O projeto anticrime do Ministério da Justiça, em seu formato atual, continuará gerando insegurança jurídica por não estabelecer de forma clara com quem empresas e outros entes privados podem negociar e o que podem esperar das negociações.
Dentre as alterações legislativas propostas no projeto anticrime do Ministério da Justiça existem medidas para consolidar no sistema brasileiro as chamadas soluções negociadas. A iniciativa é salutar. A última década vem testando o Brasil com desafios no combate à corrupção e houve um aumento significativo no número de investigações e na responsabilização de crimes de colarinho-branco e de irregularidades praticadas pelas empresas, antes e independentemente da Operação Lava Jato. É inegável que parte substancial do caminho já percorrido se deve ao uso de instrumentos de soluções negociadas inseridos no decorrer dos anos na legislação brasileira (e.g. colaboração premiada da Lei 12.850/13 e acordos de leniência da Lei 12.529/11 e da Lei 12.846/13).
A redação prevista no projeto, no entanto, falha ao não trazer maiores inovações à situação atual e, consequentemente, vislumbra um cenário de contínua insegurança jurídica por três principais razões.
- Não estabelece claramente quem terá legitimidade para a celebrar acordos;
- Os incentivos financeiros atualmente existentes são incompatíveis com o esforço necessário e o desgaste para a realização de investigações independentes e o projeto não propõe maiores incentivos;
- No caso de acordos de colaboração (destinados a pessoas físicas) não estabelece os critérios mínimos necessários para que particulares busquem essa solução em casos de improbidade administrativa.
É importante ressaltar que as considerações destacadas a seguir são relevantes apenas no que diz respeito a casos de improbidade administrativa e não fazem referência a questões criminais no tocante à introdução do mecanismo de plea bargain.
Em defesa dos acordos negociados
Os acordos possuem diversas finalidades e vantagens em relação à tradicional atuação imperativa devido à sua flexibilidade, podendo ser moldados a partir das circunstâncias de cada evento e permitindo que as pessoas (físicas ou jurídicas) tenham a possibilidade de encerrar a questão sem ter que judicializá-la e aguardar longa espera sem definição.
A condição de investigado ou réu causa prejuízos reputacionais e dificuldades na condução da vida ou dos negócios e o ente privado pode optar por um acordo ainda que não reconheça culpa ou responsabilidade. As soluções negociadas prestam-se a adequar os processos, definir regras e obrigações específicas para cada situação – complementando as decisões e condicionando benefícios do particular ao cumprimento dessas. Dão força e estimulam a autorregulação dos entes privados, que passam a adotar controles e regras de integridade. Portanto, na teoria a possibilidade de se firmar acordos contribui para a economia, agilidade e qualidade das decisões administrativas e judiciais.
Defensores da manutenção da proibição contida no art. 17, §1º da Lei 8.429/92 apontam como relevante a regra da indisponibilidade de bens públicos. Não há que se falar de maneira geral e categórica em afronta à indisponibilidade dos bens jurídicos protegidos, posto que esses bens vêm se mostrando eficazmente protegidos dentro da lógica da consensualidade. Entretanto, há que se ter parâmetros e limites para as negociações. Já estabelecido está que um acordo não poderá abrir mão do ressarcimento integral do dano, por exemplo (art. 16, §3º da Lei 12.846/13).
No entanto, as soluções negociadas estão sujeitas a críticas relevantes e que não podem ser de forma alguma minimizadas, sob o risco de se furtar a justiça àqueles que não tem poder de negociação ou que se vêm desnivelados em sua expectativa de negociação de acordo.
O projeto anticrime deveria corrigir a insegurança que há quanto a quem pode celebrar acordos, mas não o faz
O primeiro ponto, que é crítico para a legitimação social das diversas formas de solução acordada, trata de se saber de antemão quais são os órgãos empoderados para a sua realização, bem como sobre seus alcances, limites e aplicabilidade. E o entendimento que tais órgãos tem sobre temas de interesse. A jurisprudência, de uma forma ampla, tem que ser conhecida pelo particular que cogita abrir mão de seu direito de defesa para fazer um acordo. Por esse motivo, a alteração legislativa proposta no Projeto de Lei deve ser pensada tendo em vista os avanços conquistados e os desafios presentes sobre o tema. Não se pode esquecer que as condutas que podem ser objeto de soluções negociadas muitas vezes permeiam diversas leis específicas, presentes em diferentes microssistemas jurídicos (e.g. sistema de defesa da concorrência ou do mercado de capitais).
As pessoas que consideram celebrar um acordo na maioria das vezes se encontram em situação de possível violação das severas leis e devem ter segurança jurídica para saber com quem negociar e o que esperar da negociação. Obviamente devem ter também segurança de que ao cumprir sua parte terão garantido o cumprimento das obrigações assumidas pelo representante do Estado. Esta questão é demasiadamente complexa e afeta sobremaneira as pessoas envolvidas em grandes transações empresariais, que atravessam fronteiras estaduais e nacionais.
De acordo com a lei de improbidade administrativa, são legitimados para propor a ação de improbidade o Ministério Público ou a pessoa jurídica interessada (art. 17, caput). A princípio, poderíamos dizer que estes também seriam legitimados para a realização de acordo? Somemos a esta primeira reflexão as regras do acordo de leniência previstas na lei anticorrupção, aplicadas no que couber ao acordo em sede de improbidade administrativa.
Segundo a lei anticorrupção, a celebração do acordo caberá à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública (art. 16, caput). No âmbito federal, o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) é o órgão competente para celebrar os acordos (art. 16, §10º). Se a exigência for estendida ao acordo na lei de improbidade, então poderiam celebrar o acordo a autoridade máxima da pessoa jurídica interessada e em nível federal a CGU?
Atribuir a competência para a celebração de acordos à autoridade máxima é visto como uma precaução legal para que não haja uma distorção na utilização de acordos substitutivos de sanção com a administração pública na lei anticorrupção. É certo que a publicidade e a transparência são imprescindíveis para o controle dos acordos, a partir da disseminação de suas informações, mas também se deveria buscar evitar deixar na mão de uma entidade da administração pública – que corre risco, inclusive, de estar diretamente envolvida na prática irregular – a responsabilidade de solucionar infrações e substituir suas penalidades.
Por fim, é necessário atribuir incentivos maiores às pessoas físicas e jurídicas que se propõem à solução negocial. Os incentivos financeiros propostos no Decreto 8.420/15 que regulamenta a lei anticorrupção são incompatíveis com o esforço, o investimento e a exposição que se espera de uma pessoa jurídica que opte pela investigação independente e proposta de verdadeira remediação, sendo que esta última deveria ser condição objetiva e inarredável para a celebração de acordos que tratem de temas de improbidade administrativa com relação a pessoas jurídicas.
Proibição de acordos para sanar violações da lei de improbidade administrativa não tem efeito prático
É importante também salientar que a proibição expressa de acordos para sanar violações da lei de improbidade administrativa não tem efetivamente impedido a celebração de acordos de leniência ou de colaboração em infrações que incluam violações à lei. Fundamentadas em diversos diplomas legais e internacionais, as autoridades fazem uma interpretação sistêmica a fim de endereçar a improbidade nos acordos, seja aplicando alguma das sanções previstas na lei, seja pedindo efeitos meramente declaratórios nas ações de improbidade, entre outros.
Alguns exemplos de fundamentos são: a lei que estabelece programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas (art. 13 da Lei 9.807/99 – prevê a concessão de perdão judicial em casos de colaboração); a lei de lavagem de capitais (art. 1º, §5º da Lei 9.613/98 – permite a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos em caso de colaboração); a lei da ação civil pública (art. 5º, §6º da Lei 7.347/85 – permite a celebração de termo de compromisso de ajustamento de conduta); e a própria lei das organizações criminosas mencionada no Projeto, bem como a lei anticorrupção. Da mesma forma dentre os estatutos internacionais, são mencionadas nos acordos as convenções das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto 5.687/06) e contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto 5.015/04).
A proibição da lei de improbidade havia sido tratada pela Medida Provisória n. 703 de 18 de dezembro de 2015, que perdeu sua eficácia por não ter sido convertida em lei à época. No regime daquela medida provisória, os órgãos de controle interno dos entes federativos, isoladamente ou junto ao Ministério Público ou à Advocacia Pública, estavam legitimados a celebrar acordo de leniência. Na ausência daqueles órgãos, o acordo deveria ser celebrado pelo chefe do Poder em conjunto com o Ministério Público. A celebração do acordo impedia o ajuizamento ou o prosseguimento das ações da lei de improbidade administrativa e da lei anticorrupção. A medida provisória ainda estabelecia a atuação dos tribunais de contas, que receberiam o acordo assinado para verificar se a reparação do dano estaria atendida naqueles termos.
Falta segurança e incentivos adequados para os acordos de colaboração destinados a pessoas físicas
Por fim, ainda cabe uma reflexão sobre a possibilidade de acordo destinado às pessoas físicas (acordos de colaboração premiada) no âmbito da lei de improbidade administrativa. A lei das organizações criminosas permite sua realização quando, ao menos, sejam identificados demais responsáveis da organização pela prática, seja revelada a estrutura hierárquica da organização criminosa, em caso de prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização, recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações praticadas pela organização, ou caso seja identificada a localização de vítima com integridade física preservada (art. 4º).
A lei de improbidade administrativa, entretanto, não trata de organização criminosa. Caso a improbidade administrativa seja praticada apenas por um funcionário público, poderá ser realizado acordo? Bastará que o acusado devolva o proveito, quando houver, da infração cometida? Ou se comprometer a cessar a conduta improba?
Se a redação proposta neste tópico do Projeto visava ao aumento da segurança jurídica nas relações entre particulares e o Estado no que diz respeito às apurações e responsabilizações de infrações, foi na direção certa, mas não enfrentou os principais problemas nesta seara. É necessário muito mais que desfazer a proibição do art. 17, §1º da Lei 8.429/92. Deve-se promover a segurança jurídica e os incentivos corretos para que os particulares espontânea e conscientemente busquem acordos em casos de alegação de improbidade administrativa.
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