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A voz

A voz

“Um povo que elege corruptos,
impostores, ladrões e traidores,
não é vítima.
É cúmplice!”
George Orwell

Acordei no meio da noite, sobressaltado. Notei estar completamente empapado de suor e com uma desconfortável taquicardia. Uma angústia indefinida me apertava o peito. À minha frente uma janela enorme, redonda, deixava Brasília aos meus pés. Percebi estar em um quarto de hotel e minha visão, privilegiada, permitia ver boa parte do Eixo Monumental.

Olhei a praça dos 3 Poderes e percebi, atônito, perplexo, que os prédios do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal não estavam nos seus lugares. O Palácio do Planalto reinava sozinho à esquerda da praça. Uma sensação de pânico me deixou paralisado. Com esforço, abri a geladeira para beber algo. A luz amarelada me apontou 2 livros em cima da escrivaninha.

Um deles, capa dura, tinha apenas o título estampado: 2020. Sem nenhuma outra identificação. Abri, ávido. Todas as páginas estavam em branco. Nenhuma foto, nenhum texto, nada que justificasse a qualidade daquela publicação em um papel especial e com um brilho diferenciado. O objetivo parecia ser mesmo destacar o nada, ressaltar o vazio.

Abri o outro, com certo receio, e era um livro em cuja capa o título estava em letras disformes e embaçadas, claramente de maneira artística, para dar uma impressão nauseante: “O FUTURO CHEGOU. DEUS ACIMA DE TODOS”. Folhei com certa sofreguidão e eram fotos, de muito boa qualidade, de aldeias de índios cercadas como se fossem parques de diversão, grandes empreendimentos imobiliários na Amazônia e propaganda de vários projetos. Em um deles, a proposta era de uma construtora: “Em cada livraria construiremos um templo, uma igreja”. Outro explicava os lugares em que seria possível trocar 3 livros por uma arma. Propaganda de pontos de ajuste de aparelhos de computadores e celulares, com a advertência que o controle era obrigatório ao final de cada mês. Uma matéria sobre clínica para recuperação de homossexuais também prometia um tratamento revolucionário para branqueamento de pele.

Tive o primeiro pasmo existencial, como diria Pessoa, e me lembrei de Mia Couto nos Versos do Prisioneiro:
“Mãos frias
sobre os ferros frios.
O meu corpo não me reconhece,
o meu ser perdeu o espelho.
De que lado está a cidade?
Para que as grades
Se já não sei
de que lado dorme a cela?
Estes ferros meus,
Meu corpo mineral
Estranham, em mim,
as mãos
que já foram minhas”

De todos os projetos anunciados, um tinha um destaque especial, o anúncio de que, em breve, teríamos o maior exército do mundo, todas as escolas militarizadas e as Universidades com cursos única e exclusivamente voltados para áreas técnicas. E uma explicação acerca da desnecessidade de certos cursos, devido à proibição de salas de espetáculo, de teatro, ao controle das produções artísticas e de qualquer produção científica. Enfim, um mundo no qual pensar era sinônimo de supérfluo.

Me aproximei da mesinha de cabeceira e, ao lado da velha Bíblia, estava uma arma, uma pistola. Percebi que a arma estava amarrada em uma estrutura e que poderia ser solta, se fosse depositada uma moeda de 1 dólar. A munição seria disponibilizada com outro dólar. Uma frase me chamou a atenção: “Use com moderação”.

Quase instintivamente peguei o telefone e liguei para o Supremo, para me certificar daquela visão da praça de 1 Poder. Uma voz metálica disse que o número não existia mais. Liguei para o Congresso e a mesma voz me transferiu para o Palácio do Planalto. Quem atendeu não sabia conversar, estava proibido de dar informação e me pareceu um robô.

Resolvi ligar para o Ministério Público Federal e fui transferido para Curitiba. A mesma voz, só que com o inconfundível sotaque curitibano, avisava que tudo estava sendo gravado e poderia ser usado contra mim.

Outra vez fui levado a Pessoa, no Livro do Desassossego:
“Tenho a náusea fisica
da humanidade vulgar,
que é, aliás,
a única que ha.
E capricho, às vezes,
em aprofundar esta náusea,
como se pode provocar
um vômito para aliviar
a vontade de vomitar“

Imediatamente, liguei para alguns jornais e revistas. Em todos a mesma voz metálica me repassava para uma central de controle, onde eu deveria deixar meus dados e justificar o porquê da chamada. Ainda querendo não acreditar, resolvi ligar o número de um amigo escolhido aleatoriamente, ele atendeu e me disse, nervoso: “Não podemos nos falar diretamente, ligue no número central e peça para transferir”. Desliguei em pânico e, quase infantilmente, liguei para minha casa e a mesma voz metálica atendeu perguntando qual era o meu número. “Número?”, indaguei. “Sim, sem o seu número você não existe, não tem registro”, disse a voz. E me avisou que, em não existindo registro nenhum sobre mim, eu não tentasse novamente nenhum contato. A ligação foi então transferida para uma central na qual se ouvia o hino nacional. Reconheci a música e demorei a notar que a letra do hino era cantada em inglês. Tentei sair para a rua, mas na porta trancada do quarto do hotel estava um aviso dizendo que o período de recolhimento era das 22 às 6 horas. Deitei na cama e liguei a TV, apenas um canal funcionava e, estranho, passava um filme mudo. Mesmo na ficção, percebi: eles tinham medo da voz. Adormeci para esperar o dia raiar e a porta abrir às 6 horas. Dormi com a certeza que pela manhã seria a hora de descer à rua e começar a gritar.

Me apeguei a Rainer Maria Rilke:
“Todos caímos.
Cai aquela mão.
E olha as outras:
há quedas também.
No entanto há alguém
que, com suaves mãos,
todas as quedas detém”

Gritar. Era o que me restava. Voltar a ter voz.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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