728 x 90

Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão

Censo de 1872: o retrato do Brasil da escravidão

Por Daniel MarianiMurilo RoncolatoRodolfo Almeida e Ariel Tonglet

O Brasil contava meio século desde a sua independência de Portugal, mas continuava sem poder dizer, em números, quem era. A prática de se recensear de tempos em tempos a população era comum entre países tidos como modernos e consolidados, como Estados Unidos, que contava seus habitantes desde 1790. Durante muito tempo, o conhecimento sobre o total de brasileiros dependeu de estimativas grosseiras. Na década de 1870, o governo imperial de D. Pedro 2º vê o momento adequado e planeja a realização de tal empreitada  para finalmente conhecer e poder mostrar ao mundo um quadro idealmente próximo da composição populacional do país.

O retrato em dados do país se dá em 1872 no que se chamou de “Recenseamento da População do Imperio do Brazil” (seguindo a grafia original, tal qual será utilizada em todas as citações abaixo). Trata-se do primeiro censo (ou recenseamento) geral brasileiro, o único produzido no Império cobrindo todo o território nacional.  

A pesquisa trazia um outro componente inédito e extremamente relevante em se tratando da identidade nacional que se construía pouco a pouco: seria a única a contemplar também a população escravizada, relacionando sua idade, estado civil, origem, “raça”, profissão e nível de instrução.

Realizado 16 anos antes da abolição definitiva da escravidão, sistema que serviu de combustível para a formação do país por mais de três séculos, o censo apresenta um Brasil de um ponto de vista temporal importante. Sob pressão externa e interna, o Império dava sinais de um processo gradual de desmonte do chamado “elemento servil”. O recenseamento cumpriu, assim, também, o importante papel de determinar o tamanho da população escravizada e o tempo para tirá-la dessa condição. Segundo relatório da Diretoria Geral de Estatística, espécie de IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) dos tempos do Império, era importante se saber a “diminuição anual” do número de escravos para “conseguir-se aproximadamente calcular o número de anos precisos para a completa extinção dos escravos no Império”.

As condições de “livre” e “escravo” eram marcadores importantes na configuração do país naquele momento histórico e, nesse sentido,  os dados extraídos do censo e apresentados a seguir contrastam, sempre que possível, a população segmentada por essas condições.

“A execução acontece de forma muito positiva”, diz o historiador Diego Bissigo, autor de pesquisas sobre o censo e a produção estatística do Brasil no século 19. “O resultado se aproxima ao que se pode chamar de um bom censo, sendo inclusive melhor do que os primeiros que serão feitos durante a República.”

Um relatório posterior escrito pelo então diretor da DGE, resume o desafio e a qualidade do trabalho.

“Esse serviço pela primeira vez executado em um Estado de vasta extensão e cuja população, comparativamente diminuta, acha-se disseminada por todo o território, não pode pretender o cunho de um trabalho perfeito (…) Não sendo perfeito é o melhor que nas actuaes circumstancias se poderia alcançar.”

Manoel Francisco Correia, Conselheiro e diretor geral do DGE, em 31 de dezembro de 1876.

Em 1872, o Brasil era dividido em 20 províncias (como Bahia, “Goyaz”, Pará e “Santa Catharina”) que, por sua vez, comportavam 641 municípios. Dentro deles, para fins do censo, o território era dividido em 1.473 paróquias – regiões que tinham como elemento central uma igreja, comandada por um pároco.

Para o recenseamento do Império, usando a paróquia como unidade mínima de contagem, agentes recenseadores eram os responsáveis por passar nas casas da região distribuindo as “fichas de família”. Os “chefes de família” deveriam, sob pena de multa, completá-las com exatidão e devolver ao agente recenseador em quinze dias.

Tabela

A ficha pedia informações como nome, cor, idade, estado civil, lugar de nascimento, nacionalidade, profissão, religião, instrução e um campo para “observações”. Deveriam constar ali todas as pessoas da casa, nesta ordem: “Declara-se primeiramente o nome do chefe de familia, depois o da mulher, dos filhos, dos outros parentes que com elle morem e em seguida o dos criados, escravos, aggregados e hospedes”.

A imensa maioria da população, como mostram os dados, não sabia ler ou escrever, cabendo ao agente recenseador conferir a lista, corrigir erros ou preenchê-la do zero “solicitando para isso dos mesmos chefes de família, ou de pessoas da vizinhança, as informações e esclarecimentos necessários”. Some isso a atrasos na entrega de fichas, erros de somatória e fica evidente a imperfeição da qual falava o diretor do DGE.

Parte da imperfeição do trabalho na época foi resolvida com um extenso trabalho de revisão dos quadros do censo por uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, concluído em 2012. Roberto Borges Martins fez parte do embrião dessa pesquisa. Estudando o censo, o economista e ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) notou erros primários de soma e decidiu passá-lo a limpo.

“O Brasil não tinha censo, então não se tinha ideia de onde a população estava. Havia estimativas grosseiramente equivocadas apenas. O censo corrigiu muitas dessas coisas. Informação demográfica é importante para o planejamento de qualquer coisa, sobretudo de política pública. Eu não vou te dizer que ele foi usado para isso na época, mas ele trouxe muita informação útil para o Estado.”

Roberto Borges Martins, Economista

É com esses dados corrigidos do recenseamento de 1872 que o Nexo apresenta neste especial parte do retrato do Brasil daquela época, dando especial atenção para a condição do escravo, contabilizado oficialmente pelo país em todo território pela primeira e última vez.

O Brasil contava com uma população de 9,93 milhões de pessoas, sendo 51,6% homens e 48,4% mulheres (no censo de 2010, 138 anos depois, as mulheres representam 51% do total). Quando a análise considera a “condição social”, separando o universo entre livres e escravos, o resultado é o seguinte: 84,8% e 15,2%, respectivamente. A população brasileira seguia a proporção aproximada de um escravo para cada 6 pessoas livres.

O número pode até soar baixo para um país que rumava para a abolição – em 1860, a três anos do fim da abolição nos Estados Unidos, por exemplo, os escravos representavam 12,6% da população americana. Mas ele também é falso. Isso porque esse grupo de livres incluía escravos libertos, condicionados a servir seus senhores enquanto estes vivessem. Ironicamente, também uma forma de escravidão ainda que informal, justificada como demonstração de gratidão pela liberdade concedida.

É o que o historiador e professor da Unicamp, Sidney Chalhoub, chama de “precariedade estrutural da liberdade”. Além da alforria condicional, o especialista em seu trabalho sobre “o problema da liberdade no Brasil escravista” cita ainda “restrições constitucionais aos direitos políticos dos libertos, a interdição dos senhores à alfabetização de escravos e o acesso diminuto de libertos e negros livres em geral à instrução primária (…), a possibilidade de revogação de alforrias, as práticas de escravização ilegal de pessoas livres de cor” e “a conduta da polícia nas cidades de prender negros livres sob a alegação de suspeição de que fossem escravos fugidos”.

Em meio à massa de quase 10 milhões de habitantes, o Brasil tinha 382,1 mil estrangeiros, a maioria deles (cerca de 70%) homens. O governo imperial achou, por bem, enquadrar escravos trazidos de diversas regiões da África também como estrangeiros, em contraposição àqueles que nasceram no Brasil, filhos ou netos de escravos. “O escravo africano é visto como um imigrante, mas ele não é um imigrante convencional, ele é um imigrante forçado”, destaca Diego Bissigo. Do total de imigrantes, 36% eram escravos.

O historiador autor do estudo “O Censo e as Nações: os africanos nos levantamentos populacionais no Brasil do século XIX” aponta para o “apagamento” da origem desses estrangeiros africanos. Seja por responsabilidade do chefe de família, do agente recenseador ou da DGE, o tabulamento final do recenseamento agrupou quaisquer termos usados para designar uma região ou grupo étnico original da África (“da nação Congo”, “cabinda”, “benguela” ou “mina”) simplesmente como “africanos”.

“Muitos termos [como ‘benguela’ e ‘mina’] não correspondiam ao Estados nacionais, mas davam pistas da origem desse africano. Mas, em 1872, a estatística simplifica”, diz Bissigo. “Ela é inimiga da diversidade, em certo sentido. O heterogêneo é caótico”.

“Colocar todos como ‘africanos’ foi uma solução encontrada na época”, continua Bissigo. “Mas não é só por culpa da estatística, até porque o europeu não vira ‘europeu’, ele é alemão, belga, etc. Foi uma opção política. O Brasil reconhece esses países, mas não reconhece países africanos.”

Os “africanos”, escravos ou livres, compõem a maior parte dos estrangeiros (46%). Em seguida, estão portugueses (33%), alemães (10,5%), italianos (2,1%) e franceses (1,8%).

Para o economista e pesquisador Roberto Borges Martins, há nesses dados um “apagamento” de outra ordem. Em 1831, uma lei brasileira (conhecida como “Lei Feijó” e alcunhada de “Lei para inglês ver”) proibiu o tráfico de escravos (“Todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres”), determinação reforçada em uma nova lei, essa de 1850 (Lei Eusébio de Queirós), que garantia a apreensão de navios de traficantes em mar ou portos brasileiros.

Por consequência, qualquer escravo declarado como africano no censo com menos de 59 anos seria uma clara ilegalidade. “Assim, o que existe é uma grande ocultação da origem africana dos escravos. É uma coisa que assusta: existe uma população escrava de 1,5 milhão e um número de africanos proporcionalmente muito pequeno [9,2%]”, diz Martins. O economista explica que o dado é ilusório dado que a população escrava brasileira nunca teve crescimento natural positivo (mais nascimento do que morte). Ou seja, ela dependia da importação (ilegal) de pessoas para se manter.

A busca pela origem dessa população heterogênea do continente africano se tornou objeto de pesquisa no Brasil e fora dele. Por aqui, o IBGE organizou dados que apontam uma entrada de quase 1,9 milhão africanos escravizados a contar do início do século 18, trazidos sobretudo da Angola e da Costa do Marfim.

Já o projeto Slave Voyages, uma iniciativa conjunta de instituições internacionais em operação desde 1960, indicam registro da entrada de mais de 3 milhões de escravos no Brasil desde 1560, sobretudo em portos de Rio de Janeiro e Bahia. Estes oriundos de ao menos oito grandes regiões do continente, como Senegâmbia, Golfo do Benim, África Centro-Ocidental e Golfo de Biafra.

A questão da idade, assim como a do local de origem, acabou se tornando uma vitrine da simplificação imposta pela estatística, bem como da criatividade dos “senhores” para manter seu patrimônio escravo apesar dos avanços jurídicos do país.

De um lado, havia a lei de 1831 que proibira o tráfico de escravos africanos; de outro, a Lei do Ventre Livre – aprovada em fins de setembro de 1871, dez meses antes da realização do censo –, que declarava livre todos os “filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio”.

Sendo assim, em 1872, escravos de origem africana não poderiam ter menos que 59 anos; nem filhos de escravas nascidos no Brasil poderiam ter menos que 11 meses. Caso contrário, deveriam ser livres. Embora especialistas possam apenas deduzir, seria por essas razões que as pirâmides etárias podem estar distorcidas.

O historiador Diego Bissigo aponta também a possibilidade de que uma compra exagerada de escravos às vésperas da lei de 1831 – para fins de se criar um “estoque” – possa ter servido para a pirâmide mais inflada na faixa dos 40 anos para cima.

Ele observa também a existência de fichas familiares declarando a idade de escravos da seguinte forma: “Mais de 40 anos”. “Na época não havia registro civil. Não era raro escravos ou mesmo pessoas livres não saberem suas idades. Mas fica claro que esse arredondamento de idades para 40 anos soava como uma boa para [os senhores] se livrarem de qualquer crime”.

Segundo relatório de 1876 sobre o recenseamento, em um período de três anos (entre 1872 e 1875), aproximadamente 164 mil crianças, filhos de escravas, nasceram livres.

Vale notar, no entanto, que a “liberdade” não era completa. De acordo com a lei, a criança passava a ser de responsabilidade do senhor até os oito anos. Nessa idade, ela poderia ser entregue ao governo (que “lhe dará destino”) mediante pagamento de indenização ao senhor ou continuar servindo-lhe até seus 21 anos.

Na década seguinte ao censo, em 1885, entra em vigor a Lei dos Sexagenários, dando liberdade a todos os escravos com mais de 60 anos. Liberdade, mais uma vez, condicionada a uma indenização aos senhores. No caso, a obrigação de servi-los por mais três anos ou até a idade limite de 65 anos. Três anos também foi o intervalo dali até a abolição definitiva da escravidão.

“Predomina entre nós o catholicismo. As outras religiões contão poucos adeptos.” Assim começa o minúsculo texto dedicado a religião no relatório da Diretoria Geral de Estatística. Sobre as “outras religiões”, o censo do governo imperial não perguntou de quais se tratavam, sejam as protestantes (80% dos 28 mil “acatólicos” eram de origem alemã) ou de matriz africana. Isso porque, entre todos os africanos livres, apenas 184 estão assinalados como de religião “diferente do Estado” (no censo da Corte, de 1870, assim eram designados os não católicos). Entre escravos, não houve exceção. Todos estão apontados como seguidores do catolicismo.

A religião era um aspecto sempre presente nas políticas adotadas pelo Estado (que só se autodenominaria laico na República, com a Constituição de 1891). A já citada Lei Eusébio de Queirós, de 1850, assegurava a apreensão de embarcações negreiras, mas dizia que se “os africanos” salvos dos traficantes “não tiverem sido baptisados, ou havendo sobre isso duvida”, a autoridade deveria “providenciar para que o sejão immediatamente”.

Para o historiador Diego Bissigo, atestar o catolicismo entre os escravos era uma forma de afirmar-se civilizado. “Desde os primórdios no Brasil, a escravidão se justificava pela chance de salvar aquelas almas do paganismo. Seria um fracasso não ter 100% de catolicismo nas pessoas as quais controlamos”, diz.

Em “História das Estatísticas Brasileiras”, trabalho fundamental do economista Nelson Senra, pesquisador do IBGE, diz que a falta de pluralidade religiosa observada entre escravos no censo pode ser explicada por duas razões: “não houve divulgação porque não havia o fato ou havia o fato mas não houvera o registro”

As categorias de cor ou raça nem sempre estiveram presentes nos censos posteriores ao de 1872. Da mesma forma, os termos utilizados também variaram (em 1890, “pardo” foi substituído por “mestiço”, por exemplo). A definição pelo IBGE de cor ou raça dentre as cinco categorias atuais (“branco”, “preto”, “pardo”, “amarelo” ou “indígena”) passou a valer em 1991, sendo mantida em 2000 e 2010.

Os censos de 1950 e 1960 foram os primeiros em que o princípio da autodeclaração orientou a coleta de dados. No século 19, não era assim. A classificação era feita pelo senhor ou agente do censo.

O governo imperial distinguia a população brasileira em “tres raças distinctas” (nada de cor): branca, africana e indígena. Com uma opção adicional: “Do cruzamento da raça africana com as outras resultou a classe dos pardos”, que compunha mais de um terço da população. Assim, pardos seriam todos os filhos de africanos (31% dos escravos são declarados como pardos) com indígenas (ora identificados como “caboclos”) ou brancos.

A determinação da “raça” se fundamentaria na origem dos escravos. Essa era a regra, mas pesquisadores apontam que a condição social também podia influenciar a classificação. “O pardo é o mestiço, mas também é o ‘crioulo’ que nasceu no Brasil então é ‘menos preto’ que o preto africano. Usa-se o pardo para o liberto, porque é como se a liberdade produzisse um efeito branqueador de alguma forma, mas isso tudo é muito sutil, não dá para dizer que todo caso é assim. Mas são possibilidades averiguadas na literatura”, explica Diego Bissigo.

O “branqueamento” do brasileiro foi, na virada para o século 20, foi uma tese abraçada por parte da elite nacional. O brasilianista americano Thomas Skidmore resumiu, no livro “Preto no Branco” (1989), a teoria afirmando que ela “baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adiantadas’ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata”, escreveu.

Skidmore explica que, dentro dessa lógica, a “miscigenação” foi vista como algo positivo e “natural” ao produzir “uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas”, citando a política de incentivo à imigração europeia branca como um reforço desse branqueamento.

Outro caso é o dos indígenas que, pela classificação problemática, acabam misturados ao “pardo” (por determinação da cor). “É muito fácil de imaginar que a maioria dos indígenas passou batida por essa contagem. Houve caso de aldeias que não foram contadas porque, segundo um relatório, houve dificuldade de se chegar”, diz Bissigo.

Ao lado, o mapa das províncias brasileiras com a distribuição de escravos pelo país. Todos os municípios brasileiros, sem exceção, contavam com o “elemento servil”. Na comparação com o total da população da província, lideram Rio de Janeiro (31%), Espírito Santo (24%), Maranhão (21%), Minas Gerais (17%) e São Paulo (17%). Os com menos escravos, proporcionalmente, eram Amazonas (2%), Ceará (5%), Rio Grande do Norte (6%), Parahyba (6%) e Goyaz (6%). Em valores absolutos, lideram Minas Gerais (345 mil), Rio de Janeiro (263 mil), Bahia (172 mil), São Paulo (126 mil) e Pernambuco (92 mil).

Na época, com o tráfico dificultado, observou-se um fluxo de comércio de escravos internamente, sobretudo das regiões Norte e Nordeste para o Sudeste, onde se concentrava a produção cafeeira. Esse fluxo interno, como explica o economista Roberto Borges Martins, passou a cair a partir de 1880, quando Rio de Janeiro, Minas Gerais e depois São Paulo começaram a tributar a entrada de escravos. Martins interpreta a adoção do imposto como uma tentativa de evitar o surgimento de dois brasis: um escravista ao sul, e um livre ao norte. “Eles não queriam ficar isolados, não queriam que acontecesse aqui o que se deu nos EUA”, culminando na Guerra de Secessão (1861-1865) e no fim da escravidão por lá (1863).

De longe, o grau de instrução e o analfabetismo foram os temas sobre os quais mais se dedicou atenção por parte da Diretoria Geral de Estatística. No documento em que comentam os resultados, é com um tom que aparenta vergonha que afirmam: “É pouco animador o quadro da estatistica intellectual”, seguido de uma avaliação otimista de que não demoraria muito até que “varie para melhor a proporção ora existente entre os que sabem e os que não sabem ler”.

A população escravizada foi ignorada nos resultados. A avaliação é feita apenas sobre a livre. Sobre esta, apenas 19% sabiam ler e escrever (23% entre homens, 13% entre as mulheres).

Já os dados sobre quem, dentro do universo da população de 6 a 15 anos, frequentava escola, a proporção é de 17% entre homens e 11% de mulheres, respectivamente. Como diagnóstico, a DGE aponta que “os governos provinciaes tem deixado de instituir o ensino obrigatorio, e apenas uma ou outra provincia o tem estabelecido para aquelles individuos em idade propria”.

Além de registros sobre grau de instrução que provocaram embaraço, o quadro de profissões também mostra um cenário pouco animador. Partindo da população total (homens e mulheres), cerca de 42% não tinham profissão (55% entres os livres, 24% entre escravos). A própria DGE reconhece que o contingente sem uma profissão específica era “enorme”, sobretudo nas províncias do Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Pernambuco.

Em uma época em que poucos frequentavam escolas e não havia plano de aposentadoria, é difícil imaginar que quase metade da população não trabalhava.

Além do contingente esperado de desempregados, é possível que o dado tenha sido afetado por um detalhe do próprio censo. O historiador Diego Bissigo avalia que a pergunta do quadro era problemática, pois se pedia “profissão”, “ofício”, “ocupação habitual” ou “meios de vida”, equiparando categorias que, na verdade, são diferentes na forma como definem a atividade “trabalho”.

“Além de não ter uma regulamentação sobre profissões, as pessoas executavam muitos serviços distintos. A gama de respostas possíveis era muito grande tanto para a população livre quanto para a escravizada”, diz.

A DGE acabou, assim, para aqueles que declararam alguma profissão, separando as profissões em grandes categorias: indústria agrícola (lavradores e “criadores”, ou pecuaristas), profissões manuais e mecânicas (construção civil, indústria têxtil, marceneiros, sapateiros, etc), comércio, manufaturas e “artes liberais” (religiosos, juristas, médicos, professores e funcionários públicos).

Além destes, eram tipos separados as profissões de pessoas “assalariadas” (que faziam pequenos trabalhos diários em troca de pagamento), serviço doméstico, militares, pescadores, “marítimos” e “capitalistas” ou proprietários de terra ou fábrica.

Abaixo desses grandes grupos, contam-se 32 subcategorias profissionais. Destas, as mulheres (sobretudo as livres) ficavam de fora de 18, como juízes, advogados, médicos, empregados públicos e militares.

Escravos, sejam homens ou mulheres, trabalhavam mais que a população livre na agricultura (54% contra 29% dos livres), bem como em serviços domésticos (12% contra 10%) e como criado ou jornaleiro (que não é o profissional que vende jornal, mas o que é pago por uma jornada de trabalho), uma espécie de “bico” (caso de 6% dos escravos, contra 4%).

“Quando o senhor não tinha uma função para o escravo, ele deixava o escravo ao ganho”, explica o historiador Diego Bissigo. “Ele ia para cidade buscar emprego e o senhor ficava com o salário que o escravo recebesse. É uma forma de uso para o escravo. Assim, ou alugando para outro senhor também.”

Como escreveu Nelson Senra, pesquisador do IBGE e grande especialista dos censos brasileiros, a realização de um censo “na amplidão territorial brasileira, com a rarefação da população, com a precariedade das comunicações e dos transportes” foi “sem dúvida, um grande desafio, uma sequência complexa, de difícil execução”.

Mas a complexidade do mapeamento detalhado da população não deve ser pensada como algo restrito ao século 19. O plano original de repetir o censo a cada 10 anos,  falhou vez ou outra – foram feitos 12 dos 15 possíveis entre 1872 e 2010. Os que “furaram” a programação foram os de 1880 (quando, sem recursos, a DGE foi desmontada), 1910 (na época, estourou a Revolta da Chibata no Rio de Janeiro) e, em 1930 (ano do golpe liderado por Getúlio Vargas, que tomou o governo).

Assim, mesmo depois de tantas edições, o recenseamento de 1872 tem um lugar de destaque. Primeiro, em função do pioneirismo da iniciativa. Mas, além disso, o olhar sobre a população brasileira naquele momento, sob o governo imperial e às vésperas do fim da escravidão, traz  uma perspectiva valiosa acerca do país na época.

Para o economista Roberto Borges Martins, a utilidade do recenseamento de 1872 chega aos dias de hoje, servindo como um retrato de quem o Brasil, apesar dos quase 200 milhões de habitantes a mais, ainda é. “Olhando para o recenseamento fica evidente que diversos problemas de hoje são decorrência daquele Brasil”, diz Martins.

Como registro histórico e social, o censo de 1872 também aponta para temas que foram se mostrando fundamentais para pensar a questão racial no país ao longo da sua história, sublinhando muitas das desigualdades que hoje, ainda que em versões atualizadas, seguem longe de estar superadas.


Produzido por Murilo Roncolato

Dados por Daniel Mariani

Layout por Rodolfo Almeida

Desenvolvimento por Ariel Tonglet

Edição por Marina Menezes

Publicado originalmente no Nexo Jornal.

Compartilhe
Grupo Prerrô
ADMINISTRATOR
Perfil

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *

Mais do Prerrô

Compartilhe