Por Renato de Mello Jorge Silveira e Marina Coelho Araújo
Superar os entraves para implantar o novo instituto é o trabalho de tradução do Supremo, permitindo que línguas distintas encontrem um denominador comum
Na construção bíblica, logo após o evento diluviano, o intento dos povos na construção de uma torre que buscava alcançar os céus teria feito com que Deus causasse a confusão da humanidade, estabelecendo línguas distintas entre os homens. A partir de então, estes não mais se entenderam. Babel nos vem à memória quando da análise das colocações entre os vários interesses envolvidos no julgamento sobre a constitucionalidade do chamado juiz de garantias.
Criado pela Lei n.º 13.964/2019, o instituto prevê a divisão entre a função judicante na investigação e na instrução processual. Assim, o magistrado que atua ao longo da investigação – decidindo por medidas cautelares de prisão, de busca e apreensão, de indisponibilidade de bens, todas elas prévias ao processo – não será o mesmo a julgar a ação penal, decidindo pela absolvição ou condenação. Tudo isso com o objetivo de incrementar a imparcialidade. No caso de decidir pela prisão prévia à produção de provas, o juiz forma convicções que são difíceis de serem desenraizadas, apesar de, muitas vezes, tais convicções depois não se confirmarem com as provas produzidas em juízo. Essas duas funções, importante que se diga, já existem no sistema brasileiro. Não há criação de absolutamente nada. Apenas divisão de tarefas entre juízes=
Desde sua criação, o instituto vem sofrendo objeção por diversas áreas, instituições e grupos, sob o argumento preponderante de que haveria acréscimo de custos à função jurisdicional. Outras tantas entidades uniram-se na defesa dele. Embora possa existir convergência em alguns pontos – com os quais todos eventualmente concordem –, em tantos outros parece haver línguas, gramáticas e expressões absolutamente divergentes, a aparentar que se está em sistemas e realidades diversas. Uma genuína Babel.
Não se discute a existência de tendência internacional a favor dessa divisão de tarefas. É uma evolução esperada. Mas como e de que forma fazer? A legislação criou o instituto, mas é essencial que a estrutura judiciária se organize para sua implantação. Afora discussões técnicas, como vício de iniciativa ou limitações de ingerência no contexto do Judiciário, o questionamento principal parece resumir-se ao potencial custo da nova sede de avaliação da investigação.
Não se trata de criação de instância. É a busca de distanciamento e organização da função judicante, em prol de maior imparcialidade e maior racionalidade das respostas penais do aparato estatal. O magistrado que venha a decidir a causa criminal não mais se imiscuiria na investigação em si. Entretanto, a ponderação se isso gera maiores e significativos custos é bem mais complexa, envolvendo também a vontade de aperfeiçoar o sistema de Justiça.
O estabelecimento do juiz de garantias pode gerar altos custos? Potencialmente sim, caso se imagine, por exemplo, a necessidade de contratação ou duplicação dos atuais juízes de primeiro grau. Mas isso não é necessário. A realocação de funções e de processos, em comarcas distintas, também poderia gerar enormes custos – de diárias e encargos extras –, se não for organizada de forma a cumprir a decisão legislativa tomada. Em estudo para implementação do instituto, o Conselho da Justiça Federal (CJF) avaliou diversos cenários possíveis. Não existe fórmula única de implementação. Neste processo, é necessário compreender as várias facetas da discussão, levando em conta as particularidades dos muitos rincões do Brasil. De toda forma, nenhuma dificuldade pode significar que a vontade do Legislativo deva ser ignorada.
Parece alvissareira a lembrança de que, na inicial previsão dos juizados especiais federais, foi necessário enfrentar entraves e condições não ideais de aplicação. E soluções foram encontradas. A organização da Justiça deve superar as dificuldades conceituais do momento. E nunca merece ser vitimada com informações deturpadas por compreensões erráticas. Se reinterpretações e modulações forem necessárias para a concretização da nova distribuição de funções, elas não podem suplantar a escolha legislativa pela criação do instituto em todo o País, como reformulação do sistema processual criminal e maior aproximação do sistema acusatório do processo.
Planejar a implantação discernindo e respeitando as diversas realidades do País não significa deixar a cada Estado federativo a escolha – ou não – pelo juiz de garantias. Nacional, o instituto foi criado para incrementar o aparelho técnico-jurídico do País. E assim merece ser reconhecido pela Corte constitucional.
As vantagens de um sistema moderno e mais funcional, a fortalecer as condições para a imparcialidade do juiz, já foram decididas pelo Poder Legislativo brasileiro e devem ser irrestritamente defendidas. Nada há de inconstitucional no instituto. Toda novidade acarreta entraves. Superá-los – e não sucumbir diante deles – é o honroso trabalho de tradução do Supremo Tribunal Federal (STF), permitindo que línguas distintas encontrem um denominador comum. O aperfeiçoamento do sistema de Justiça.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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