“Para ser grande, sê inteiro. Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes”. (Fernando Pessoa)
O país volta as suas atenções para o julgamento do apelidado men- salão. Nos anúncios de TV, é como se fosse a continuação de uma no- vela. Parte da imprensa começa a criar um clima para as sessões midiáticas. Grupos discutem o tema atentos ao que dizem ser o “chama- do das ruas”.
Diante da comoção, nós, operadores do direito, perguntamos: É possível julgar um processo criminal com o olhar voltado para a chamada voz das ruas? É possível a interpretação da Constituição serfeita com os olhos fechados e os ouvidos abertos aos ecos populares?
A resposta é simplesmente não! Venda dos os olhos, aguçam-se os ouvidos e, não raro, o volume das vozes perturba a compreensão, turba A isenção, fulmina a imparcialidade.
Seria um atentado ao Estado democrático de Direito. É estarrecedora a hipótese. Numa consulta popular, seriam aprovadas a pena de morte, a castração química, o direito à tortura. O povo sempre clama pela mais dura e pesada “justiça” —contra o outro, claro.
Os movimentos de rua são um Alento e um alerta. Existe uma consciência cívica que se difunde pelo país. Essa é a beleza da democracia.
O que antes era uma apatia tornou-se uma arma de mudança. A fadiga não levou, felizmente, ao esgarçamento da consciência nacional. Antes a despertou.
O Congresso Nacional tem que ouvir a voz da rua. O Executivo, redirecionar a sua agenda. E o Judiciário há que tornar-se mais célere e mais aberto.
Não cabe, porém, a este Poder escrever a Constituição, mas interpretá-la. No processo penal, o Judiciário não pode rasgar as provas e julgar de acordo com a tal vontade popular, que não conhece o processo nem o que foi ou não provado nos autos. A população conhece os processos rumorosos a partir das lentes e páginas que os retratam. E que nem sempre são isentas.
O devido processo legal é o parâmetro que garante a todos a certeza de que não seremos injustiçados, nem nós nem nossos adversários.
Todo cidadão tem que ouvir e respeitar o sentimento que brota demaneira tão intensa da população. Uma sociedade mais justa, plúrima e igual é o sonho que acalenta os homens desde sempre.
A voz do Supremo é que será ouvida nas ruas, não o contrário. O povo sempre clama pela mais dura “justiça” —contra o outro, claro
O que se espera neste momento de reflexão é que cada Poder, cada grupo social, cada um de nós cumpra seu papel de sujeito e não de objeto do sistema. Há que se exigir, gritar, reivindicar, mas também há que se respeitar institutos que foram arduamente consolidados em nossa ainda tênue democracia, tais como o devido processo legal, a presunção de inocência, a ampla defesa, a não condenação no processo penal por responsabilidade objetiva.
O pior juiz é o covarde, aquele que não tem coragem de julgar de acordo com sua consciência. É o que cede às pressões e não honra a toga que veste.
Do Supremo Tribunal Federal, espera-se que se faça ouvir e tenha voz própria, pautada na análise isenta e justa dos casos, corporificada nas linhas e letras da sentença. Seja ela qual for, terá nosso respeito.
A voz do Supremo é que será ouvida nas ruas, não o contrário. Nesse julgamento, espera-se antes a isenção da toga, a responsabilidade de honrar as tradições da Corte e o compromisso com os princípios constitucionais e humanísticos do que a tal voz das ruas.
Essa voz, embora deva sempre nos levar à reflexão, não pode pautar nossas consciências nem subverter a verdade. Porque, quando ela se calar, o silêncio será insuportável. Que os donos das vozes, aqueles que se manifestam nas ruas, saibam que, como no caso do moleiro alemão, há juízes em Brasília.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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