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A desconstrução do pacote Moro

A desconstrução do pacote Moro

A aprovação de uma versão muito mais civilizada, democrática e constitucional do intitulado ‘Pacote anticrime’ representou uma vitória diante do grave retrocesso proposto pelo Ministro Sérgio Moro. Importante recordar que a proposta inicial era a obra de um homem só, elaborada por ele, à la carte, conforme a sua microvisão do sistema penal. Não houve uma comissão plural, não existiu debate, era a proposta dele, do direito penal, processual penal e execução penal que ‘ele’ queria. Desconsiderava a existência dos projetos de Código de Processo Penal, Código Penal e Lei de Execuções Penais, todos em tramitação há anos.

Especificamente na dimensão processual penal, precisaríamos de um código inteiramente novo, conforme a Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos, e não mais de uma reforma pontual (como as inúmeras feitas desde 1941) que só serviria para agudizar a crise, gerar ainda mais inconsistência e incoerência sistêmica dessa verdadeira colcha de retalhos que temos, um verdadeiro frankenstein jurídico. Sem embargo, é preciso reconhecer que alguma reforma viria e que diante do cenário que se apresentava, houve uma significativa redução de danos à democracia com o texto final aprovado na Câmara.

Louvamos, pois, os bravos, combativos e corajosos deputados Marcelo Freixo, Paulo Teixeira, Orlando Silva, Fábio Trad, Margarete Coelho, Lafayette Andrada e Paulo Abi-Ackel.

Souberam honrar a nobre função que abraçaram e não se deixaram intimidar pela pressão das milícias digitais e até mesmo de “colegas” que preferiram se esconder na conveniência do silêncio ou no espaço confortável das críticas cheias de adjetivos e de virulência.

A comissão conseguiu afastar o maior e mais grave retrocesso civilizatório: o plea bargaining. Aprovar uma ampliação do espaço negocial como proposto pelo Projeto Moro representaria o fim do processo penal e conduziria ao agravamento do superencarceramento, com foco especial nos clientes preferenciais do sistema. O ultrapassado e inquisitório processo penal brasileiro não comporta um espaço negocial sem limite de pena, a infantil americanização proposta por Moro, em que o Ministério Público poderia negociar uma pena com o corrupto, mas também com o traficante e mesmo com o estuprador. Imagine-se o diálogo: temos prova de sobra de que o senhor é o autor do estupro, temos DNA, reconhecimento, etc. Poderíamos pedir uma condenação a 12 anos de prisão, mas se o senhor confessar, fechamos em 6 anos no regime semi-aberto, pode ser? Claro que sim! E a vítima, precisa concordar? Não, ela nem fala. O Pacote Anticrime não deu espaço algum para a vítima nessa negociação.

Mas se a negociação beneficia o criminoso confesso, é o martírio do inocente. Acusações abusivas, prisões cautelares utilizadas como instrumento de tortura e coerção (em um sistema carcerário medieval e dominado por facções), ameaça de penas elevadas, enfim, todo um rosário de instrumentos de tortura podem ser utilizados no plea bargaining para fazer com que a tal ‘voluntariedade’ dos acordos seja puro golpe de cena, mera retórica ilusória para sedar os sentidos de incautos. Sem desconsiderar o sábio conselho de Dominique Lacordaire, tão adequado neste momento: “entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, a liberdade oprime e a lei liberta”. Obviamente que na relação entre desiguais, Estado acusador x particular acusado, a liberdade negocial é ilusória e opressiva, cabendo a lei demarcar o limite do poder de punir . Um freio contra o abuso.

E a negociação no processo penal é como um remédio forte, que se bem ministrado, pode salvar o paciente, mas se abusarmos da dose, vira veneno e mata. Moro estava propondo a dose letal para a realidade brasileira, que felizmente ficou reduzida, no projeto aprovado, ao acordo de não persecução penal, para crimes em que a pena seja inferior a 4 anos. Com isso, se negocia dentro de um marco civilizado, evitando impor pena privativa de liberdade sem o devido processo.

Mas, além de afastar o ‘ovo da serpente’, a comissão conseguiu outros importantes avanços, como inserir – finalmente e após décadas de discussão – a figura do juiz das garantias. É óbvio que o juiz que participa da investigação preliminar, decretando a interceptação telefônica, a quebra do sigilo bancário, a busca e a apreensão e finalmente uma prisão preventiva, roteiro tão comum atualmente, está contaminado e não pode julgar. É o imenso prejuízo que decorre dos pré-juízos, como leciona o Tribunal Europeu de Direitos Humanos desde 1982 (caso Piersack, De Cubber e tantos outros). Hoje o juiz brasileiro já entra contaminado no processo penal, inexiste originalidade cognitiva, a imagem mental já está formada antes mesmo de a denúncia ser recebida. Nossa fase processual é puro faz-de-contas, pois tudo já está decidido ex ante, diante dos graves prejuízos cognitivos (efeito primazia e teoria da dissonância cognitiva, por exemplo, explicam muito bem isso). Somos, em termos de processo penal, o país mais atrasado da américa latina, pois perdemos o movimento das reformas da década de 90 e do início dos anos 2000. Mas precisamos correr atrás desse prejuízo.

A comissão foi além, consagrou institutos importantíssimos, como a cadeia de custódia da prova (crucial para se ter controle epistêmico), uma melhor regulamentação das prisões cautelares e, principalmente, conseguiu inserir no CPP a audiência de custódia. É um avanço civilizatório digno de nota, que começa com o empenho do Min. Lewandowski no CNJ para implantação e aprovação da Resolução 213/2015, mas que precisava – para melhor eficácia – ser recepcionada pelo Código de Processo Penal.

As alterações nas regras sobre prisão preventiva, com requisitos mais claros e objetivos, sinalizam para a correta delimitação dessa medida cautelar grave aos casos indiscutivelmente necessários.

Buscou-se corrigir o uso manipulado desse instrumento como verdadeira antecipação disfarçada da pena, mediante a exigência da demonstração motivada da contemporaneidade da medida, pressuposto defendido por toda a doutrina e desprezado pela jurisprudência medieval. É sempre necessário lembrar que a prisão preventiva atinge o status libertatis do cidadão presumido inocente, antes da formação definitiva de sua culpa, e encarcerado em um sistema prisional indigno, reconhecido como inconstitucional pelo STF e condenado pelas cortes internacionais de direitos humanos.

Também de grande significado as mudanças no modelo da delação premiada, como por exemplo a exigência óbvia de procedimentalização e formalização, com a obrigação de se iniciar a partir de uma proposta escrita do “candidato” à colaboração, para que o conteúdo da colaboração não possa ser ajustado, ampliado ou restringido durante uma negociação.

Além disso, evoluiu-se de modo notável em direção a um processo penal de tutela aos direitos e garantias fundamentais com a regra de que as palavras do delator não podem isoladamente dar origem a denúncias e prisões, corrigindo absurdos e excessos – alguns de finalidade claramente política – reiteradamente constatados ao longo das grandes operações nos últimos anos.

Foi derrotada, ainda, a proposta esdrúxula de mudança da legitima defesa, que efetivamente aumentaria ainda mais a violência contra uma parcela vulnerável da população, especialmente os jovens negros. Enfim, diante de um ambiente completamente adverso – contaminado pelo discurso fácil do punitivismo rasteiro – essa foi a reforma possível, longe do ideal, mas também longe da consagração do discurso autoritário da proposta salvacionista. Foi um avanço democrático e civilizatório.

Artigo publicado originalmente em O Estado de São Paulo e Consultor Jurídico.

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