A medida provocou reações de governadores pelo país. Cláudio Castro (PL), do Rio de Janeiro, prometeu ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a medida, enquanto Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, e Ibaneis Rocha (MDB), do Distrito Federal, também criticaram o texto.
— É um decreto mais publicitário do que efetivo. Isso (as medidas) já são normas nas forças policiais, que é o ‘uso progressivo da força’. A novidade é que coloca os repasses do Fundo de Segurança ligado a esse decreto e diz que mais regras serão detalhadas, o que é o medo das secretarias de segurança: quais serão essas regras? — afirma o deputado estadual Tenente Coimbra (PL-SP), da bancada da bala da Assembleia Legislativa de SP (Alesp).
— Entra também em uma briga jurídica: a federação tem competência sobre as PMs? Usam de chantagem para fazer pressões a agradar os governadores parceiros — diz Coimbra.
Nas redes sociais, o deputado estadual Major Meca (PL) afirmou que o decreto “dá aos bandidos a vantagem de atirar primeiro na polícia”, enquanto o Capitão Telhada escreveu que “a bandidagem está em festa”. O GLOBO pediu um posicionamento ao vice-governador, Felício Ramuth, que está no cargo interinamente, que não se manifestou.
Especialistas ouvidos por O GLOBO, porém, defendem que o decreto, ainda que não contemple novidades em relação ao que já consta nos protocolos adotados pela Polícia Militar de São Paulo, é importante para reforçar e regulamentar o uso da força no país como um todo. Eles também lembram que, mesmo que as regras já estejam contempladas dentro da PM, os casos de abuso policial são reincidentes.
O decreto ainda será regulamentado e detalhado pelo governo federal. Após as declarações contrárias de governadores, o Ministério da Justiça deve acelerar a regulamentação, antes prevista para 90 dias.
O texto prevê que agentes policiais só devem usar armas de fogo em último recurso, em caso de risco pessoal ou a terceiros e define que os recursos de força só devem ser empregados quando outros de menor intensidade não forem suficientes. Determina ainda que os profissionais atuem sem discriminação por raça, orientação sexual, religião e outros aspectos.
Outro ponto é que quando o uso da força resultar em ferimento ou morte, um relatório circunstanciado deve ser elaborado. A medida também dá diretrizes para a capacitação dos profissionais de segurança pública, além de estabelecer transparência pública para dados que tratem do uso da força e mencionar o fortalecimento da atuação das corregedorias e ouvidorias dos órgãos de segurança pública.
O repasse dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados será atrelado ao cumprimento dessas recomendações. O decreto cria ainda o Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força, que deverá monitorar o avanço da implementação das políticas descritas no decreto.
No grupo de WhatsApp dos deputados da bancada da bala da Alesp, o decreto federal foi taxado de vazio e inócuo e visto como uma forma de controlar os repasses do Fundo para os estados.
Na Câmara Federal, deputados paulista ligados ao governo de São Paulo, como a parlamentar Rosana Valle, do PL, também criticaram a medida. Membros da bancada da bala no Congresso preparam uma contraofensiva ao decreto, segundo apurou o GLOBO (veja mais abaixo).
— É uma chantagem financeira. É atribuição dos estados fazer a gestão da segurança pública, cada um tem uma realidade. Com essa medida, fica ainda pior e tornam ainda mais subjetivos os repasses (do Fundo) — afirma Rosana.
Coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme vê com bons olhos as medidas do governo federal e discorda das críticas dos deputados.
— Os abusos e os excessos são recorrentes no país. Não são problemas pontuais. O governo federal fez muito bem de pautar essa orientação nacionalmente. De fato, as corporações (policiais) têm seus protocolos (para o uso progressivo da força), mas os problemas seguem a despeito disso. E a situação não é igual em todos os estados. Quantas polícias estão bem equipadas com taser e outros instrumentos de menor potencial ofensivo? — diz Cristina.
Ela lembra da morte do estudante de medicina Marco Cárdenas Acosta em São Paulo, em novembro, morto desarmado, em que o agente policial que disparou à queima-roupa contra o rapaz tinha na viatura uma arma de choque e não utilizou o equipamento para conter o jovem.
— Por que o policial não usou o taser? A gente precisa avançar no treinamento para que façam o uso correto dos equipamentos. A portaria trás os eixos para investimentos nesse sentido, também com corregedorias de polícia e ouvidorias estabelecidas — afirma Cristina.
— O decreto vem em boa hora. Claro que ele, por si só, não muda a situação. Mas ele está preocupado com algo fundamental que é o preparo e a reciclagem dos policiais. O texto sinaliza uma clara política estatal no sentido civilizatório e o governo que não cumprir com as diretrizes não merece receber verbas federais — analisa o advogado Alberto Toron, presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB de São Paulo.
Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda que as medidas descritas no decreto já são regra em polícias como a de São Paulo. Ele diz também que o texto poderia contemplar punições mais assertivas para os estados que não cumprirem as medidas ali estabelecidas.
— Não trás uma obrigatoriedade para os estados, o que faz com que tenha uma baixa efetividade. É importante falar da violência policial, é importante regular a atividade policial, mas o texto até o momento não trouxe nada muito novo. Atrelar uma política de uso da força a receber a verba do Fundo não necessariamente vai mudar comportamentos — diz Alcadipani.
Em nota sobre o decreto federal a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP), a pasta afirma que seus agentes recebem treinamentos contínuos e têm “seus procedimentos constantemente aprimorados, seguindo e respeitando a política de direitos humanos”.
— Por parte da Polícia Militar, as abordagens obedecem aos parâmetros técnicos disciplinados por lei e são padronizadas por meio dos chamados Procedimentos Operacionais Padrão (POP). Os policiais são submetidos a capacitações teóricas e práticas para atualizar e aprimorar as atividades de policiamento e o relacionamento com a sociedade. A Pasta investe ainda na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas visando à redução das mortes e lesões de policiais em serviço e das mortes em decorrência de intervenção policial — diz a SSP.
Congresso tentará derrubar
Deputados da bancada da bala do Congresso Nacional preparam, segundo apuração do GLOBO, um projeto de decreto legislativo (PDL) que tentará derrubar as medidas do governo federal. O texto ainda está em fase de elaboração mas a iniciativa já ganha apoio entre os parlamentares.
Cerca de vinte já teriam demonstrado apoio a contraofensiva, com nomes como Rosana Valle, Delegado Palumbo (MDB-SP), Pedro Lupion (PP-PR), Luciano Zucco (PL-RS), Silvia Waiãpi (PL-AP) e Nikolas Ferreira (PL-MG), entre outros.
— O decreto assinado por Lula é um ataque direto à segurança pública e a autonomia das forças policiais. Estou apresentando um projeto de PDL para sustar essa medida absurda. Assim que for reaberto o protocolo da Câmera, o apresentarei — diz o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS).
Publicado em O Globo.
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