Quando a PF e o MP praticam abusos, acatados por juízes voluntariosos, ocorre muito mais do que uma injustiça contra o cidadão investigado
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
(Augusto dos Anjos , em “Versos Íntimos”)
Há três anos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o habeas corpus 76.686, que sustentei oralmente, anulou as provas colhidas na Operação Sundown por falta de fundamentação nas interceptações telefônicas e pelo enorme prazo de mais de dois anos de duração das escutas. A Constituição Federal e a lei determinam que toda decisão há de ser fundamentada e, no caso da interceptação, há um prazo legal de 15 dias de duração, prorrogável por mais 15.
Essa operação, conduzida pelo Ministério Público Federal de Curitiba, investigava integrantes da família Rozenblum, sócia do grupo Sundown, mediante interceptação telefônica e de dados. No âmbito dela foram efetuadas prisões e houve busca e apreensão nos escritórios das empresas e residências, assim como sequestro de todos os bens dos envolvidos.
Na oportunidade, o ministro Nilson Naves declarou que aquele era o mais importante caso na área criminal julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A decisão anulou várias condenações e mais de três dezenas de procedimentos.
O noticiário daquela época encarou a questão como se o tribunal tivesse desprezado o trabalho da Polícia Federal, do MP e do juiz de primeiro grau, apenas pelo fato de o STJ ter tido a coragem de fazer cumprir a lei e a Constituição. Simples assim!
Após esse julgamento, vários outros se deram na mesma linha, determinando a retirada, por imprestável, da prova avaliada como ilícita, seja por abuso da polícia, seja por desmandos do MP, seja por falta de zelo dos juízes no trato com a Constituição.
Agora, nova decisão da mesma turma do STJ é criticada como se não fosse obrigação dos ministros fazer cumprir as leis e a Constituição. Conforme tem sido amplamente veiculado na imprensa, o STJ anulou as provas colhidas na Operação Faktor, que investigava Fernando Sarney, defendido pelo advogado Eduardo Ferrão.
Costumo dizer que as pessoas, no geral, se portam como se estivessem num jogo de máscaras: quando veem um poderoso, um rico ou um político sendo preso ou processado, regozijam-se, são tomadas por um frenesi íntimo indizível e inconfessável. Pouco importa se foram desrespeitados os direitos fundamentais. Veste-se a máscara da hipocrisia, da desfaçatez.
Porém, a vida dá, nega e tira. E pode ser que um dia, nas curvas que ela faz, a desgraça de uma injustiça bata à porta daquele que desprezou os mais elementares princípios de direito -e o próprio, ou alguém da sua família, se veja às voltas com uma arbitrariedade.
Aí o cidadão veste a máscara do devido processo legal, do direito à ampla defesa, do contraditório. Clama-se a partir daí por justiça e para que sejam cumpridos os preceitos constitucionais.
Mas há algo mais grave, que merece a reflexão de todos. Quando a PF e o MP praticam abusos, acatados por juízes voluntariosos, ocorre muito mais do que uma injustiça contra o cidadão investigado; há grave ofensa à credibilidade dos tribunais, pois se passa a impressão de que são temperantes e protetores dos poderosos, quando, na verdade, estão fazendo cumprir a Constituição.
Sempre é bom lembrar as palavras do ministro Marco Aurélio Mello, do Superior Tribunal Federal (STF): “É o preço que se paga para viver num Estado Democrático de Direito, e é módico”.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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