Por Jamil Chade
O Comitê de Direitos Humanos da ONU critica a transformação de juízes e procuradores no Brasil em políticos e pede medidas concretas para que o país coloque um ponto final na migração de autoridades do Poder Judiciário ao Executivo. Seria uma forma de lidar e barrar o que a ONU chama de “portas giratórias”.
Essas são algumas das propostas feitas pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU que, pela primeira vez em mais de uma década, realizou uma sabatina com o Brasil para examinar a situação dos direitos fundamentais no país.
O resultado é uma lista de preocupações graves em relação às violações e recomendações concretas para que o governo mude de forma radical a forma como lida com direitos humanos. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avaliará as recomendações e terá um período de três anos para informar aos peritos internacionais o que tem feito para cumprir com as sugestões.
Dependendo de sua resposta, o Comitê da ONU vai classificar o país e informar à Assembleia-Geral da ONU.
Em seu informe publicado nesta quarta-feira, o comitê afirma estar “preocupado com os relatos de falta de independência, incluindo alegações de “portas giratórias” entre o Judiciário e o Poder Executivo, que podem levar a conflitos de interesse, influência indevida e desigualdades baseadas em raça, no Sistema Judiciário; e com a falta de medidas eficazes para resolvê-los”.
Durante a sabatina realizada com o estado brasileiro, há um mês, o tema também foi alvo de um debate, com peritos da ONU alfinetando de forma indireta a situação do ex-juiz e atual senador Sérgio Moro, que ainda foi ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (PL). Foi o mesmo comitê que considerou que ele foi parcial no julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva.
Carlos Gomez Martinez, um dos peritos da ONU, confirmou que o órgão recebeu informações sobre o Brasil e sobre o que “ocorreu no caso Lula”.
“Todas as medidas devem ser tomadas para garantir a imparcialidade e aparência de imparcialidade na Justiça”, defendeu.
Entre as recomendações, a entidade pede a adoção de medidas para “evitar o fenômeno das “portas giratórias”, a fim de garantir a independência e a imparcialidade do sistema judiciário”.
Em outro trecho, o comitê “observa com preocupação os relatórios sobre interferências na independência do judiciário, alegações de assédio, intimidação de advogados que trabalham em casos políticos de alto nível e sobre a corrupção no sistema judiciário, particularmente nas áreas rurais”.
“O Comitê também está preocupado com os ataques verbais, inclusive de funcionários de alto escalão, contra o judiciário, incluindo a Suprema Corte”, disse.
Neste sentido, o órgão pede ao Brasil para “tomar todas as medidas necessárias para salvaguardar, na lei e na prática, a total independência, imparcialidade e segurança dos juízes e promotores”. O Estado deve:
Garantir que eles sejam protegidos de qualquer forma de pressão ou interferência indevida; que os procedimentos para a seleção, nomeação, suspensão, remoção e disciplinamento estejam em conformidade com o Pacto e com as normas internacionais relevantes;
Assegurar que existam salvaguardas suficientes, tanto na lei quanto na prática, para garantir a total independência e segurança dos advogados e que eles possam desempenhar suas funções legítimas sem qualquer interferência indevida.
Fracasso das medidas anticorrupção
Carlos Gomez Martinez explicou que, de fato, o atual governo Lula vem adotando medidas importantes no que se refere aos direitos humanos. Mas suas preocupações são “estruturais” e exigem iniciativas com impacto profundo.
Uma delas é a questão do combate à corrupção. Para ele, será “necessário aumentar os esforço para erradicar corrupção e impunidade em todos os níveis e garantir que todos sejam investigados”.
Em seu informe, o Comitê afirmou estar “preocupada com a falta de aplicação efetiva” de medidas de combate à corrupção, bem como com os atrasos nos processos e o acúmulo judicial”.
“Embora reconhecendo as informações recebidas sobre os resultados da operação “Lava Jato”, o Comitê está preocupado com os longos atrasos nos processos judiciais. O Comitê lamenta a escassez de informações recebidas sobre o resultado da Estratégia Nacional de Combate ao Suborno e à Lavagem de Dinheiro em sua luta contra a corrupção”, disse.
Diante desse cenário, os peritos pedem ao Brasil:
Aumentar seus esforços para erradicar a corrupção e a impunidade em todos os níveis; garantir a implementação efetiva da legislação e de medidas preventivas para combater a corrupção; e que todos os casos sejam pronta e devidamente julgados e os perpetradores punidos de forma proporcional à gravidade de seus crimes;
Assegurar a pronta finalização de todos os procedimentos judiciais relacionados à operação Lava Jato, de modo que as sentenças finais sejam proferidas em tempo hábil;
Reforçar a Estratégia Nacional de Combate ao Suborno e à Lavagem de Dinheiro Combater a impunidade e as violações de direitos humanos no passado.
Além da questão da corrupção, a ONU pede ao Brasil descriminalizar o aborto, revisar a Lei de Anistia que marcou o fim do regime militar, novas leis de combate à discriminação e criminalizar explicitamente os atos de discurso de ódio, além de dezenas de outras recomendações.
Eis os principais destaques do raio-x sobre o Brasil e as sugestões dos peritos da ONU:
Investigar omissão na pandemia
Além da questão do Judiciário, um destaque especial é dado ao direito à vida e a situação no Brasil, que levou a mais de 700 mil mortes pela pandemia durante o governo de Jair Bolsonaro. Se nos últimos anos as críticas contra a gestão do ex-presidente proliferaram, o documento da ONU pede que ações sejam tomadas.
O órgão critica as altas taxas de mortalidade por covid-19 no Brasil e pede que todas as violações relacionadas ao tratamento da pandemia sejam “prontamente e adequadamente investigadas, que os responsáveis sejam processados e, se condenados, punidos com sanções apropriadas”. O órgão ainda pede que as vítimas tenham acesso à reparação.
O Comitê está preocupado com as altas taxas de mortalidade por covid-19, impactando particularmente indivíduos afro-brasileiros, mulheres grávidas, povos indígenas e comunidades quilombolas e pessoas privadas de liberdade, entre outros; e com relatos sobre negligência no tratamento da pandemia; falta de medidas adequadas para prevenir mortes evitáveis, minimização da gravidade da covid-19 e falta de responsabilização.
O Comitê alerta que:
O Estado Parte deve garantir que quaisquer violações de direitos humanos relacionadas ao tratamento da pandemia sejam prontamente e adequadamente investigadas, que os responsáveis sejam processados e, se condenados, punidos com sanções apropriadas; e que as vítimas tenham acesso à reparação.
Criminalizar o discurso de ódio
O comitê ainda lançou um alerta sobre “os níveis crescentes de discurso de ódio, especialmente on-line, com base em raça, etnia, gênero, orientação sexual e status indígena, e até mesmo por autoridades de alto nível”.
“O Comitê lamenta a falta de uma estrutura legal adequada e eficaz para prevenir e punir o discurso de ódio e o fato de que ele não é explicitamente criminalizado”, disse.
Recomendações:
Fortalecer seus esforços, tanto por meio da aplicação da lei quanto por meio de atividades de conscientização, para combater o discurso de ódio e a incitação à discriminação ou à violência. Entre as medidas, destaca-se:
Criminalizar explicitamente os atos de discurso de ódio com base em todos os motivos proibidos pelo Pacto, inclusive raça, gênero e orientação sexual e identidade de gênero; e considerar a revisão de sua legislação para adotar as medidas necessárias para combatê-los efetivamente;
Tomar medidas eficazes para prevenir e combater o discurso de ódio, inclusive on-line, e condená-lo publicamente;
Assegurar que todos os casos de discurso de ódio sejam investigados minuciosamente, que os suspeitos sejam processados e, se condenados, punidos, e que as vítimas recebam os recursos adequados;
O comitê está preocupado também com os altos níveis de homicídios e crimes de ódio, que afetam desproporcionalmente os povos de ascendência africana, os povos indígenas e as pessoas LGBTI, particularmente os indivíduos transgêneros. Embora a Suprema Corte tenha decidido em 2019 que as disposições legais para proteger os indivíduos contra o racismo poderiam ser usadas em casos de homofobia, o Comitê lamenta a falta de uma legislação específica para criminalizar a homofobia:
Recomendações:
Considerar a revisão de sua legislação para introduzir uma definição separada de crime de ódio e para criminalizar explicitamente atos de crime de ódio em todas as bases proibidas pelo Pacto e fortalecer seus esforços para combater a intolerância, o preconceito, o viés racial e a discriminação.
Fortaler a capacidade dos agentes da lei de investigar crimes de ódio e discursos criminosos de ódio, inclusive na Internet, reforce o treinamento de juízes, promotores e agentes da lei sobre como lidar com crimes de ódio e garanta que todos os casos sejam sistematicamente investigados, que os perpetradores sejam responsabilizados com penalidades apropriadas e que as vítimas tenham acesso à reparação.
Fim da Lei da Anistia
Um dos aspectos destacados pela ONU é o combate à impunidade e às violações dos direitos humanos no passado. De acordo com o texto, o “Comitê observa com preocupação a falta de implementação das recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade, incluindo a reparação adequada das vítimas e a responsabilização dos perpetradores”.
“O Comitê saúda o compromisso do Estado Parte, durante o diálogo, de implementar as recomendações da Comissão. O Comitê lamenta a ausência de investigação adequada sobre as violações de direitos, inclusive os direitos dos povos indígenas durante a ditadura, incluindo o deslocamento forçado de suas terras tradicionais. O Comitê também está preocupado com a falta de compatibilidade da Lei de Anistia de 1979 com as disposições do Pacto”, afirmou.
Recomendações:
Intensificar seus esforços para garantir a implementação plena e efetiva das recomendações da Comissão Nacional da recomendações da Comissão Nacional da Verdade;
Investigar as alegações de abusos de direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, inclusive contra povos indígenas e outras minorias; processar os perpetradores e, se forem condenados, impor penalidades apropriadas e garantir o acesso das vítimas a recursos eficazes;
Considerar a revisão da Lei de Anistia de 1979 para garantir a conformidade com o Pacto.
Nova lei de combate à discriminação
O Comitê ainda está “preocupado com os relatos de discriminação profunda e generalizada e com os altos níveis de assédio e violência com base em raça, etnia, gênero, identidade gênero, identidade de gênero, orientação sexual, status socioeconômico e outros”.
Mas critica ainda “a falta de responsabilização por essas violações”. “Embora o Comitê tome nota das disposições legislativas e medidas políticas que tratam de grupos ou formas específicas de discriminação, ele lamenta a falta de uma legislação abrangente contra a discriminação que trate de todas as formas de discriminação. O Comitê também observa com preocupação a lacuna na legislação antirracismo e a falta de legislação que reconheça a orientação sexual e a identidade de gênero como motivos proibidos de discriminação”, destacou.
Recomendações:
Fornecer proteção efetiva contra todas as formas de discriminação; garantir que nenhuma discriminação ou violência seja tolerada e que tal conduta seja devidamente tratada e remediada;
Adotar uma legislação abrangente e uma estrutura política que proíba a discriminação, inclusive a discriminação interseccional, direta e indireta, em todas as esferas, tanto públicas quanto privadas, e em todas as bases proibidas pelo Pacto;
Adotar legislação específica sobre discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero.
O Comitê também está preocupado com o declínio da confiança pública no Sistema Judiciário, particularmente pelas comunidades de descendência africana, devido à percepção de tratamento desigual, discriminação racial e étnica e impunidade.
Para lidar com essa realidade, recomenda-se “abordar as desigualdades no sistema de justiça, aumentar o treinamento e as campanhas de conscientização entre os agentes da lei e o judiciário, inclusive o Ministério Público, sobre igualdade e não discriminação, e aumentar o número de pessoas de ascendência africana e de outras minorias raciais, bem como de mulheres, em todos os níveis do judiciário”.
Ataques contra a democracia e Marielle Franco
Um dos destaques da avaliação é a situação de grupos específicos diante de campanhas eleitorais e na função de seu trabalho.
O Comitê, por exemplo, se disse “preocupado com o aumento de ataques físicos, assédio verbal e intimidação contra jornalistas, especialmente repórteres do sexo feminino, inclusive por funcionários de alto escalão do governo”.
“O Comitê lamenta o uso de leis criminais, em especial disposições sobre crimes contra a honra, para intimidar jornalistas e censurar a liberdade de expressão”, destacou, alertando ainda para as restrições à liberdade de expressão do Projeto de Lei nº 2630/2020.
Recomendações:
Prevenir e combater todos os atos de assédio e intimidação contra jornalistas e defensores dos direitos humanos e garantir sua proteção efetiva;
Garantir que todas as alegações de assédio e intimidação sejam investigadas, que os perpetradores sejam levados à justiça e devidamente punidos e que as vítimas recebam a devida reparação;
Revisar a legislação que possa restringir indevidamente a liberdade de expressão; e considerar a descriminalização da difamação, calúnia e injúria e, em qualquer caso, restringir a aplicação da lei criminal apenas aos casos mais graves.
Neste sentido, o Comitê também alerta sobre os relatos de violência, assédio, intimidação e ameaças dirigidas a políticos e candidatos políticos durante as campanhas eleitorais, particularmente mulheres, afrodescendentes, povos indígenas e pessoas LGBTI, assim como sua baixa taxa de representação.
“O Comitê lamenta a falta de responsabilização e impunidade pela violência contra políticos, incluindo o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes”, disse.
Entre as recomendações, o órgão da ONU pede que o Brasil dê “pleno efeito ao direito de toda pessoa de participar de assuntos públicos sem discriminação.
Para isso, o Estado deve:
Proteger candidatos políticos e políticos, especialmente mulheres, pessoas afrodescendentes, povos indígenas e pessoas LGBTI, contra violência, assédio e intimidação; inclusive investigando, processando e responsabilizando os perpetradores, inclusive no caso de Marielle Franco, e fornecendo recursos adequados às vítimas;
Reforçar os esforços para alcançar a participação plena e igualitária de mulheres, afrodescendentes, povos indígenas, pessoas LGBTI e membros de grupos desfavorecidos e minoritários na vida política e pública, especialmente em cargos de tomada de decisão.
Camila Asano, diretora executiva da Conectas Direitos Humanos, afirmou que as “recomendações divulgadas agora pelo Comitê de Direitos Humanos somam-se a outras manifestações no âmbito internacional, como a do relator da ONU sobre os direitos à liberdade de assembleia e de associação — publicadas no início de julho – , de que a resolução e responsabilização de todos os envolvidos no caso Marielle Franco é central para a democracia brasileira”.
“Os assassinatos de Marielle e Anderson são exemplos de como a violência política impede a participação social plena de diversos grupos sociais no país”, disse.
Segundo ela, é ainda importante destacar ainda que o Comitê manifesta preocupação com o espaço cívico e com a segurança pública. “Nesses temas, os especialistas deixam evidente que leis que tentam ampliar a noção de terrorismo podem criminalizar movimentos sociais e que a letalidade policial está diretamente ligada à lógica do racismo”, disse. “Tornar essas recomendações em políticas efetivas é um passo importante que o governo brasileiro deve dar no enfrentamento aos problemas de direitos humanos estruturais. Para isso, é fundamental contar com a participação da sociedade civil”, completou.
Violência contra a mulher e aborto
O Comitê da ONU também se diz preocupado com os baixos níveis de participação das mulheres, em especial de grupos marginalizados, como mulheres afrodescendentes, quilombolas, povos indígenas e mulheres LGBTI nos setores político, judiciário e outros setores públicos.
O Comitê também está preocupado com o fato de que, embora um sistema de cotas tenha sido introduzido para melhorar a representação política das mulheres, a cota não é efetivamente implementada.
Recomendações:
Tomar medidas para alcançar a participação plena e igualitária das mulheres na vida pública, em particular em cargos de tomada de decisão, se necessário por meio de medidas especiais temporárias apropriadas;
Alocar recursos financeiros e humanos suficientes e sustentáveis para a implementação de programas de igualdade de gênero e garantir o uso eficaz dos recursos;
Na avaliação do Comitê, há uma forte preocupação diante dos relatos sobre os altos níveis contínuos de feminicídio e violência contra a mulher, em particular de mulheres afrodescendentes e quilombolas. O Comitê também está preocupado com o fato de que muitas mulheres não denunciam ou não buscam assistência.
“O Comitê lamenta a falta de uma lei abrangente sobre a violência de gênero, bem como a insuficiência e a inadequação dos serviços de proteção e assistência e a falta de políticas culturalmente sensíveis para lidar com a violência contra as mulheres indígenas e afrodescendentes”, disse.
Recomendações:
Adotar uma lei abrangente sobre violência baseada em gênero que vise prevenir, combater e punir todas as formas de violência contra mulheres e meninas, tanto na esfera pública quanto na privada; incluindo medidas de proteção específicas para mulheres afrodescendentes e quilombolas; garantir a implementação efetiva da legislação existente e sua conformidade com o Pacto; adotar políticas culturalmente apropriadas para mulheres indígenas e mulheres afrodescendentes; e considerar a revisão da Lei de Alienação Parental (12.318/2010);
Assegurar que todos os casos de violência contra a mulher, inclusive a violência doméstica, sejam investigados minuciosamente, que os perpetradores sejam processados e, se condenados, punidos; e que as vítimas tenham acesso a recursos e meios de proteção, inclusive em áreas rurais e remotas;
Estabelecer um mecanismo eficaz para facilitar e encorajar as mulheres e meninas vítimas de violência, inclusive violência doméstica, a denunciar os casos à polícia e aumentar a conscientização sobre a natureza criminosa de tais atos, a fim de superar a subnotificação;
Alocar recursos para expandir a rede de abrigos e outros serviços de apoio a unidades especializadas para mulheres em delegacias de polícia e hospitais em todo o país, bem como para treinar policiais, juízes e promotores para lidar com casos de violência de gênero.
Interrupção voluntária da gravidez e direitos reprodutivos
O Comitê afirma estar “preocupado com os relatos de que as mulheres ou meninas grávidas que têm o direito legal ao aborto nem sempre podem usufruir de seu direito na prática, devido ao medo de serem processadas, à negação de acesso a hospitais e a um ambiente hostil, inclusive em áreas rurais”.
Recomendações:
Alterar a legislação para garantir o acesso seguro, legal e efetivo ao aborto, inclusive em áreas rurais e remotas, onde a vida e a saúde da mulher ou menina grávida estão em risco, ou onde levar uma gravidez a termo causaria à mulher ou menina grávida dor ou sofrimento substancial, mais notadamente quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto ou quando a gravidez não é viável;
Revogar as leis que impõem punição criminal às mulheres e meninas que se submetem a abortos legais e aos médicos que as assistem;
Assegurar o acesso irrestrito a serviços de saúde sexual e reprodutiva e à educação sobre saúde sexual e reprodutiva, inclusive com o objetivo de evitar gravidezes indesejadas e combater efetivamente a estigmatização de mulheres e meninas que recorrem ao aborto, em áreas urbanas e, em especial, rurais.
Direito à vida
A ONU ainda criticou o fato de que “inúmeros relatórios indicam que o uso de força letal por policiais e pessoal de segurança tem permanecido excessivamente alto por mais de uma década, afetando desproporcionalmente jovens afro-brasileiros e pessoas LGBTI”.
O Comitê também está preocupado com o fato de que, apesar da proibição do Supremo Tribunal Federal de incursões policiais em bairros de baixa renda no Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19, exceto em “casos absolutamente excepcionais”, uma operação policial na favela do Jacarezinho em 2021 resultou na morte de 27 moradores.
Recomendações:
Assegurar que a legislação doméstica e os procedimentos operacionais que regem o uso da força e de armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei estejam em total conformidade com os Princípios Básicos sobre o uso da força e de armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e com a Orientação de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre Armas Menos Letais na Aplicação da Lei;
Assegurar que todos os funcionários responsáveis pela aplicação da lei recebam sistematicamente treinamento sobre o uso da força com base nesses Princípios Básicos e Diretrizes e assegurar que os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade sejam estritamente observados na prática.
Uso excessivo da força e execuções extrajudiciais
O Comitê está preocupado também com o uso de perfis raciais e com a falta de responsabilização pelo uso excessivo da força e execuções extrajudiciais por agentes da lei e, em particular, com a ausência de investigações, processos e condenações eficazes, oportunas e independentes dos responsáveis, bem como com a falta de reparações apropriadas para as vítimas.
O Comitê também observa com preocupação os relatos sobre forças de segurança destruindo ou manipulando provas ou relatando falsamente casos como “auto de resistência” para encobrir mortes ilegais.
Recomendações:
Redobrar seus esforços para investigar prontamente, de forma independente, imparcial e completa todas as alegações de uso excessivo da força e execuções extrajudiciais, garantir que todos os perpetradores sejam processados e, se considerados culpados, punidos; e garantir o acesso à justiça e fornecer reparação e compensação completas para as vítimas de tais violações; inclusive em relação à invasão do bairro Complexo da Maré e às operações policiais no Jacarezinho e na Vila Cruzeiro.
Monitorar a aplicação do “auto de resistência” para evitar que seja usado como uma forma de encobrir mortes ilegais;
Considerar o uso de câmeras corporais pelos policiais nos Estados e na Federação, entre outras estratégias para melhorar o monitoramento e a prestação de contas;
Condições de detenção
Um aspecto permanente da preocupação da ONU tem sido as condições de detenção, incluindo superlotação severa, uso excessivo e indiscriminado da força por parte dos agentes, sanções disciplinares degradantes e infraestrutura inadequada e acesso a direitos básicos como alimentação, água, higiene, incluindo produtos de higiene menstrual, e assistência médica.
O Comitê ainda está preocupado com o alto nível de prisão preventiva e com a falta de audiências de custódia em todos os municípios.
Recomendações:
Tomar medidas imediatas para reduzir significativamente a superlotação nas prisões, inclusive por meio da aplicação mais ampla de medidas não privativas de liberdade como alternativa à prisão;
Intensificar seus esforços para melhorar as condições de detenção e garantir o acesso adequado a alimentos, água potável e assistência médica para as pessoas detidas em todos os locais de privação de liberdade;
Garantir que as mulheres detidas tenham acesso adequado a cuidados médicos e outros serviços necessários que atendam às suas necessidades específicas, inclusive acesso gratuito a produtos higiênicos menstruais.
Eliminação da escravidão
O Comitê destacou ainda sua preocupação com o os cortes no orçamento para o combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho forçado, baixos níveis de processos criminais, imposição de penalidades administrativas ineficazes, falta de disposições para garantir recursos adequados e eficazes e a descontinuação temporária das “listas sujas” de empresas.
O Comitê também está preocupado com os relatos sobre as dificuldades enfrentadas pelas vítimas para fazer denúncias on-line de áreas remotas.
Recomendações:
Fortalecer os esforços para combater o trabalho forçado e o tráfico de pessoas, inclusive aumentando o orçamento alocado e as inspeções, estabelecendo mecanismos de denúncia eficazes e acessíveis e processando e punindo efetivamente os perpetradores;
Fornecer às vítimas proteção, reparação e assistência, inclusive para reintegração;
Considerar a ratificação do Protocolo de 2014 à Convenção sobre Trabalho Forçado da OIT.
Direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes
Um aspecto ainda importante do informe é a preocupação do Comitê com a “falta de implementação efetiva do processo de demarcação de terras, o que leva a um aumento de conflitos de terra, invasão ilegal e exploração de recursos, além de ataques e assassinatos de povos indígenas”.
O órgão ainda criticou o desmantelamento da Funai, nos últimos anos, e alerta para “os relatos de que o princípio do consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas e das comunidades quilombolas em assuntos relativos a seus direitos é rotineiramente violado”.
“Comitê também está preocupado com a limitação do Marco Temporal para reivindicar a demarcação de terras indígenas e lamenta que a titulação de terras para as comunidades quilombolas esteja progredindo muito lentamente”, disse.
Recomendações:
Acelerar o processo de demarcação e titulação de terras indígenas e quilombolas, inclusive garantindo recursos adequados para a implementação;
Defender o direito dos povos indígenas às terras e territórios que tradicionalmente possuem ou ocupam, inclusive revisando sua legislação atual e rejeitando e encerrando a aplicação e institucionalização da doutrina do Marco Temporal;
Intensificar seus esforços para evitar conflitos sobre o uso da terra, inclusive fornecendo garantias em relação às terras tradicionalmente pertencentes ou ocupadas por povos indígenas e comunidades quilombolas; e combatendo a invasão ilegal e as atividades ilegais de empresas madeireiras, mineradoras, pesqueiras e de agricultura em larga escala;
Fornecer proteção efetiva, bem como soluções para todas as violações de direitos humanos resultantes da falta de proteção legal efetiva das terras tradicionalmente pertencentes ou ocupadas por povos indígenas e comunidades quilombolas.
Publicado originalmente no UOL.
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