A visão da sociedade essencialmente punitiva em face do crime, o clamor por prisão como única resposta ao fenômeno criminal, o desinteresse pelo combate às causas do crime, mas apenas pela punição, a não percepção do crime como um fenômeno social e, portanto, capaz de atingir a todos como vítimas ou como acusados, o papel da mídia, que transformou o delito em espetáculo, e a ânsia punitiva como integrante de uma cultura sedimentada na sociedade, dentre outros fatores, são responsáveis por perigosas mudanças verificadas no sistema de Justiça Penal em nosso país.
Além do mais, esse quadro está provocando no homem médio uma verdadeira aversão ao direito de defesa e também aos seus agentes, os advogados, assim como vem criando um desinteresse e um quase menosprezo pela verdade. Deseja-se que prevaleça a verdade que corrobore a punição, mesmo que não esteja de acordo com a realidade dos fatos.
O direito de defesa emana do próprio direito natural e, assim, acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Corresponde a uma necessidade indeclinável do ser humano, como portador dos atributos da honra e da dignidade, que devem ser preservados e defendidos.
Toda agressão ou ameaça a esses valores causa o sentimento de injustiça e provoca um natural impulso reativo da parte do atingido. Como se reage licitamente a uma injusta agressão física, reage-se à violência de uma acusação indevida ou excedente à responsabilidade pessoal.
O processo, como instrumento de distribuição da justiça penal, tem um forte conteúdo ético e moral. No entanto, todo o sistema penal vem sofrendo estranha e indesejável metamorfose.
A já referida cultura punitiva, contudo, está atingindo os seus responsáveis, provocando a perda da imparcialidade e da isenção, que deveriam comandar o exercício de suas respectivas funções.
Está havendo uma perigosa inversão conceitual quanto à natureza das missões: juiz e promotor não combatem o crime. Um julga e o outro é o fiscal do cumprimento da lei, não o acusador obstinado. Ambos devem examinar os fatos e as provas com isenção, desprovidos de prévia posição a respeito da culpa. O promotor, ao acusar, e só nessa hora, deve tomar posição. O juiz, apenas ao proferir a sentença.
A verdade é que na pugna judiciária se assiste a uma quebra de regras e a um extrapolar dos limites éticos sobremodo inconvenientes e que põem em risco a segurança jurídica e a própria credibilidade do Poder Judiciário.
Como pano de fundo desse cenário nós temos a deturpação — por vezes ostensiva, por vezes sutil — da verdade. Sim, a verdade passou a ter uma importância relativizada em nome de imputações e de decisões que se imagina serem do agrado da mídia e da opinião pública, e calcadas em ilações e criações mentais, portanto, com alto grau de subjetivismo.
Por vezes a mentira é propagada pela imprensa e utilizada por acusadores e juízes não de forma consciente e dolosa, mas por açodamento, ao se aceitarem como verdadeiros fatos ainda não verificados e comprovados.
Nesse cenário, em que a verdade perdeu a relevância, o protagonismo de juízes e de promotores atingiu níveis inimagináveis. Instaurou-se um conflito que ultrapassa os limites do processo e envolve, de um lado, acusadores e juízes e, de outro, os advogados.
Uma observação: os advogados na área penal não impulsionam a máquina do Judiciário. Quem o faz são os promotores, ao acusarem.
Os juízes julgam e nós, advogados, defendemos os direitos, as garantias, e somos os transmissores da verdade dos clientes.
Não somos apologistas do crime. Sem o exercício da defesa não há possibilidade de haver processo, condenação ou absolvição.
A verdade para nós, advogados, é a que nos é posta pelo cliente e a haurida dos autos.
Para juízes e promotores a verdade deveria ser a refletida pelas provas, e somente por elas, e apenas quando obtidas legalmente. Não pode a verdade, para fundamentar uma acusação e uma condenação, ser fruto de ficção ou hipóteses cerebrinas. Alguma flexibilidade é admitida para a formulação da imputação. Mas não para o desfecho do processo.
Esse panorama reflete, também, por parte da sociedade, uma expectativa voltada sempre para a acusação e para a condenação. Não se esperam a absolvição e a inocência. Qualquer acusação, ainda que embrionária e precária, desde que divulgada, coloca o mero suspeito como culpado. A existência ou não de provas pouco importa. Vale dizer, deve-se condenar com provas, sem provas ou mesmo contra as provas.
Na realidade, vem ocorrendo uma mudança de natureza ética com reflexos processuais graves. Aceita-se a mentira e esta se nutre da simulação e da criação de fatos e de situações fictícias. A opinião pública satisfaz-se com a ilusão da verdade e distancia-se da verdade real. Manipulação de narrativas, invencionices e adulterações fáticas fazem, lamentavelmente, parte do cotidiano processual.
Conforme afirmou Hanna Arendt, após Platão, com o mito da caverna, o ser humano prefere a ilusão à verdade. No âmbito do processo esse mito não pode vigorar. Espera-se que não prospere a sanha punitiva e se volte a ter um respeito sagrada pela verdade e pelo direito de defesa. Não podemos permitir que haja a derrogação da verdade pela aceitação da mentira, como alertou a filósofa alemã.
Nada justifica o abandono dos valores éticos e morais, bem como dos princípios constitucionais, mesmo que em nome do combate ao crime. Aliás, o verdadeiro combate ao crime deveria ser realizado desde as suas causas. A punição é pós-crime e, portanto, não evita o delito, embora seja necessária.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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