo”. Afastar a atuação do Estado em prol de políticas públicas de igualdade, de saúde pública, de inclusão social e econômica, é visto, assim, como necessário para uma suposta expansão da liberdade individual, nos termos de uma moralidade tradicional, nada incompatível com o discurso do mercado (supostamente) desregulamentado.[13]

Estar-se-á presente nessa compreensão, uma determinada concepção de liberdade tal como defendida por Hayek, segundo a qual esta não é limitada pela moralidade tradicional, mas moldada por ela. Os mercados, assim como a tradição, seriam ordens espontâneas que se desenvolvem sem uma razão abrangente. Nesse caso, várias tradições competiriam entre si, mas apenas aquelas que são baseadas na propriedade privada e na família patriarcal seriam capazes de se sobrepor na disputa. É a tradição que assegura um modo de vida livre sem a necessidade de organização do poder público. Como a tradição não é imposta por ninguém, é a religião que a codifica e a transmite.[14]

Assim, esse neoliberalismo disputa um ethos e é compatível com a regulamentação da vida social no sentido do fortalecimento do tradicionalismo. Na medida em que essa racionalidade neoliberal permeia a vida, cada vez mais há a contestação às políticas igualitárias, inclusivas, plurais por uma compreensão de liberdade individual que deve se sobrepor a essas exigências democráticas. E, cada vez mais, essa política antidemocrática tenta se articular para utilizar abusivamente do direito como instrumento para a imposição dessa visão de liberdade individual e de moralidade tradicional contra os ideais de igualdade.[15]

Em última análise, a liberdade de culto religioso e a liberdade individual de crença religiosa seriam inclusive instrumentalizados como mecanismo para minar a política democrática de garantia da saúde pública e de combate à pandemia. A jurisprudência neoliberal não visa propriamente garantir a liberdade religiosa, mas antes desenvolver uma política que, ao mesmo tempo, defende a moralidade tradicional na esfera pública e incorpora um discurso ideológico de mercado pretensamente desregulado que assimila as liberdades individuais (livre iniciativa, liberdade de locomoção, etc.), no sentido do desmantelamento dos princípios e das regras democráticas que organizam a vida política e social,[16] a exemplo da autonomia dos governos estaduais e municipais para a tomada de medidas necessárias à garantia da saúde pública, em meio a uma pandemia que já matou mais de trezentas mil pessoas no País.

Enfim, não é também despiciendo lembrar que o abuso da linguagem dos direitos para justificar uma moralidade tradicional, exclusivista, combinada a uma interpretação das liberdades que as opõem à igualdade, também pode jogar a própria liberdade religiosa contra ela mesma, no sentido inclusive da prevalência de determinadas concepções e práticas religiosas em detrimento de outras. A própria laicidade não pode, portanto, ser vista apenas da perspectiva do Estado ou contra o Estado, mas também como parte do pluralismo razoável (para usar a expressão de John Rawls e de seu liberalismo político) das e entre as diversas perspectivas religiosas e não religiosas.

Ao contrário do tradicionalismo (mas também do neoliberalismo), a liberdade individual não se sobrepõe à igualdade e, assim, à garantia da saúde e da vida, mas pressupõem-se mutuamente; e a própria liberdade religiosa não deve usada para desmantelar as regras democráticas, sob o risco de configurar abuso e não um direito.


Notas e Referências

[1]Leloup é, aliás, filósofo, teólogo e psicólogo. Texto disponível em https://citbrasil.wordpress.com/2016/03/26/pascoa-jean-yves-leloup/

[2] Decisão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nunes-marques-cassa-veto-autoridades.pdf, acesso em 4 de abril de 2021.

[3] STF, ADI 912, rel. Min. Néri da Silveira, j. 04.08.1993.

[4] Decisão monocrática disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nunes-marques-cassa-veto-autoridades.pdf, acesso em 4 de abril de 2021.

[5] STF, ADI 5320 AgR, Rel. Min. Celso de Mello,  DJe de 7/12/2015.

[6] STF, ADPF 703/BA, rel. Alexandre de Moraes, j. 17/02/2021.

[7] Como, igualmente face à mesma associação e sobre o mesmo objeto também decidiu o STF há um mês, na citada ADPF. 703.

[8] STF, ADPF 671 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 30/11/2020.

[9] Como, inclusive o fez o Presidente da República na petição inicial da ADI 6764. Cf. BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A ADI 6.764 como ‘canto da sereia’. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-25/opiniao-adi-6764-canto-sereia, acesso em 04 de abril de 2021.

[10] Há um ano Lenio Streck, já chamava a atenção sobre como atividades religiosas não poderiam ser enquadradas como atividades essenciais: STRECK, Lenio. Atividade religiosa é serviço essencial? Mateus, 6, 5-8, diz que não! CONJUR, 28.03.2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/streck-atividade-religiosa-servico-essencial-mateus-nao.

[11] Decisão monocrática disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nunes-marques-cassa-veto-autoridades.pdf, acesso em 04 de abril de 2021.

[12] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. SP: Politeia, 2019.p. 37-40.

[13] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. cit. p 75 e ss.

[14] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. cit. p. 121-123.

[15] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. cit. p. 131-133.

[16] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. cit..p. 153-155.

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Artigo publicado originalmente no Empório do Direito.

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