Por Renata Miranda Lima[1], Juliana Souza Pereira[2] e Raíssa M. L. M. Musarra[3]
Em 30 de janeiro de 2020, o Diretor Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou o atual surto uma emergência de saúde pública de interesse internacional[4]. Na China, mais de 500 casos foram confirmados nas prisões[5], funcionários disseram que haviam criado um hospital especializado com equipes organizadas para realização de testes. Para prevenir surtos, o governo do Irã libertou 70.000 pessoas da prisão, à exceção dos prisioneiros políticos. Os requisitos seriam que o preso testasse negativo para COVID-19, que tivesse cumprimento de pena até 5 anos e pagasse fiança, a prioridade foi dada às pessoas com problemas de saúde subjacentes[6].
No Brasil, em 17 de março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça publicou a recomendação nº 62 aos Tribunais e a todo o sistema de justiça brasileiro com a finalidade de prevenir a propagação da pandemia de Covid-19 no sistema de carcerário bem como ao sistema socioeducativo brasileiro. Destaca-se que esta recomendação foi divulgada e aplaudida pela ONU – Organização das Nações Unidas[7].
Observa-se que conteúdo da recomendação contém pontos cruciais – redução do ingresso de pessoas no sistema prisional, redução de ingresso de pessoas no sistema educativo, retirada do sistema prisional de pessoas entre o grupo de risco e recomendações para os juízes da custódia – objetivando a contenção da proliferação do vírus para evitar uma catástrofe maior que pode vir a eclodir no sistema prisional brasileiro, afetando toda a população e o sistema público de saúde, que encontra dificuldades na absorção da demanda atual. Superlotação, má nutrição e falta de higiene são características do sistema carcerário brasileiro, consideradas fatores críticos para a proliferação da doença ou ampliação de seus efeitos[8].
Para tanto, o Conselho Nacional de Justiça faz diversas recomendações aos atores que compõe o sistema de justiça, especialmente aos juízes relativamente aos prazos e realização de audiências. Contudo, a principal recomendação é voltada à redução do contingente de pessoas encarceradas neste momento de epidemia mundial ocasionada pelo coronavírus (Covid-19).
Considera-se que a recomendação visa proteger a Saúde Pública, neste caso, agentes penitenciários, pessoas privadas de liberdade, magistrados, servidores e agentes públicos que integram o sistema de justiça penal, prisional e socioeducativo, com especial atenção às pessoas que compõe o grupo de risco: idosos, gestantes, pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, como diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções[9].
Às varas da infância e da juventude a recomendação é de que, na fase de conhecimento e apuração, seja dada preferência à aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto e que se revisite as decisões que determinaram internação provisória em relação a gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por criança de até doze anos de idade ou por pessoa com deficiência, assim como indígenas, adolescentes com deficiência e demais pessoas que se enquadrem em grupos de risco.
Também é recomendado que nas unidades que estão com superlotação, haja vista a facilidade de proliferação do vírus, sejam aplicadas, preferencialmente, medidas em meio aberto. Aos magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal, recomenda-se que reavaliem as prisões provisórias nos termos do 316 do CPP, principalmente de mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos, idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco; pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade determina, locais que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, às pessoas que estejam sob ordem de interdição, submetidas à medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que estejam em instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus. No caso das medidas com aplicação de internação-sanção em curso é sugerida reavaliação para mudança do semiaberto para o meio aberto, que se atente à aplicação do instituto de suspensão ou remissão e que sejam reavaliadas as decisões que determinaram a aplicação mais grave prevista no art. 122, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Verifica-se que o STJ vem aplicando essa medida[10].
Quanto os juízes da execução é recomendado a suspensão temporária do dever de apresentação regular em juízo das pessoas em cumprimento de pena no regime aberto, prisão domiciliar, penas restritivas de direitos, suspensão da execução da pena (sursis) e livramento condicional, pelo prazo de noventa dias.
Aos juízes de competência cível, o CNJ recomenda, no caso de prisão em razão do não pagamento de alimentos, que seja considerada a possibilidade de colocação da pessoa em prisão domiciliar.
Outro gargalo de ingresso de pessoas no cárcere é a custódia. A este respeito, o CNJ recomenda aos magistrados que considerem a pandemia do Covid-19 como motivação idônea, na forma prevista pelo art. 310, parágrafos 3º e 4º , do Código de Processo Penal[11], para que relaxem a prisão ilegal, conceda a liberdade provisória considerando o grupo de pessoas que estão em risco diante da pandemia.
Diante da breve análise das recomendações do CNJ nº 62 verifica-se que as medidas são dirigidas à redução da população carcerária nos sistemas prisional e socioeducativo brasileiros. A recomendação busca afastar do sistema penal principalmente as pessoas consideradas do grupo de risco em razão do alto índice de transmissibilidade do Covid-19, tendo em vista fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade das unidades prisionais, as dificuldades para na observância dos procedimentos mínimos de higiene, insuficiência de equipes de saúde, entre outros, características inerentes ao “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 347[12].
Destaca-se que medidas de desencarceramento vem sendo adotadas por outros países[13] com a finalidade de conter o surto e consequências mais nefastas. No caso do Brasil, o alastramento da Covid-19 fará com que cresça o número de pessoas contaminadas que precisarão ser atendidas pelo SUS, o qual, dado o desmonte pelo que passou nos último período e o descaso com que é tratado, certamente não terá capacidade e estrutura para tanto, gerando assim, um pico no número de mortes.
Diversas pesquisas e estudos[14] apontam que o sistema carcerário está à gota d´água e este cenário se desenha diante do aumento de pessoas presas conjugado à ausência de estrutura física e de pessoal para a garantia de condições mínimas de sobrevivência dentro do cárcere. Neste momento de pandemia, as decisões tomadas sem o devido amadurecimento ou reflexão podem acarretar motins e rebeliões.
Por tais razões é necessário que as instituições públicas, órgãos Estatais, Entidades, Governadores e demais autoridades reflitam o peso de suas decisões, vez que o sim ou o não, especialmente em tempo de pandemia podem salvar ou dilacerar milhares de vidas.
No que tange à população em cárcere, destaca-se que as pessoas sob controle e custódia do Estado são responsabilidade deste e a omissão Estatal na garantia do direito à saúde, à vida, à integridade física e à dignidade humana gera responsabilidade civil, inclusive pode acarretar a responsabilização nas Côrtes e Comitês Internacionais conforme previsão do Estatuto de Roma em seu artigo 7º que dispõe sobre o crime contra a humanidade e das Regras de Mandela[15].
Esta reflexão não está distante da realidade carcerária brasileira vez que há 4 casos suspeitos em São Paulo, 4 casos suspeitos no Rio de Janeiro[16] e 2 casos confirmados de policiais penais que atuavam no complexo Penitenciário da Papuda em Brasília[17]. As possibilidades de alastramento são reais diante das condições estruturais. No mesmo seguir, não nos esqueçamos que parte considerável da população população carcerária tem 30 vezes mais casos de tuberculose[18][19], além de outros fatores de risco que a insere no grupo de risco.
Nesta toada, considera-se que as recomendações do CNJ são necessárias e, apesar de não terem força vinculante, dada a liberdade conferida ao exercício de decidir, é importante que a classe de advogados, magistrados e todos atores do sistema de justiça unam forças para a concretização das regras, princípios e garantias do Estado democrático de direito, na efetivação do exercício da cidadania e do cumprimento da Carta Constitucional, atentando-se ao cumprimento da recomendação nº 62 do CNJ, tomando para si a responsabilidade do peso de suas canetas, de suas ações e omissões a vida de pessoas em cárcere, bem como os reflexos de decisões para toda a sociedade e sistema de saúde.
Vale frisar que, de acordo com a nova orientação publicada pela OMS[20], o esforço global para combater a propagação da doença pode falhar sem a devida atenção às medidas de controle de infecção nas prisões e que o acesso à informação e a provisão adequada de assistência médica, inclusive para transtornos mentais, são aspectos essenciais na preservação dos direitos humanos nesses locais.
Além das medidas contidas na Recomendação, outras quanto à proteção individual como uso de máscaras, medidas ambientais, medidas físicas de distanciamento, considerações para restrição de acesso e limitações de movimento (inclusive quanto a funcionários com possível exposição externa) deveriam ser adequadas ao sistema prisional brasileiro para minimizar a vulnerabilidade desta população enquanto potencial linha de frente em eventuais decisões sobre quem pode viver e quem deve morrer, amplificadas pela pandemia.
[1] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia ESA/OAB-SP (2020). Mestre pela Universidade Nove de Julho em Direito (2018-2020). Coordenadora Adjunta do Núcleo de bolsas e desenvolvimento Acadêmico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM (2019-2020). Atuante em ações Advocacy pelo curso Advocacy Hub. Pós-Graduada pela Universidade Castilla La Mancha – UCLM em negociação, conciliação e mediação em resolução de conflitos (2018). Pós-Graduada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM em parceria com o Instituto Ius Gentium Conimbrigae (IGC) Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direitos Fundamentais Internacionais (2017). Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE (2016).
[2] Advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2015. Mestranda do Programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidade (Diversitas) da Universidade de São Paulo (2019-2021). Pós-Graduada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM em parceria com o Instituto Ius Gentium Conimbrigae (IGC) Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (2019). Co-coordenadora Jurídico-Parlamentar na Mandata Quilombo da Deputada Estadual por São Paulo Erica Malunguinho. Coordenadora Chefe do Departamento de Bolsas de Estudos e Desenvolvimento Acadêmico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (2019-2020), Vice-presidente da Comissão da Jovem Advocacia da OAB Seccional São Paulo (2019-2021). Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Ações Antidiscriminatórias do Grupo Prerrogativas. Membra do Coletivo Independente de Advogadas e Advogados Negr@s. Formada em Advocacy pelo Advocacy Hub (2019).
[3] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia ESA/OAB-SP (2020). Pós-graduada em Direito Público (UGF); Mestre e Doutora em Ciências Sociais (UFMA; UFPA) com estágio Sanduíche na Universidade Paris XIII (Sociologie/Droit). Pós-doutoranda em Ciências Ambientais (IEE/USP).
[4] WHO. Preventing COVID-19 outbreak in prisons: a challenging but essential task for authorities. Disponível em:
http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-determinants/prisons-and-health/news/news/2020/3/preventing-covid-19-outbreak-in-prisons-a-challenging-but-essential-task-for-authorities. Acesso em: 07 de abril de 2020.
[5]PENAL REFORM. Coronavirus: Healthcare and human rights of people in prison https://cdn.penalreform.org/wp-content/uploads/2020/03/FINAL-Briefing-Coronavirus.pdf, 16 de março de 2020. Consulta em: 07 de abril de 2020
[6] PENAL REFORM. Coronavirus: Healthcare and human rights of people in prison https://cdn.penalreform.org/wp-content/uploads/2020/03/FINAL-Briefing-Coronavirus.pdf 16 de março de 2020. Consulta em: 07 de abril de 2020
[7] ONU. ONU divulga recomendação do CNJ sobre prevenção do coronavírus em prisões.Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-divulga-recomendacao-do-cnj-sobre-prevencao-do-coronavirus-em-prisoes/>. Acesso em 06/04/2020.
[8] WHO, WORLD HEALTH ORGANIZATION. Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention. Interim guidance 15 March, 2020.
[9] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça-CNJ. Recomendação 62º. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em 06/04/2020.
[10] BRASIL. STJ. Ministro substitui prisão por outras medidas cautelares com base na Recomendação 62 do CNJ. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Ministro-substitui-prisao-por-outras-medidas-cautelares-com-base-na-Recomendacao-62-do-CNJ.aspx>. Acesso em 06/04/2020.
[11] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça-CNJ. Recomendação 62º. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em 06/04/2020.
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 347. Disponúvel em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298600>. Acesso em 06/04/2020.
[13] BRASIL, Globo. Irã autoriza a saída de 70 mil presos temporários depois da confirmação de detentos. Disponível em:<https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/12/veja-quais-medidas-foram-adotadas-pelos-paises-mais-afetados-pelo-coronavirus-para-combater-a-pandemia.ghtml>. Acesso em 03/04/2020.
[14] LIMA, Renata Miranda. Albuquerque, Carolina. O estado de coisas inconstitucional: Caminhos adotados pelo judiciário brasileiro. Disponível em: <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/9004>. Acesso em 06/04/2020.
[15] BRASIL. Decreto nº 4.388 de 2002. Estatuto de Roma. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm>. Acesso em: 06/04/2020.
[16] UOL. Sindicato diz que presídios de SP têm primeiros casos de Covid – 19; SAP nega. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/20/presidios-de-sp-tem-primeiros-casos-de-covid-19.htm>. Acesso em 07/04/2020.
OLLIVEIRA, Cecília. The Intercept. Coronavírus nos presídios: Há pelo menos 4 casos suspeitos na cadeia mais superlotada no Rio de Janeiro. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/03/18/coronavirus-presidios-rio-witzel/>. Acesso em 07/04/2020.
EXAME. Em alerta por coronavírus, prisões já enfrentam epidemia de tuberculose. Disponível em:<https://exame.abril.com.br/brasil/em-alerta-por-coronavirus-prisoes-ja-enfrentam-epidemia-de-tuberculose/>. Acesso em 07/04/2020.
AMORIM, Paulo Henrique. Presídios de São Paulo têm primeiros casos de Covid – 19. Disponível em: <https://www.conversaafiada.com.br/brasil/presidios-de-sp-tem-primeiros-casos-de-covid-19>. Acesso em 07/04/2020.
[17] BRASÍLIA. Coronavírus: Sistema Penitenciário do DF registra dois casos. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/04/05/coronavirus-sistema-penitenciario-do-df-registra-2-casos-de-covid-19.ghtml>. Acesso em 06/04/2020.
[18] Atente-se que fatores como triagem inadequada e falta de isolamento para detentos infectados são apontados como favorecedores da disseminação da doença.
[19] SBM, SOCIEDADE BRASILEIRA DE MICROBIOLOGIA. População carcerária tem 30 vezes mais casos de tuberculose. Diponível em: https://sbmicrobiologia.org.br/nota-da-sociedade-brasileira-de-microbiologia-sobre-o-enfrentamento-da-pandemia-pelo-corona-virus/, 23 de abril de 2018. Consulta em 07 de abril de 2020.
[20] WHO, WORLD HEALTH ORGANIZATION. Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention. Interim guidance 15 March, 2020.
Artigo publicado originalmente na OAB ESA.
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