Além da ação estatal de combate à lavagem de dinheiro, é de suma importância que haja um sistema de cooperação compulsória dos profissionais e empresas que atuam em setores mais sensíveis a essa prática ilícita. Porém, é preciso evitar excessos na prática do compliance.
Essa é a opinião do criminalista Pierpaolo Cruz Bottini. Livre docente do Departamento de Direito Penal Faculdade de Direito da USP, ele falou sobre os sistemas corporativos de combate à lavagem em entrevista à série “Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito”, na qual a que a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com algumas das principais personalidades do Direito sobre assuntos de relevância na atualidade.
Segundo Bottini, todas as legislações do mundo conjugam, de certa forma, dois pilares nessa área: a criminalização da lavagem de dinheiro e a implantação, imposta a determinados setores econômicos, de programas de compliance que abram canais de comunicação de atividades suspeitas.
O criminalista observa que esse segundo pilar já é uma realidade no meio empresarial. Ocorre que, por insegurança jurídica ou por falta de clareza das normas, os profissionais que atuam nesses setores acabam adotando cuidados em excesso em seus sistemas de integridade, o que termina por engessar a atividade das companhias.
“Esse é um fenômeno que nós chamamos de overcompliance. E é justamente esta a problemática que nós precisamos discutir: até que ponto esse excesso de cautela no âmbito do combate à lavagem de dinheiro está sendo contraproducente e até mesmo prejudicial, levando as empresas a gastar muito dinheiro com o compliance, apesar da pouca efetividade?”, questionou Bottini, que é titular da coluna Direito de Defesa, na ConJur.
Na visão do criminalista, agindo dessa forma as empresas acabam por prejudicar o combate ao crime, já que encaminham um enorme volume de informações que não é aproveitado pelo poder público. “Essa conduta sobrecarrega as instituições com dados que não são importantes. E dificultam o trabalho de investigação e de identificação daquilo que é realmente um ato de lavagem de dinheiro”, explicou o professor.
Diante desse cenário, prosseguiu Bottini, é preciso chamar a atenção das autoridades para que elas pensem em regras de combate à lavagem que sejam mais claras e racionais. “E talvez também em número um pouco menor, mas com mais qualidade e eficiência. Da mesma forma, é preciso que as empresas de compliance (que ajudam a formar esse arcabouço de integridade) também tenham essa racionalidade.”
Para isso, Bottini sugere que as empresas aprimorem seus filtros e padrões de comunicação, a fim de que as informações fornecidas às autoridades tenham mais qualidade. “Na doutrina internacional, o que se observa hoje, a partir de uma série de estudos elaborados nos Estados Unidos e na Holanda, é justamente um esforço no sentido de apontar caminhos para a racionalização desse fenômeno de overcompliance“, continuou o professor.
Segundo ele, esses estudos reforçam, acima de tudo, a necessidade de regras mais claras. “Se analisarmos a própria definição do crime de lavagem de dinheiro, o que encontramos é uma definição muito imprecisa. Até mesmo as definições do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) apresentam contradições, já que ora se define lavagem de dinheiro como a ocultação de bens de origem ilícita, ora como o mero recebimento de bens de origem ilícita, independentemente da sua ocultação”, explicou.
Da mesma forma, alguns especialistas entendem, por exemplo, que ao ocultar um bem proveniente de crime praticado pelo próprio autor, na chamada autolavagem, o agente não estaria praticando lavagem. “Essa falta de clareza na definição do próprio conceito por si só já dificulta as políticas de prevenção”, completou.
Para além disso, Bottini levanta questionamentos sobre o que se deve entender, afinal, por “ato suspeito”. Ou sobre as “operações de alto risco”. Para ele, tais conceitos, também imprecisos, geram distorções no combate ao crime. Algo que, aliás, tem acontecido no Brasil.
“No ano de 2022, por exemplo, o setor que mais comunicou operações suspeitas ao Coaf foi, como normalmente acontece, o setor de bancos, com cerca de cinco milhões de notificações. Já o segundo setor que mais fez comunicações foi o de notários e registradores, com 1,5 milhão de operações suspeitas. Mas é evidente que esse setor, pelas suas características, não deveria gerar tantas comunicações. E isso decorre de uma falha na regulamentação ou da má compreensão das regras. Por isso é tão importante fazer ajustes, pois se continuarmos com esse sistema pesado e impreciso, as empresas continuarão gastando recursos com compliance em vez de aplicá-los no setor produtivo”, concluiu o professor.
Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:
Entrevista publicada originalmente no Consultor Jurídico.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *