Há poucos dias lemos que o CNJ pretende alterar a Resolução nº 75 para introduzir novas matérias para concurso da magistratura. Intenção é ótima. Todavia… aqui vai a oração adversativa.
Como se sabe, os concursos públicos para a Magistratura subdividem-se por áreas de atuação. Assim, cada uma das áreas tem autonomia para elaborar seus próprios concursos e, assim, selecionar os futuros magistrados a partir de critérios a ela pertinentes.
Desde 2009, todavia, o CNJ, por meio da Resolução nº 75, estabeleceu uma regulamentação geral, elencando requisitos formais (etapas para o concurso, por exemplo) e materiais, ou seja, relações mínimas de disciplinas para diferentes áreas de atuação.
Nesse sentido, o artigo 47, I, da Resolução determina que “a primeira prova escrita será discursiva e consistirá em questões relativas a noções gerais de Direito e formação humanística previstas no Anexo VI”[1]. Tal Anexo, por sua vez, prevê como conteúdo relativo a “noções gerais de Direito” e “formação humanística” disciplinas como sociologia do direito, psicologia judiciária, ética e estatuto jurídico da magistratura nacional, filosofia do direito e teoria geral do direito e da política.
Durante a 93ª Sessão Virtual do CNJ, particularmente no processo de nº 0006767-49.2021.2.00.0000, foi proferido voto pelo ministro Luiz Fux, acrescentando às referidas disciplinas humanísticas os seguintes temas:
- A) DIREITO DIGITAL
1 – 4ª Revolução industrial. Transformação Digital no Poder Judiciário. Tecnologia no contexto jurídico. Automação do processo. Inteligência Artificial e Direito. Audiências virtuais. Cortes remotas. Ciência de dados e Jurimetria. Resoluções do CNJ sobre inovações tecnológicas no Judiciário.
2 – Persecução Penal e novas tecnologias. Crimes virtuais e cibersegurança. Deepweb e Darkweb. Provas digitais. Criptomoedas e Lavagem de dinheiro.
3 – Noções gerais de contratos Inteligentes, Blockchain e Algoritmos.
4 – LGPD e proteção de dados pessoais. - B) PRAGMATISMO, ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO E ECONOMIA COMPORTAMENTAL
1 – Função judicial e pragmatismo. Antifundacionalismo. Contextualismo. Consequencialismo. Racionalismo e Empirismo. Dialética. Utilitarismo.
2 – Análise econômica do direito. Conceitos fundamentais. Racionalidade econômica. Eficiência processual. Métodos adequados de resolução de conflitos e acesso à Justiça. Demandas frívolas e de valor esperado negativo. Precedentes, estabilidade da jurisprudência e segurança jurídica. Coisa Julgada.
3 – Economia comportamental. Heurística e vieses cognitivos. A percepção de Justiça. Processo cognitivo de tomada de decisão.
4 – Governança corporativa e Compliance no Brasil. Mecanismos de Combate às organizações criminosas e Lavagem de Dinheiro. Whistleblower.[2]
A inclusão destes temas é justificada pelo ministro a partir de diferentes linhas de raciocínio. Em seu voto, ele destaca, por exemplo, o valor da interdisciplinaridade, a questão dos precedentes, a LINDB como consagradora do pragmatismo e seus alicerces: antifundacionalismo, contextualismo e consequencialismo no Direito brasileiro, levando à formação de uma nova consciência jurisdicional, calcada primordialmente no pragmatismo. Também refere a Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental, além do Direito Digital.
Pois bem. Permito-me, com a lhaneza de sempre, refletir sobre o tema. O Direito é um fenômeno complexo e, nesse sentido, interdisciplinar por natureza. Desde a sua dimensão mais prática à mais teórica, a compreensão e exercício concreto do Direito pressupõem uma série de considerações (ainda que não explícitas) sobre temas diversos como teoria política, filosofia prática, filosofia da linguagem, por exemplo[3]. O direito é um fenômeno multifacetado: tem caráter de instituição social, elementos de filosofia e razão prática, tem linguagem e tem discurso, tem teoria e tem prática, tem tradição e história e repercussão imediata na vida de cidadãos e autoridades, interfere no presente e no futuro.
Nesse sentido, reconhecendo o caráter inerentemente holístico do Direito, Dworkin diz que o juiz ideal[4] (ele faz uma metáfora para explicar isso) deve utilizar teoria do direito que inclua os precedentes, a legislação e a constituição, a partir de um sistema de princípios conexos entre si, tendo em vista aquilo que Ovídio A. Batista chama de “unidade do Direito”, o que é diferente de “uniformidade da jurisprudência”[5].
É evidente — e Dworkin reconhece isso — que ninguém pressupõe que juízes devam ser filósofos, cientistas políticos, economistas, sociólogos ou psicólogos para que possam exercer tal função satisfatoriamente. Claro que não. Por outro lado, a inclusão de disciplinas propedêuticas ou, no sentido atribuído pela Resolução 75 do CNJ, “humanísticas” é, em tese, salutar. O direito tem uma autonomia própria: não é economia, não é filosofia moral, não é ciência política. Por sua própria natureza, porém, dialoga com tudo isso. Porque filtra tudo isso. As humanidades devem humanizar: inclusive o direito, para que ele possa ser aquilo que é.
A primeira questão a ser enfrentada quanto ao tema proposto, todavia — olha o todavia aí —, diz respeito (novamente) ao modelo pedagógico utilizado em concursos públicos e a sua incompatibilidade em relação às disciplinas de cunho teórico que se pretende exigir dos candidatos. De há muito, critico o modo como os concursos públicos foram transformados em quiz shows[6], uma gincana ou corrida de obstáculos. Um jogo de linguagem próprio, que cria critérios ad hoc sem qualquer conexão com o fenômeno corretamente compreendido.
O grave disso tudo é que gera — e isso é fato — uma indústria dos concursos, estabelecendo-se, assim, um círculo vicioso:[7] já não se sabe mais se professores e alunos se submetem ao ensino estandardizado e resumido (e genéricos) porque as provas assim o exigem, ou se as provas assim o exigem porque são feitas por essas pessoas. Parece indubitável — e não vai crítica a quem se dedica ao ramo, afinal, mercado existe quando existe demanda e oferta de produto — que se formaram nichos de um mercado, muitos prometendo uma espécie de “pedagogia da prosperidade”. Há até vídeos em que cursinhos mostram reuniões em locais que insinuam prosperidade a quem passar em concursos, sendo despiciendo relatar, aqui, os diversos exemplos que circulam nas redes sociais.
Sigo. Um exemplo desta incompatibilidade entre questões teóricas relacionadas ao Direito e este modelo de ensino e aprendizado que estrutura o mercado dos concursos pode ser extraído da prova do Ministério Público do Distrito Federal: a questão 41, de múltiplas alternativas, solicitava ao candidato que selecionasse aquelas que estivessem de acordo com o “positivismo moderno”. O tema foi abordado brilhantemente por Gilberto Morbach, aqui na ConJur.[8] Bom exemplo da degeneração da perspectiva “humanística” de questões de concursos.
Diante deste quadro, pergunto: em que circunstâncias temas como “antifundacionalismo”, “contextualismo”, “consequencialismo”, “racionalismo”, “empirismo”, “dialética” e “utilitarismo” passarão a ser exigidos nas provas de concurso para a magistratura? Quais são as condições e os critérios epistemológicos adotados para que os conceitos sejam colocados e significados autenticamente dentro de seus contextos próprios?
Para a definição do primeiro termo, terá o candidato que dissertar sobre a crítica do idealismo alemão ao fundacionismo de Descartes, passando pela obra de Kant, Fichte, Schelling e Hegel e chegando à versão contemporânea da crítica ao “mito do dado” feita por autores como Wilfrid Sellars?
Lerá Leibniz e Spinoza para poder criticar o racionalismo moderno? Empirismo? Qual deles? O de David Hume, John Locke, ou o empirismo lógico do Círculo de Viena? E qual concepção de dialética será demandada? O método do diálogo socrático, a dialética hegeliana que estrutura a sua Ciência da Lógica, ou a do materialismo dialético de Marx? “Tudo isso” não vale: a um, porque impossível, a dois, porque, possível fosse, há contradições entre esses fenômenos mesmos ainda que respondam aos mesmos rótulos, prima facie.
Como afirmei, não se pressupõe que os futuros juízes sejam filósofos ou historiadores do pensamento. No entanto, a maior probabilidade é a de que tal acréscimo de temas seja convertido em apenas mais “ismos” a serem resumidos e esquematizados pelos cursinhos e manuais, tal como o foram termos como “positivismo” “pós-positivismo”, “neoconstitucionalismo” etc. Há até mesmo resumos plastificados “ensinando” filosofia do direito.
Minha crítica, no entanto, não se limita apenas a uma suspeita acerca da maneira como tais conteúdos serão reproduzidos e cobrados nas provas, senão ao próprio objetivo de tal inovação.
Afinal, qual a precedência teórica que concepções como a do pragmatismo e da análise econômica do direito têm em relação a teorias e abordagens concorrentes? Eis o ponto. De acordo com o Ministro Fux, a LINDB consagra o pragmatismo e seus alicerces, o antifundacionalismo, contextualismo e consequencialismo. Minha pergunta: isso significa que a antiga Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 repaginada como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determinará também “a” teoria do Direito a ser exigida pelos concursos e, presume-se, aplicada prioritariamente pelos futuros magistrados? Efetivamente sabemos o que é pragmatismo? Ou o sentido que se fala é o do senso comum, do tipo “temos de ser pragmáticos”? Se for o pragmatismo filosófico, temos um problema. Se for o do senso comum, temos dois.
Outro ponto a ser destacado diz respeito à economia comportamental. Afinal, o que isto tem a ver com uma noção “humanística” a respeito do Direito? Pelo contrário, a base teórica que sustenta a aplicação desta disciplina nos raciocínios desenvolvidos pelos participantes internos do Direito é correlata ao realismo jurídico (o direito é o que os tribunais dizem que é), simbolizado na famosa afirmação de Oliver Wendel Holmes Jr. no sentido de que “as profecias sobre aquilo que as cortes farão de fato, e nada mais pretencioso, é o que eu entendo por direito”.
Acreditem. Isso que estou dizendo não é mera opinião. É possível demonstrar esses pontos de forma epistemológica. Pragmatismo e economia comportamental querem dizer que o Direito se resume ao jogo de vontades exteriorizadas por quem possui o lugar da fala e detém o poder, os juízes, restando aos juristas e teóricos do Direito a busca — esmigalhada — pela previsibilidade das decisões e pelas oportunidades estratégicas de alterá-las a partir de considerações fáticas sobre influências sociológicas, psicológicas e econômicas, por exemplo, que motivam a tomada de decisão judicial. Como “aplicar” a economia comportamental em um país que sequer Adam Smith foi lido adequadamente?
Ora, com a devida vênia, nada menos “humanístico” do que conceber o Direito como uma mera estratégia e exercício de poder. O que o pragmatismo, a análise econômica do direito e a economia comportamental têm a dizer sobre o princípio republicano? E sobre a dignidade humana? E sobre a liberdade de expressão? Direito é em mais complexo do que pretende, por exemplo (eis um bom exemplo de uma análise pragmatista), a professora norte-americana Lee Epstein, que compara o direito a um jogo de beisebol (ver aqui). Se o direito é um jogo, uma estratégia, então ele já não será Direito (ver aqui texto com minha análise crítica). Resumindo: análise econômica e economia comportamental desconsideram, abertamente, a distinção filosófica entre behavior (comportamento) e action (ação). A primeira dá conta de nossa dimensão animal e sensitiva; a segunda, de nossa racionalidade. A primeira é analisada por meio de compreensão causal-descritiva. A segunda, por meio de compreensão avaliativa e reflexiva. Por que ressalto isso? Porque, e isso é muito simples, o objeto próprio do Direito não é o comportamento, mas a ação. A agência humana, em e na linguagem, com tudo que envolve as diversas razões para agir de nosso raciocínio prático.
Sartre afirma que “o existencialismo é um humanismo” porque, segundo o autor, sob influência de Heidegger, “a existência precede a essência”. Para Markus Gabriel, “humanos vivem as suas vidas sob a luz de uma concepção sobre o que ser humanos significa”[9]. Charles Taylor, por sua vez, afirma que “somos inescapavelmente animais autodeterminados”. “Mas isso não resolve a questão sobre o lugar da verdade em nossas auto interpretações[10].”
Tais considerações contemporâneas sobre o que significa ser humano e, nesse sentido, sobre o conceito de “humanismo”, certamente não esgotam os distintos sentidos atribuídos a tal conceito ao longo da história. Elas guardam em comum, todavia, o senso de que a possibilidade de autodeterminação e de auto compreensão é uma característica ínsita e determinante do ser humano enquanto ser que é livre.
Se definíssemos o conceito de “humanismo” a partir do critério de exclusão, poderíamos afirmar, nesse sentido, que a previsibilidade comportamental baseada no(s) determinismo(s) a que está sujeita a concepção pragmática em que se baseia a inserção dos temas acima referidos nos exames da Magistratura é o seu antípoda.
Assim como o é o tom acrítico a partir do qual o tema da tecnologia é inserido no Anexo VI da Resolução 75 do CNJ. O foco está na quantidade, ou seja, na ferramentaria ou na “automação do processo”. De há muito critico teses e pesquisas que tentam transformar o direito em estratégias ou análises estatísticas. Um dos exemplos é o caso da pesquisa sobre os juízes de Israel, que, antes do almoço, eram mais duros do que depois do café da manhã. Ora, se o Direito depende disso, é fracassou (vejam minha análise aqui). Outra análise crítica que fiz foi em uma coluna intitulada Os filhos e o café da manhã influenciam as decisões?, em que abordo matéria no New York Times, assinada por Adam Liptak, em que diz, basicamente, que “juízes que possuem filhas decidem com mais frequência a favor dos direitos das mulheres”.
O que venho sustentando é que, em termos de concursos públicos, a questão é bem mais complexa do que inserir matérias novas, aparentemente sofisticadas. Decisão judicial não é escolha. É um ato de responsabilidade política, como diz Dworkin. Para tanto, há que se construir condições de controle dessas decisões, inclusive com uma heurística. Critérios, essa é a palavra. Enquanto apostarmos em uma espécie de behaviorismo decisional, todo o resto estará “subsumido” no contexto do velho subjetivismo.
Pede-se mais pragmatismo, mais humanismo, mais economia comportamental. Pede-se que se dialogue com o racionalismo, o empirismo, o Iluminismo. Correto. Concordo. Pena que não se explica o que se entende por pragmatismo, humanismo, economia comportamental, racionalismo, empirismo, Iluminismo.
O risco é exigirmos algo sem que se ofereça as condições adequadas para uma exigência apropriada. As faculdades nem de longe trabalham as temáticas tratadas na Resolução. Seria, então, um trabalho para os cursinhos? Os cursinhos, de todo modo, devem estar contentes. E o que acontece nos cursos jurídicos?
Na verdade, seguimos com nossos alunos incapazes de responder à pergunta mais fundamental: o que é isto — o direito? Em um país em que nem quadros temos para atender o número de cursos jurídicos.
[1] Ver: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/100> acessado em 20 de setembro de 2021.
[2] < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/100>.
[3] Nesse sentido, consultar Dworkin, em seu The philosophy of law. Oxford: Oxford University Press, 1977, especialmente p. 1). Sobre o ponto desta Coluna, importante referir a participação dos pesquisadores do Grupo Dasein, Luã Jung e Gilberto Morbach.
[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 287.
[5] SILVA, Ovídio Araújo Batista da. A função dos tribunais superiores. In: Anuário do Programa de Pós- Graduação em Direito – Unisinos, 1999.
[6] < https://www.conjur.com.br/2018-nov-22/concursos-publicos-insistencia-quiz-shows>
[7] https://www.conjur.com.br/2017-mai-11/senso-incomum-resumocracia-concursocracia-pedagogia-prosperidade
[8] < https://www.conjur.com.br/2021-jul-10/diario-classe-problematica-questao-positivismo-concurso-mp-df>
[9] GABRIEL, Markus. Neo-Existentialism: How to Conceive of the Human Mind after Naturalism’s Failure. Polity, 2018, p. 88.
[10] TAYLOR, Charles. Gabriel’s refutation. (In:) GABRIEL, Markus. Neo-Existentialism: How to Conceive of the Human Mind after Naturalism’s Failure. Polity, 2018, p. 131.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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