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As encruzilhadas do processo: como explicar a metateratologia?

As encruzilhadas do processo: como explicar a metateratologia?

Cabe ao advogado impetrar quantos HCs forem precisos para fazer cessar a flagrante ilegalidade, com a esperança de que alguém — seja o robô, o estagiário, o assessor ou o próprio magistrado — faça a análise com cuidado.

1. Prolegômenos para explicar o contexto de uma ficção da realidade… ou da realidade da ficção?

Imaginemos um cidadão preso cautelarmente no interior do interior (mas se quiser, pode ser em cidade grande). O delegado e/ou o promotor invocam com um patuleu (ou choldréu) qualquer e o juiz decreta a preventiva. Suponhamos que não haja provas ou que a prova tenha sido construída de forma ilícita (cabível a tese dos frutos da árvore envenenada). O advogado tenta a liberdade junto ao juiz. Não consegue. O juiz nega, dizendo que “há clamor social” ou usa outro argumento como “a gravidade do crime” (que o STF já disse não ser suficiente para a custódia; falo da gravidade em abstrato) etc. Ou até argumentos como “o paciente não logrou demonstrar que não esteve no local do crime…”, invertendo indevidamente o ônus da prova.

O causídico impetra, então, um Habeas Corpus no Tribunal de Justiça. Pede liminar. Leva dez a 15 dias para ser apreciada e é negada (claro que às vezes é mais rápido). A liminar é submetida à Câmara. O causídico faz sustentação oral. Perde por três a zero.

O que faz o causídico? Único caminho é um Recurso Ordinário para o Superior Tribunal de Justiça. O Recurso Ordinário levará mais de 30 dias só para sair do TJ para o STJ. Só resta um caminho, que é tentar um HC junto ao STJ. Terá de juntar o protocolo e cópia do RO e pedirá uma liminar. Afinal, seu cliente está na cadeia em longínqua cidade (ou na capital).

2. E o tempo passa…

E o tempo vai passando. O relator no STJ leva duas semanas (ou mais) para decidir. O causídico, sem dinheiro — seu cliente no máximo pagou pela viagem até a capital do estado — não poderá ir ao STJ explicar o caso ao ministro relator. Afinal, Brasília é quase uma ilha. E longe. Embora bem atendido, provavelmente sua Excelência (ou um assessor) lhe diria que a instrução está em andamento ou que não é possível conhecer do HC porque pende de tramitação do RO. Ou que existe a Súmula 691.

O advogado alegará “que há um direito fundamental em jogo”, “prova ilícita” e assim por diante. Pode citar autores de processo penal, direito constitucional. Mostrar, por exemplo, que a ação penal nem deveria existir, porque a prova é ilícita. E o relator poderá dizer: “— Doutor, isso é mérito. Discutir prova ilícita não é possível em sede de HC” ou “pelo princípio da confiança no juiz da causa”…. Ou “a instrução está em andamento e corre normalmente…”.

3. A encruzilhada dos caminhos que se trifurcam

O causídico, então, tem três caminhos: (1) espera pelo julgamento do Recurso Ordinário, que provavelmente será julgado quando seu cliente estiver cumprindo pena e já tiver progredido de regime; (2) esperar o julgamento do HC na Turma, que provavelmente não conhecerá do writ exatamente porque há RO a caminho (ou outro argumento); ou o próprio ministro relator julgará de forma monocrática à base de uma controversa pacificação do tema na corte, impossibilitando o manejo de novo HC para o STF, obrigando a defesa a interpor Agravo Regimental e esperar talvez meses para ser julgado; (3) rumar ao Supremo Tribunal Federal e buscar superar a famosa Súmula 691, pela qual o STF não pode conhecer de HC impetrado contra decisão do relator do STJ que indefere liminar. Um parêntesis: é tão “boa” essa Súmula que nem o Supremo acredita nela… porque, se acreditasse mesmo, já a teria transformado em vinculante.

Mas, sigamos com o périplo do causídico na república dos bacharéis, dos milhares de livros de direito (agora apareceu um novo, Direito Constitucional para Ninjas!), dos quase 200 cursos de pós-graduação e do neo-jurisprudencialismo que já tomou conta do direito. Já não se ensina “direito”. Ensina-se “teorias políticas de poder”.

Sigo. O causídico sabe que o STF só supera a Súmula 691 em três hipóteses: flagrante ilegalidade, abuso de poder ou teratologia. Em última análise, eis o dilema hamletiano: existe hipótese de HC que já não seja de flagrante ilegalidade ou abuso de poder? Já com relação à terceira hipótese, o que seria isto — a teratologia? Difícil.

Vejam o imbróglio e o fracasso do processo penal e do direito em geral: para o paciente “ganhar” o HC, terá de torcer para que o STF não conheça do writ, mas, de forma discricionária, conceda-lhe de ofício, algo como a concessão de uma graça pelo Lord Chanceler no tempo da criação da equity inglesa. Ou não é assim?

4. Na busca de uma meta teoria acerca da metateratologia

Traduzindo isso: para além do malabarismo processual, nosso sistema criou uma metateratologia, isto é, uma teratologia de segundo nível, representada pelo fato de que, para que um direito violado possa ser reconhecido, deve a Suprema Corte não conhecer o remédio heroico (nome que se dá ao habeas corpus) para poder dizer que houve ilegalidade, abuso de poder ou teratologia.

Explico de novo: o HC é para corrigir tudo isso, só que, para corrigir, deve-se não… conhecê-lo. Aquilo que você pede no STJ (conhecimento), agora é condição para ter uma chance (não-conhecimento). Acham que não é assim? Leiam o HC 122.670, do STF.

5. O ajuste epistemológico das liberdades: excesso de HCs ou excesso de abusos?

Passados tantos anos, com tanta gente tanta atuando no direito, com tantas teses, dissertações e um direito processual cada vez mais jurisprudencializado (o direito no Brasil é, ao fim e ao cabo, o que os tribunais dizem que é; ou seja, o realismo jurídico triunfou e os causídicos e professores poucos sabem disso), não conseguimos construir um remédio para restabelecer a liberdade de alguém que foi ilegalmente encarcerado nos confins de Pindorama. Veja-se o caso do rapaz que foi condenado a 7 anos e meio por estar com 1,5 gramas de maconha, cujo processo fez um périplo e agora está no STF. Isto porque as instâncias anteriores falharam.

O que é liberdade? Há muitos processos? Sim. A solução, então, é cortar o Habeas Corpus, fazendo uma espécie de ajuste-epistemológico-fiscal-das-liberdades”? Ora, se há processos em demasia, especialmente Habeas Corpus em excesso, não seria porque há abusos em excesso? Fosse diferente e não haveria tantas concessões de liberdade, mesmo com a Súmula 691, pois não?

Numa palavra final: cabe ao advogado impetrar quantos HCs forem precisos para fazer cessar a flagrante ilegalidade, com a esperança de que alguém — seja o robô, o estagiário, o assessor ou o próprio magistrado (independentemente de qual instância ou STJ ou STF) — faça a análise com cuidado e veja que, de fato, há um direito fundamental em jogo. Das duas, uma: ou o causídico será criticado por impetrar, uma vez mais, HCs em demasia ou irá obter êxito, não sem antes ouvir uma “lição” de como HCs não podem substituir recursos ordinários ou outro argumento instrumentalista para, ao fim, conseguir a almejada concessão da ordem, ainda que o tribunal não tenha conhecido da sua impetração.

Mas a advocacia, já disse alguém que todos sabemos, é para os fortes! E como é! Stoik Mujic! Advogado é como o camponês estoico, da historinha que já contei tantas vezes.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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