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Corrupção e corrupções

Corrupção e corrupções

“Quais fraudes levaram a estes contratos e quais valores foram direcionados aos partidos políticos?”

Muitos são os aspectos do julgamento de Lula que despertam interesse para reflexões (jurídicas, políticas, sociológicas, etc.).

Aproveito que estou em Barcelona, concentrado na escrita da minha tese de doutorado, para tratar de um aspecto que é objeto do meu estudo: de qual corrupção falamos?

A pergunta pode parecer banal ou mesmo óbvia, mas rios de tinta já foram escritos tentando respondê-la.

Em outras palavras, o que é corrupção?

Todos temos, intuitivamente, uma noção do que seja corrupção.

Pensamos na traição do interesse público, no recebimento de vantagens ilícitas, na concessão de benesses indevidas.

Pensamos, ainda, em uma estrutura corrupta, na qual as funções do Estado são deturpadas para beneficiar interesses privados.

Corrupção lembra apodrecimento, câncer, malignidade.

Mas… vivemos em um Estado de Direito, criação contemporânea que, dentre suas características marcantes, adota a ideia de que alguém só pode ser condenado por um crime, se tiver praticado uma conduta exatamente como ela está escrita na lei penal.

A isso chamamos “princípio da tipicidade”.

A lei penal contém os “tipos”, que são descrições de condutas. O exemplo clássico é o do art. 121 do Código Penal: “matar alguém”.

Logo, homicídio não é qualquer conduta que ao final faça surgir um cadáver. Mas só aquele comportamento que implicar em uma pessoa matando a outra.

O problema, retomando o início do texto, é que “corrupção”, no sentido vulgar que adotamos, abarca uma série de condutas completamente diferentes.

Por essa razão, as leis penais dos diversos países tentam prever comportamentos mais ou menos definidos, criando tipos penais diferentes para cada modalidade de “ato corrupto”.

No Brasil, temos a corrupção ativa (art. 333 do CP) e a passiva (art. 317 do CP), por exemplo.

A primeira é praticada por quem oferece ou promete “vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.

A segunda, na qual Lula foi condenado, por quem solicita ou recebe “para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

Elemento essencial para que se possa falar em cometimento do crime de corrupção passiva no Brasil é a locução “em razão da função”.

Em outras palavras, um agente público receber um presente de um amigo, por seu aniversário, pode ser imoral, mas não será o crime de corrupção passiva, se não se comprovar que só existiu o presente em razão da função que ele exercia.

Como é muito difícil apurar em um processo qual era o intuito de alguém ao oferecer ou dar uma vantagem a um agente público – não temos como entrar na mente do ofertante -, a doutrina e a jurisprudência construíram, ao longo das décadas, a ideia de que era necessário identificar o que é que se queria em troca.

Dito de forma mais técnica, só haveria corrupção se fosse possível identificar o quid pro quo, ou seja, o toma-lá-dá-cá.

A construção por trás deste entendimento é simples:

– O ônus – a obrigação processual – de provar cabe apenas à acusação;

– A acusação não tem como saber o que se passava na mente de quem deu ou recebeu a vantagem;

– Portanto, é preciso existir um ato concreto que permita ligar as coisas.

Assim, mesmo sem a lei dizer expressamente que é necessário existir o tal “ato de ofício” – ou seja, aquilo que o agente público fez ou prometeu fazer em troca da vantagem -, a única solução dentro do Estado de Direito – com a redação que tem o nosso tipo penal – é essa.

Outros países adotam saídas diferentes. Existem tipos penais prevendo a “corrupção posicional”, que é o mero recebimento de qualquer vantagem enquanto se está em um cargo.

Vejam que é diferente dizer “enquanto está em um cargo” e “em razão de um cargo”. A primeira é objetiva; a segunda, subjetiva.

Há ainda a “corrupção consequente”, daquele que recebe as vantagens depois de deixar o cargo ocupado, como uma recompensa pelos serviços prestados.

Mas nenhum destes tipos penais existe em nossa legislação.

Daí a argumentação da defesa de Lula, apontando que faltou à acusação – e aos juízes que analisaram o caso – dizer qual teria sido o ato praticado por Lula.

O voto do revisor, Des. Paulsen, dirigiu-se a este problema.

Segundo disse, Lula influenciou a nomeação de diretores na Petrobrás que, ao longo dos anos, permitiram desvios em benefício do cartel de empreiteiras que, em troca, pagaram propinas aos partidos da base governista.

Não ouvi no voto, contudo, em quais circunstâncias isso teria ocorrido.

Quais diretores, por qual período?

Em quais contratos teria havido desvio, de quanto?

Quais fraudes levaram a estes contratos e quais valores foram direcionados aos partidos políticos?

Quando Lula teria sabido dos desvios e, portanto, à partir de quando deveria tê-los afastado?

É possível que estes elementos – absolutamente essenciais para a legalidade da condenação – estejam no voto escrito, que deve se tornar público nas próximas semanas.

Por hora, contudo, passou a impressão de que Lula foi condenado pelo “conjunto da obra”.

Ou, dizendo de outro modo, com base em um conceito não-jurídico de corrupção.

Um conceito que está na cabeça de todos nós, mas não na lei.

Texto publicado originalmente no Huff Post Brasil.

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