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Coronajúris II: juízes, Malafaia, a saúde pública e a estagiariocracia

Coronajúris II: juízes, Malafaia, a saúde pública e a estagiariocracia

Por Lenio Luiz Streck

Dois casos bizarros em meio ao coronavírus, que mostra o coronajúris. Vamos lá.

O direito brasileiro, sempre pioneiro, dá mais duas aulas. A primeira vem do Judiciário do Rio de Janeiro. O título é: “como ser legalista e… ferir a legalidade”. Subtítulos: Como atentar contra o Direito dizendo cumprir o Direito. Como matar o Direito por dentro do Direito.

Vejam a manchete: “Justiça do Rio nega pedido para suspender cultos de Silas Malafaia por coronavírus“. Parece absurdo?

Espere para ver a “fundamentação” (sic).

O juiz que prolatou a decisão afirmou que o princípio da legalidade estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como não há decreto do Executivo ou lei do Legislativo afastando, por ora, o direito à participação em cultos religiosos, não cabe ao Judiciário, diz o juiz, “fazer integrações pelo método analógico, quando não há lacuna na norma”.

A aplicação do princípio da legalidade é um dos maiores sinais da concepção de Direito que pode ter um juiz. Vejam a maneira estrita com que o juiz usa o termo “legalidade”. Há um problema ali. Isso não é legalidade. É legalismo. Tosco.

E explico a razão disso: legalidade é algo que envolve todos os fundamentos que dão sentido à prática do Direito. Dworkin diria que a interpretação correta, adequada, em Direito é aquela que justifica a prática colocando-a sob sua melhor luz. Será que se apegar a uma frágil ideia de legalidade, já ultrapassada no século XIX, é colocar o Direito sob sua melhor luz?

Será mesmo que ainda estamos na época do dualismo, racionalístico-positivista, de que Direito é uma coisa, moral é outra coisa, Direito não responde tudo, juiz ou é ativista ou se cala? Ora, não pode ser mais assim. Não é mais assim. Porque a filosofia vem antes. O problema é que, a práxis brasileira, dogmática, dogmatizada e dogmatista, insiste nesses dualismos. Insiste nessa tese de que não há legalidade fora da “letra fria” (sic) da lei.

Falo disso na segunda edição do meu Dicionário, já em pré-venda, no novo verbete sobre literalidade. O que o juiz do Rio fez, pegando o velho exemplo da Teoria do Direito foi, diante da regra “Proibido cães na plataforma“, proibir o cão-guia do cego. E, pasme, autorizar o urso. E jacarés. Tigres. Com dentes enormes. Pior: E ainda saiu como “obediente ao direito posto”.

Como se o Direito não fosse todo um conjunto a ser interpretado como um todo coerente. Textualismo ad hoc. O Judiciário não faz nada enquanto não houver, letrinha por letrinha, uma ordem… até que o juiz não queira assim, não é? O paradigma da subsunção. E quando o resultado agrada, claro. É a deontologia consequencialista. Esse mesmo juiz, quando lhe interessa, julga de forma voluntarista. É só ver decisões em sua carreira.

Mas vejam, meu problema não é com este juiz, neste caso. Não o conheço. Nem preciso usar meu espaço para fazer campanha contra ninguém. Não quero brigar. Nem com o juiz, nem com a igreja do Malafaia. Nem com as igrejas que insistem em descumprir os princípios que regem a saúde pública. Além da solidariedade que deve ser ínsita mormente em tempos de crise. Meu problema é com uma doutrina — porque o que o juiz do Rio fez não é incomum — que insiste até hoje em “interpretação literal”. Em “letra fria”. E ainda acha que isso é “positivismo”. Isso é coronajúris. Ainda na aula de hoje passei para meus alunos antigo artigo meu que trata disso.

No clássico caso Riggs v. Palmer, em que o neto matou o avô para ficar com a herança, nossa complacência doutrinária entenderia — nítida na decisão sob comento — que, não havendo regrinha expressa-literal-tintim-por-tintim, o neto assassino que herde. Ora, não pode ser assim. Não é assim. E assim não foi. Porque o Direito diz que não é assim.

Porque Direito não é só um conjunto de regras. É uma questão de princípio. Autêntico. O problema? Não houve, até hoje, uma adequada compreensão ou mesmo recepção de uma boa teoria dos princípios, que exigisse um ajuste institucional por parte do intérprete que invoca um padrão principiológico. Claro: estamos ainda no tempo em que legalidade é “aplicar a letra da lei” (o texto acima indicado trata disso e o verbete “positivismo”, de mais de 70 páginas, também deixa isso claro, no meu Dicionário de Hermenêutica). Porque não temos um rigor epistemológico. Deu nisso.

E a pandemia segue. Pandemia jurídica e sanitária. E os cultos também, até segunda ordem. Em Porto Alegre tem um culto anunciado com 400 pastores. Para o dia 23. Até que alguém literalmente diga o contrário. Literalmente literalmente.

Vejam. Eu poderia ter sido irônico. Sarcástico. A decisão do juiz permitiria. Afinal, as lojas dos shoppings estão fechadas… mas o culto do Malafaia, não. Porque o juiz assim decidiu… mas, preferi usar as ferramentas teóricas do Direito. Afinal, sou professor e tenho muitos alunos que me cobram coerência. E o tempo não está para brincadeiras.

A segunda lição de Direito vem de decisão do Recife. Um juiz federal autorizou que um quase-advogado ou estagiário-advogado exerça a profissão de advogado. Mesmo sem OAB. Ele concedeu medida provisória de urgência. Sim, vocês leram direito. Pior: o pedido vem assinado por ele mesmo, não advogado. Baseado em quê? Quem vai saber.

Vejam as duas pontas do Direito brasileiro. Vejam em que nos metemos. No RJ, um juiz se diz legalista e decide contra o Direito, contra tudo e contra todos, literalmente (se agora me permitem o trocadilho). No Recife, o juiz decide contra legem. E contra o Direito. Tudo no mesmo dia. É demais para mim.

Malafaia, malatesta, estagiariocracia, literalismo ad hoc, voluntarismo ad hoc, parece que o coronajúris está pegando pesado.

Tem chance de o Direito dar certo no Brasil?

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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