Por Max Augusto
Os discursos de Déda encantavam as plateias cristãs. Ele superava a pregação vazia de conteúdo, sentimento – e muitas vezes de fé, mesmo – de alguns líderes religiosos. Neste dia entendi um pouco como isso era possível.
A arte de discursar, o culto à retórica, há muito deixou de ser essencial à carreira dos políticos no Brasil. A fugacidade da nossa modernidade líquida levou as relações sociais e tudo mais a parecer frágil e impermanente. E a paixão pela palavra, o desejo de convencer através da forma e do conteúdo, de expor uma ideia escolhendo com cuidado cada substantivo e encadeando argumentos de forma criativa, deixaram de ser trunfos na disputa pelo poder. Foram substituídos pela fala direta, rasa e vazia que domina a agilidade das redes sociais.
O bem falar pode ser considerado a pedra angular da democracia, tendo papel central desde o seu berço, na antiguidade. Um bom discurso já custou o mandato de políticos, vide o caso do sergipano Seixas Dória, cuja eloquência e verve no histórico comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, é apontada por historiadores como um dos motivos para o seu afastamento do mandato de governador e prisão, com o golpe civil-militar que ocorreria poucos dias depois.
Esta casta de grandes oradores na política brasileira e sergipana parece ter sido extinta com a partida precoce do ex-governador Marcelo Déda, que faleceu em dezembro de 2013, vítima de um câncer. Falar do seu dom enquanto artífice das palavras virou lugar-comum entre quem teve a oportunidade de acompanhá-lo exercendo este talento – que era natural, mas também trabalhado à exaustão com leituras e anotações.
Um rápido exemplo disso: tive a oportunidade de acompanhá-lo em eventos realizados por igrejas, ou com presença significativa de religiosos, e sempre me impressionou a facilidade da comunicação de Marcelo Déda com os evangélicos. Nos anos em que governou, as igrejas evangélicas e suas lideranças político-religiosas estavam alinhadas ao governo do PT. Entre outros motivos, Lula transitava bem entre este público devido a sua habilidade política e facilidade em comunicar-se com as classes menos favorecidas – base deste segmento religioso.
Mas com Déda era diferente. Forjado politicamente num momento onde muitos associavam a opção pela esquerda como uma negação ao cristianismo, os discursos do petista sergipano encantavam as plateias cristãs. Citando versículos bíblicos, pensadores cristãos clássicos e modernos, ele superava a pregação vazia de conteúdo, sentimento – e muitas vezes de fé, mesmo – de alguns líderes religiosos. Além de mostrar seus conhecimentos sobre essas passagens e trechos, ele sabia como poucos conectá-las ao cotidiano, amarrá-las ao momento presente e à conjuntura social e política.
Isso sempre me despertou curiosidade. Até que certa vez o então governador me recebeu em seu apartamento para uma entrevista exclusiva. Fui conduzido ao seu escritório, onde o aguardei passeando o olhar pelas estantes de livros que se espalhavam pelas paredes. Alguns exemplares em sua mesa. Praticamente todos grifados e muitos marcados com post its. Déda tinha este hábito. Não pude deixar de notar uma extensa coleção numa prateleira bastante acessível: em belas edições de fino acabamento, estavam os diversos volumes dos famosos sermões do Padre Antônio Vieira. Certamente outro ponto que explicava sua intimidade com os temas bíblicos e a facilidade em utilizá-los para falar sobre a vida, o dia a dia.
Num comentário bem-humorado (e levemente provocativo, claro) para quebrar o gelo dos momentos pré-entrevista, questionei a Déda o que a coleção com os textos do padre fazia em lugar destacado na estante de um político com formação intelectual lastreada em pensadores de esquerda. Ele riu, ignorou a ligeira provocação e explicou de forma sucinta: “Max, no meu tempo, todo mundo que queria ser um bom orador tinha que ler os sermões do padre Antônio Vieira. Era leitura básica”.
Ele falou mais algumas coisas que não registro por não confiar inteiramente na memória. E começamos a entrevista. É claro que eu não ignorava: Antônio Vieira sempre foi uma referência no campo da retórica, inclusive para os oradores não ligados à religiosidade. A forma genial como construía seus argumentos serviu de inspiração para diversos tribunos. E sua leitura é apenas uma pequena peça num quebra-cabeças que poderia explicar a formação intelectual e a habilidade do último grande tribuno brasileiro.
Artigo publicado originalmente no Blog do Max.
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