1. Como introito, uma pequena anedota
Depois de um almoço pago pelas associações de classe de cada comensal (menos de um, como veremos), saem do restaurante um magistrado, um membro do MP, um Defensor Público, um Delegado Federal, um conselheiro de TC, um procurador Federal e… um advogado.
Eis que, de um chute em uma garrafa, exsurge um gênio, que concede um desejo para cada um. O juiz, é claro, foi o primeiro a pedir: “— Quero uma república só de juízes”. Instantaneamente, foi atendido. E para lá foi remetido. O membro do MP pediu uma república só de promotores e procuradores e assim por diante, até chegar a vez do advogado público, que pediu uma república só de advogados públicos dos mais variados. Todos foram atendidos pelo gênio.
Restava o advogado. Que estava ali, olhando, solito, (ele, que teve que pagar o seu almoço). E o gênio lhe perguntou:
“— Então, doutor, o que vai pedir?”
E o causídico respondeu: “— Não quero nada. Agora está ótimo assim. Todo esse povo me faz sofrer… Deixa prá lá. Ainda ontem o Tribunal julgou contra a sua própria jurisprudência. Mas disse que o fez em nome da Constituição. Por isso tudo, face ao exposto, requeiro apenas um cafezinho”.1
2. Justificando o tema, anedotas sadias à parte
Como sou amante de literatura e cinema (vejam mais de 200 vídeos no YouTube do Programa Direito & Literatura — TV Justiça e TV Unisinos), penso que podemos traçar um modelo de advogado ideal, assim como André Karam Trindade e eu já o fizemos do modelo de Juiz no livro Os Modelos de Juiz na Literatura (editora Atlas), e assim como fiz sobre o modelo de professor ideal no livro Diálogos com Lenio Streck (2ª. Ed. Editora Livraria do Advogado) e também já havia feito sobre o modelo de estudante (ver aqui).
3. Por que escrever sobre um “tipo ideal” de advogado?
Penso que há dois motivos. Primeiro: já de há muito digo que, no Brasil, advocacia virou corrida de obstáculos. Exercício de humilhação. O advogado (claro que não aqueles que podem gastar milhões em publicidade — ups, isso é permitido?) tem de matar dois leões por dia. E desviar das antas.
O advogado médio é o que não tem contatos. É quem tem dificuldades de entender as razões pelas quais os recursos não sobem. Difícil para ele saber por que tem um robô-sniper que derruba seus Resp e Re.
É para esses causídicos sofridos que falo aqui. Na verdade, nem os mais sofisticados advogados conseguem entender por que é que em um dia o Tribunal julga de um modo e, noutro, julga em sentido oposto. E alega estar julgando de acordo com a CF. E por que seus embargos são rechaçados com base no livre convencimento? E por que leva multa por opor embargos de embargos que não foram respondidos?
Segundo, porque — e assumo o risco da platitude — o Direito não é direito sem advogados. E sem Direito, só há tirania (já dizia Locke). Logo, sem advogados… daí a máxima, a decisão primeira do tirano shakespeariano seria, por sugestão de Dick, o açougueiro, matar todos os advogados (kill all the lawyers).
Assim, por tudo isso, é possível — e necessário — falar de um modelo que conjumina o “Fator Stoic Mujic”, representado pelo personagem-advogado Donavan no filme A Ponte dos Espiões, (estrelado por Tom Hanks), com o “Fator Stevenson”, do filme A Luta por Justiça (estrelado por Michael B. Jordan) e com o “Fator……”, do filme O Mauritano.
Não são filmes para Oscar. Mas, para quem é advogado, é simbólico: representam o direito de defesa e o sofrimento dos réus pobres diante do sistema de justiça — e reforça a necessidade de preservarmos as garantias processuais. E esses três filmes traçam o modo como advogados devem agir diante do arbítrio. E arbítrio neste país é o que não falta.
Já escrevi bastante sobre o Fator Stoic Mujic (o estagiário levanta a placa e avisa que essas coisas como Fator Stoic Mujic, Fator Stevenson e Fator Mauritano foram inventadas pelo professor Lenio, assim como o Target Effect, pelo qual primeiro se decide e depois se busca o fundamento — aliás, primeiro atiram a flecha para depois pintar o alvo).
Nosso protagonista do Stoic Mujic Effect é Donavan, advogado bem mediano que é designado para defender um espião russo no auge da Guerra Fria.
Há um momento em que, falando com o cliente (espião), este estranha que Donavan nunca lhe tenha perguntado se era inocente. Donavan respondeu: não me importa. O que importa é que o Estado é que deve provar isso.
Para coroar isso, há uma cena que é o exemplo que confirma o conceito de princípio. Ao visitar seu cliente na prisão, este lhe conta a seguinte história:
Quando menino, na Rússia, seu pai tinha um amigo. Seu pai dizia: preste atenção nesse homem. Ele não tinha nada de especial. Mas um dia agentes invadiram sua casa, quando lá estava esse amigo. Bateram na sua mãe, no seu pai e no amigo. Que cada vez que caia, surrado e chutado, levantava-se. E lhe batiam de novo. Caía e se levantava. E disse o espião: “E por isso sobreviveu”. O espião fez entender, então, que Donavan lembrava a ele esse amigo de seu pai.
E disse porque:
aquele homem, amigo de seu pai, era um stoic mujic, que quer dizer “o homem que fica em pé” (ou o homem estoico, que sofre, mas não cai).
Eis o Fator Stoic Mujic. Apanhamos e nos levantamos. Apanhamos e nos levantamos. E por isso sobrevivemos.
Já o filme “A luta por Justiça” (Just Mercy) é a, digamos assim, complementação do Stoic Mujic Effect. Stevenson vai à Suprema Corte do Estado. Consegue novo julgamento. Stevenson invoca o caso Brady v. Maryland (o mesmo precedente que uso, diga-se, para sustentar o Projeto de Lei 5.282/2019, apresentado pelo senador Anastasia, que ficou conhecido como projeto Anastasia-Fokus-Streck — ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). O que determina que o MP ponha na mesa todas as provas. E Stevenson vence!
Eis o que aqui passo a denominar de Fator Stevenson, que, ao lado Fator Stoic Mujic, devem iluminar a advocacia brasileira.
Outro filme é O Mauritano. Trata de um preso em Guantánamo. Sem julgamento e sem culpa formada. E sua advogada, contra tudo e contra todos, vai em busca de um habeas corpus. Ganha, mas não leva… Porém, não darei spoiler.
4. Por tudo isso…
… quando vejo o modo como são violados direitos cotidianamente e o modo como advogados são tratados neste Brasil a fora, penso em Donavan, Stevenson e na advogada do mauritano. Penso no Fator Stoic Mujic e no Fator Stevenson. Advogados: não esqueçam disso! Sem advogados, não há Direito; sem Direito, só há tirania.
Quando lhe mandarem sentar-se, levante; quando lhe mandarem calar, tome a palavra. Pela ordem.
E se não tiver nada a dizer, diga apenas: Stoic Mujic!
Indigne-se!
Talvez tenhamos que, com certa urgência, incluir na legislação (talvez no Estatuto da OAB) o dever de indignação (duty of outrage) do Advogado, como há nos EUA.
Numa palavra: O advogado não tem só o direito de se indignar; tem até mesmo o dever de se indignar.
Não sei se há muito a comemorar, porém, desejo a todos um stoik mujic!
1 O estagiário levanta a placa com os dizeres: a anedota é auto-explicativa; ela se autodestruirá em 30 segundos. E ninguém ficou ferido na experiência. Todos os protocolos foram seguidos.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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