Quando a comunidade internacional se deu conta de que o dinheiro é o oxigênio que mantém vivas organizações criminosas bem estruturadas, muito mais do que as pessoas que as compõem, decidiu criar instrumentos de política criminal para dificultar sua movimentação financeira. Entre esses instrumentos, o crime de lavagem de dinheiro. O novo tipo penal surgiu em meados dos anos 1980 e tinha como principal objetivo desestruturar o tráfico de drogas internacional. Mas logo se revelou eficaz para perseguir o produto gerado por quaisquer tipos de crimes e teve sua aplicação bastante ampliada no mundo.
Essa ampliação, contudo, levou à banalização da imputação pelo crime de lavagem de dinheiro. O fenômeno é mundial, mas no Brasil é possível observar nas denúncias um uso desmedido da acusação de lavagem, mesmo em casos em que claramente não é possível tipificar o crime. “As autoridades públicas precisam se dar conta dos excessos e discutir com racionalidade, clareza e transparência as soluções para que se combata o crime de lavagem de dinheiro”, defende o professor da USP e advogado criminalista Pierpaolo Cruz Bottini.
Seu alerta encontra guarida no raciocínio do advogado e professor do IDP Ademar Borges. De acordo com ele, “há uma real preocupação em todo o mundo democrático em impedir que o crime de lavagem de dinheiro seja interpretado de maneira tão ampla, tão extensiva, que acabe autorizando uma dupla punição em todo delito que tenha algum tipo de benefício patrimonial”.
Por conta da preocupação comum, a dupla decidiu, em conjunto com outros autores, esquadrinhar a jurisprudência sobre lavagem de dinheiro no Brasil e a doutrina que já havia sido produzida. Desse trabalho, nasceu o livro Lavagem de Dinheiro: pareceres jurídicos, jurisprudência selecionada e comentada, lançado este mês pela editora Revista dos Tribunais. O livro reúne o que há de mais relevante já produzido sobre o tema no país: oito pareceres e 14 votos paradigmáticos de desembargadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, parte deles com comentários de seus autores.
A ideia, conforme explicam, foi estabelecer um diálogo entre pareceres produzidos por professores com vida acadêmica exitosa e profícua atuação advocatícia e as decisões já tomadas nos tribunais brasileiros para, a partir daí, estudar as possíveis formas de aperfeiçoamento do funcionamento da Justiça criminal. A ideia é a de que essa conversa entre pareceres e jurisprudência sirva também como norte para o enfrentamento de casos novos — e sempre complexos — que envolvem o crime de lavagem de dinheiro.
Em entrevista concedida à ConJur, os coordenadores do livro falaram sobre a história do crime de lavagem de dinheiro, as principais controvérsias que hoje rondam os julgamentos do delito, trataram de Direito Comparado e apontaram soluções que precisam ser estudadas para preencher as lacunas que ainda existem na legislação e na jurisprudência relativa ao tema.
Leia a entrevista
ConJur — Muitos dizem que a história de combate à lavagem de dinheiro começa em Chicago, nos anos 1930, quando mafiosos teriam comprado lavanderias para reinserir no mercado formal dinheiro acumulado com a venda ilegal de bebidas. Existem registros históricos confiáveis sobre isso?
Pierpaolo Bottini — Nunca vi um processo dos anos 1930 ou 1940 que faça menção a lavagem de dinheiro. Vários autores fazem referência a isso, mas sempre indireta. Não encontrei alguém que cite qual o processo, a decisão ou mesmo a investigação sobre esse fato, referente àquele período. Um dos primeiros julgados que se tem conhecimento em que aparece a expressão lavagem de dinheiro é da Inglaterra, de 1978. O fato é que se o termo foi usado antes, não foi relevante do ponto de vista histórico e institucional. A história das lavanderias é mais interessante do ponto de vista do folclore do que efetivamente um marco legal.
ConJur — Em que contexto surge o crime de lavagem de dinheiro?
Bottini — A lavagem de dinheiro aparece como resposta organizada e institucional ao crime organizado nos anos 80, no contexto de guerra às drogas. Naquele momento, a comunidade internacional percebeu que para combater o crime transnacional, organizado, estruturado, as formas tradicionais de contenção, como a prisão, as operações policiais não bastavam, porque não desestruturavam a organização criminosa. Pessoas são fungíveis: quando se prende uma, entra outra no lugar, no âmbito daquela organização. Diante disso, se percebeu que a melhor forma de desestruturar organizações criminosas é seguir o produto do crime gerado por elas e confiscá-lo. Assim, a organização não consegue se retroalimentar e se esvazia. A mudança do foco para o produto do crime foi muito importante para o discurso do combate à grande criminalidade organizada. O resultado disso foi uma proposta especifica de criminalizar a lavagem de dinheiro, o ato de ocultar ou dissimular o produto do crime.
ConJur — Quando esse movimento internacional chega ao Brasil?
Ademar Borges — Nosso tipo penal é claramente inspirado na conduta descrita na Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilício de Entorpecentes, de 1988. O ordenamento jurídico brasileiro incorporou a convenção por meio do Decreto 154, de 1991. E também chega aqui como consequência da Diretiva 308 da União Europeia, de prevenção à utilização do sistema financeiro para a lavagem de capitais. A história da lavagem de dinheiro no Brasil é um movimento decorrente de uma segunda fase de luta contra as drogas, que está ligada à busca dos resultados patrimoniais obtidos por meio do tráfico. Só depois é que se tipificou a lavagem de dinheiro relacionada a outros crimes. Primeiro, crimes graves. Depois, crimes econômicos. Até chegar ao nosso estágio atual, em que se admite que a lavagem pode ser caracterizada com resultados patrimoniais obtidos a partir de qualquer tipo de delito. Mas a história do delito é umbilicalmente ligada ao combate ao tráfico de drogas, inclusive é a inspiração para a construção da nossa Lei 9.613/1998.
ConJur — No Brasil também surgiu para combater o tráfico?
Borges — A Convenção de Viena trata da lavagem em relação ao tráfico de drogas. Mas como nossa lei veio um pouco tardiamente, apenas em 1998, partimos já da chamada segunda fase do crime de lavagem de dinheiro, com um rol estrito de crimes antecedentes. Mas o tráfico de drogas era, sem dúvida, o mais relevante.
ConJur — É possível dizer que há segurança jurídica no Brasil sobre as hipóteses de lavagem de dinheiro quando analisamos a jurisprudência?
Bottini — Houve pouquíssimos enfrentamentos e julgamentos sobre o crime de lavagem de dinheiro até há cerca de dez anos. E os poucos que havia no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal eram relacionados a questões muito específicas do tráfico de drogas. Isso começou a mudar com o julgamento da Ação Penal 470, quando o STF fixou os primeiros grandes parâmetros relacionados à lavagem de dinheiro. Foi ali que se admitiu a punição da autolavagem de dinheiro (tema ainda polêmico), que se definiram balizas para enfrentar os casos de corrupção e lavagem de dinheiro, se compreendeu que o transporte de dinheiro vivo não caracteriza o crime que discutimos aqui, e alguns critérios de dosimetria de pena. Foi a partir de então que o Supremo passou a analisar com mais frequência casos de lavagem de dinheiro em diversas ações penais, em especial no âmbito da lava jato. Mas a jurisprudência ainda é muito recente, um pouco confusa, e ainda há muito a ser decidido.
ConJur — Quais as principais questões abertas?
Bottini — Há muitas. É preciso fixar com mais clareza quando uma doação eleitoral formal pode ser entendida como lavagem de dinheiro, quando a declaração de bens ilícitos no imposto de renda também pode ser entendida como lavagem de dinheiro. Também é preciso definir quando acaba uma conduta de lavagem de dinheiro para que possa ser iniciado o prazo de prescrição. Estes são exemplos de temas já decididos por turmas, mas em que não há a palavra do Pleno do STF.
Borges — De fato, o grande precedente do Supremo sobre lavagem ainda é a Ação Penal 470. No julgamento dos Embargos Infringentes daquela ação, o STF definiu balizas sobre a relação entre crime antecedente e lavagem, especialmente sobre a corrupção passiva, ao reafirmar a impossibilidade de que o próprio recebimento sub-reptício da vantagem fosse considerado como crime autônomo de lavagem. Decidiu-se ali que o crime se exauria com a corrupção. Além disso, se definiu naquele julgamento que a autolavagem é criminalizada no Brasil. E essa resposta não foi banal porque a legislação brasileira, diferentemente da de outros países, não fez uma opção expressa pela criminalização da autolavagem.
ConJur — O que é a autolavagem?
Borges — Autolavagem se caracteriza quando o sujeito é o autor do delito antecedente e ele próprio oculta ou dissimula a origem dos valores obtidos com o crime anterior. Mas ainda que tenha se definido que a autolavagem é crime no Brasil, não há na jurisprudência parâmetros seguros para distinguir os casos em que o autor do delito antecedente está se aproveitando ou apenas escondendo os valores obtidos com o crime e os casos em que as condutas revelam um injusto autônomo que deve ser tipificado como lavagem. A lei alemã, por exemplo, identificou com clareza as hipóteses bastantes excepcionais em que o autor do crime antecedente pode responder também pela lavagem. A nossa lei não fez o mesmo. E a jurisprudência nacional também não supriu suficientemente essa lacuna.
ConJur — Apesar de a jurisprudência não ser sólida por conta de o crime de lavagem ser recente, há importantes balizas em alguns votos de ministros, não?
Borges — Sim, algumas decisões são pontos de partida relevantes para fixar parâmetros. Por exemplo, sobre a relação entre sonegação fiscal e lavagem de dinheiro há uma decisão do ministro Gilmar Mendes, comentada no livro, que, apesar de monocrática, é importante porque há muitos casos em que se imputa o crime de lavagem sem que o crédito tributário tenha sido definitivamente constituído. O voto enfrenta essa questão. Essa decisão se insere em contexto maior em que se discute a exigência de identificação clara do proveito econômico obtido com o delito antecedente e que teria sido objeto de atos de lavagem de dinheiro. É possível também referir o voto do ministro Ricardo Lewandowski, comentado por ele na obra, que discute o standard probatório exigido para considerar cometido o delito antecedente. E ainda o voto do ministro Dias Toffoli, também comentado pelo próprio ministro, que reafirma a necessidade de que o crime antecedente seja narrado de maneira precisa e que seja acompanhado de justa causa material. Essas decisões do STF têm ajudado a construir um quadro jurisprudencial mais sólido e seguro sobre o tema no país.
ConJur — Quais as diferenças entre a lei que tipifica lavagem de dinheiro no Brasil das que tratam do crime em outros países?
Bottini — A lei brasileira é mais restrita do que a dos países que compõem a Comunidade Europeia. No Brasil, a legislação atrela a lavagem de dinheiro a um ato de ocultação, de efetivamente esconder o dinheiro, seja no plano objetivo, seja no plano das intenções. Não basta receber dinheiro ilícito. É necessário que haja a intenção de ocultar ou dissimular sua origem. A legislação da maior parte dos países europeus caracteriza a lavagem a partir da mera aquisição ou da utilização do dinheiro de origem ilícita em qualquer atividade, mesmo sem ocultação.
ConJur — A lei brasileira precisa ser reformada?
Bottini — Neste ponto, creio que não. Sob esse prisma, nossa legislação é mais racional. Se adotarmos a lógica europeia, iremos abrir a fronteira para uma criminalização excessiva que, hoje, é inclusive contestada pelos tribunais europeus. Quando a lei entende que o mero ato de receber dinheiro ilícito é crime de lavagem, abre-se a possibilidade de imputar esse crime em todos os casos. Para evitar tal resultado, é preciso excluir a autolavagem e o dolo eventual, mas nem sempre as leis europeias tomam esse cuidado. Há uma grande insegurança jurídica nesse aspecto, a ponto dos tribunais desses países terem definido a restrição dos âmbitos de abrangência dessa norma penal.
Borges — Países europeus tem um tipo objetivo mais amplo do que o nosso. Na Alemanha, é crime o mero recebimento de valores oriundos dos crimes antecedentes. Esse é um exemplo muito citado, mas há um correspondente do modelo alemão na Espanha e em vários outros países. Em compensação, assistimos lá um esforço notável da jurisprudência para dar uma interpretação mais restritiva a esses delitos. Na Itália, a Corte de Cassação já decidiu que o uso aberto de recursos — que não é escamoteado, feito à luz do dia — não pode ser interpretado como lavagem de dinheiro. Por exemplo, o fato de uma empresa sonegar tributos e usar recursos financeiros internos da empresa para suas atividades não significa que tenha automaticamente praticado lavagem de dinheiro. O esforço para enquadrar a lavagem de dinheiro passa por encontrar um injusto que seja independente do delito antecedente. Há uma real preocupação em todo o mundo democrático em impedir que o crime de lavagem de dinheiro seja interpretado de maneira tão ampla, tão extensiva, que acabe autorizando uma dupla punição em todo delito que tenha algum tipo de benefício patrimonial.
ConJur — A impressão que se tem de muitas denúncias é a de que se coloca o crime de lavagem de dinheiro quase que de forma automática, como um complemento de qualquer acusação de crimes financeiros. “Tem crime? Envolveu dinheiro? Bota lavagem”. Essa impressão é correta ou é exagero dizer isso?
Bottini — Há, de fato, uma banalização na imputação do crime de lavagem de dinheiro. Há denúncias por lavagem em casos de transporte de dinheiro vivo, de uso de valores em empresas do próprio agente, ou mesmo em casos de mero gasto de dinheiro de origem ilegal. Em um inquérito (Inq 3.515) se imputou ao acusado o crime de lavagem de dinheiro porque ele escondeu valores sob suas vestes, nas roupas íntimas. A 1ª Turma do Supremo rejeitou a denúncia nesta parte, com o argumento de que o ato de esconder ou dissimular exigido pela legislação brasileira deve ser acompanhado da demonstração da intenção de reinserir o dinheiro na economia. Sem a comprovação dessa intenção, não há lavagem. O que o STF tem feito nos seus entendimentos é justamente começar a perquirir, a procurar identificar se existe ou não essa intenção adicional — o que chamávamos antigamente de dolo específico, que é um elemento subjetivo especial. Se não tiver isso, não tem lavagem.
Borges — E existe um parâmetro que deve ser sempre observado, que é a separação temporal do crime antecedente do de lavagem de dinheiro. Não se pode imputar lavagem como se fosse praticada no mesmo momento em que o crime antecedente foi praticado. É necessário identificar de forma clara uma antecedência temporal do delito anterior. E, importante, a denúncia tem de identificar com clareza qual o proveito econômico, a vantagem que foi, depois, objeto de atos de lavagem de dinheiro. Muitas vezes não há, nas denúncias, a identificação de qual é o objeto material da lavagem. Quais os valores, o montante, em que situação? Falta esse didatismo nas acusações, o que explica um pouco a banalização da imputação do crime de lavagem. Tem, ainda, outro aspecto fundamental tratado em alguns artigos do livro, que é a necessidade de que a denúncia pelo crime de lavagem de dinheiro identifique de forma cristalina qual é o delito antecedente. O fato de o crime de lavagem poder ser processado de maneira autônoma, não significa que a denúncia possa deixar de descrever de maneira precisa, objetiva, qual é o delito antecedente.
Bottini — Ficou tão automático acusar por lavagem que às vezes se imputa lavagem de dinheiro tendo como antecedente um crime que não gera produto. Por exemplo, evasão de divisas. Se um cidadão tem dinheiro lícito no exterior e não declara, pode ser acusado de evasão de divisas. Mas lavagem? O ato declarar ou não declarar não gera mais ou menos dinheiro. Então, não há produto. Há também denúncias em que se imputa ao acusado a prática de organização criminosa e lavagem de dinheiro. O mero fato de pertencer a uma organização criminosa não cria “produto do crime”. É preciso demonstrar que essa organização criminosa praticou o crime A, B ou C, que gerou produto e que esse produto foi lavado. O simples fato de pertencer a uma organização criminosa não significa que o acusado recebeu dinheiro e tentou ocultar, dissimular, reinserir na economia esse dinheiro.
ConJur — Há um debate candente sobre se lavagem de dinheiro é crime instantâneo ou permanente. Membros do Ministério Público e juízes, em regra, defendem que enquanto se mantém oculto ou dissimulado o dinheiro ilegal, há crime. A prescrição só começaria a correr quando houvesse a interrupção da prática. Ou seja, quando autoridades públicas descobrem o dinheiro. Como está a discussão sobre esse ponto?
Bottini — A lei usa um verbo difícil, que é ocultar. O crime acontece no momento em que o sujeito oculta ou fica acontecendo enquanto aquilo está oculto? Não é uma questão simples. Pense no furto: subtrair coisa alheia móvel. É claro que é instantâneo. Já quando a lei diz “manter em depósito drogas”, é permanente. Enquanto mantiver em depósito, há o crime. O uso do verbo ocultar – ao menos no caput — permite interpretação dúbia e, por isso, o mais adequado é que se faça uma interpretação sistêmica. Há casos em que se entende que o verbo ocultar indica um crime permanente – como na ocultação de cadáver. Entendo de forma diferente. Se a lavagem de dinheiro é um crime contra a administração da justiça, a ocultação mencionada no ripo penal parece apontar um crime instantâneo. Há vários crimes contra a administração da justiça no Código Penal que envolvem ocultação (de bens, da verdade, de documentos) e nenhum deles é considerado permanente. Todos são instantâneos. Por que apenas a lavagem de dinheiro seria permanente?
ConJur — Pode dar um exemplo?
Bottini — O crime de falso testemunho. É um crime em que a testemunha oculta a verdade. Outro exemplo é o crime de favorecimento real, em que o agente ajuda alguém a ocultar o produto de um crime. Ambos são considerados instantâneos pela doutrina e jurisprudência. Por isso, a lavagem prevista no caput do art.1º da Lei de Lavagem é instantâneo, o que não ocorre em algumas outras modalidades do delito. Apesar disso, o Supremo decidiu, no julgamento do ex-governador Paulo Maluf, que a ocultação da lavagem de dinheiro, em todas as modalidades, é permanente. Então, o prazo prescricional começa a correr quando cessa a ocultação. O problema é: quando cessa a ocultação? Essa é outra discussão. Não parece que cesse apenas quando a autoridade descobre os recursos ocultos. Cessa, também, quando o dinheiro é gasto. Cessa quando o dinheiro é transferido para alguém. Cessa quando o dinheiro não está mais em poder de quem o ocultava. É um debate ainda aberto.
ConJur — Como está a discussão sobre lavagem e origem de dinheiro usado para pagar serviços como honorários advocatícios?
Bottini — A lei brasileira é mais restritiva do que as regras da Comunidade Europeia. Lá, o mero recebimento de valores sujos é crime. O que diz nossa lei e qual a interpretação do Supremo sobre lavagem de dinheiro no Brasil, em todas as modalidades? Lavar dinheiro é receber o produto de um crime ou de uma contravenção penal e ocultar ou dissimular esse produto. Sem ocultação ou dissimulação, ou pelo menos sem a intenção da ocultação ou da dissimulação, não há lavagem de dinheiro. Logo, receber honorários como contraprestação de um serviço efetivamente prestado jamais pode ser considerado lavagem de dinheiro. O advogado prestou serviços, recebeu honorários à luz do dia, emitiu nota fiscal. Nesse caso, se o dinheiro é rastreável, se houve prestação de contas, ainda que a origem do dinheiro seja ilícita, não há lavagem. O que não significa que ao final do processo penal esse dinheiro não possa ser até confiscado a título de. Se o advogado recebe o produto de um crime como pagamento, sabendo que é produto de um crime, pode ser julgado terceiro de má-fé. Portanto, ao final do processo, a perda pode até atingi-lo. Mas, não há lavagem de dinheiro.
Borges — O critério é exatamente esse: há ou não há ocultação. À luz da legislação brasileira, o recebimento transparente por serviços prestados, com a devida declaração à Receita Federal, é impossível de ser criminalizado como lavagem de dinheiro. O parecer da advogada Heloisa Estellita, publicado no livro, é muito claro a esse respeito. E o que se pode exigir do advogado é a transparência no trato com o dinheiro e a efetiva prestação de serviços, mas não uma investigação ativa sobre a sua origem.
ConJur — Há dois votos publicados no livro, dos ministros Rogério Schietti e Sebastião Reis Junior, do STJ, que dizem respeito aos limites impostos ao uso do relatório produzido pelo Coaf para amparar denúncias e decisões judiciais sobre lavagem. Como está a jurisprudência sobre essa questão hoje?
Borges — Embora o STJ tenha afirmado que o Relatório de Inteligência Financeira (RIF) do Coaf sirva para amparar decisão de quebra de sigilos, o Tribunal continua a afirmar que ele não é suficiente, por si só, para embasar denúncias por lavagem de dinheiro. Esse é o estado da arte da jurisprudência no STJ hoje.
ConJur — O Supremo também julgou recentemente questões importantes sobre os limites do Coaf…
Borges — Sim, e creio que a próxima etapa de debates a propósito da atuação do Coaf dirá respeito a temas que foram examinados de maneira lateral ou superficial em julgamentos do Supremo. Principalmente sobre as comunicações da Receita Federal e do Coaf à Polícia e ao Ministério Público.
Porque apesar de o Supremo afirmar que o Coaf pode disseminar o seu relatório para os órgãos de persecução criminal, há questões em aberto. É necessário que haja controles mais claros para aferir se o Coaf age sempre dentro dos parâmetros prefixados de identificação de riscos que limitam a sua atuação, para que não seja instrumentalizado como braço dos órgãos de persecução criminal. Há outros aspectos que dizem respeito à cadeia de custódia desses relatórios. Um réu acusado com base em relatório de inteligência pode rastrear como esse relatório foi produzido? Como ele foi disseminado? Se foi feito a pedido de algum órgão, se foi espontâneo? Isso é importante para que se tenha acesso à reconstrução histórica desse meio de obtenção de provas.
Bottini — Para combater a lavagem, nossa legislação identifica várias instituições e setores profissionais que são mais sensíveis a esse crime. Bancos, leiloeiros, joalheiros, por exemplo. A lei exige que esses setores comuniquem ao Coaf todos os atos suspeitos de lavagem de dinheiro. Então, o que é o Coaf? É um órgão que recebe e organiza a informação. O Coaf não investiga, não toma medidas cautelares, não abre processo. É um órgão que recebe informações e as compartilha, dentro das regras legais. É importante ainda destacar que entre as decisões do STJ e o momento atual, há uma novidade chamada Lei Geral de Proteção de Dados. Ela não se estende à área penal, mas traz diretrizes que, junto com os preceitos constitucionais, deixam muito claro que dados pessoais são um direito fundamental, que so pode ser restringido por lei formal. Todo o tratamento e o compartilhamento de dados precisam respeitar essa diretriz. O problema é que não temos legislação que regre com detalhes o tratamento dessas informações pelo Coaf. O que o Coaf pode fazer? De que forma pode trabalhar com essas informações? Quais são os critérios que usa para compartilhar os dados? Há algumas poucas linhas sobre isso na lei de lavagem. É preciso responder a isso e preencher a lacuna legislativa grave que existe hoje no Brasil a esse respeito.
ConJur — É preciso ter cuidado para não banalizar o tratamento de dados, tampouco a persecução penal ao crime de lavagem.
Bottini — A banalização da imputação de lavagem de dinheiro está levando empresas ao exagero. Já é possível observar empresas gastando tanto dinheiro com projetos e programas de prevenção à lavagem de dinheiro quanto gastam com sua atividade-fim. Não é razoável. O próprio Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo), que é o órgão internacional de combate à lavagem, abriu recentemente uma mesa de discussão sobre as consequências indesejadas do cumprimento de suas próprias recomendações. Criou-se uma indústria de prevenção à lavagem que não alcança resultados úteis para a diminuição da criminalidade do ponto de vista estatístico, e acaba por drenar recursos que poderiam ser usados de forma mais inteligente no próprio combate ao crime.
ConJur — Qual a solução?
Bottini — É importante que empresas se preocupem e criem programas de prevenção à lavagem de dinheiro. Mas dentro da razoabilidade, sempre tendo em vista um foco, um resultado factível, e não criando procedimentos que, muitas vezes atrapalham a identificação de atos suspeitos, pelo excesso de informações inúteis que geram. A solução é combater o crime com racionalidade. As autoridades públicas precisam se dar conta dos excessos e discutir com racionalidade, clareza e transparência as soluções para que se combata o crime sem que isso gere problemas econômicos para o desenvolvimento. O uso de novas tecnologias — como o reconhecimento facial, o rastreamento eletrônico, o cruzamento de dados — podem ser uma solução.
Borges — Esse efeito é o que a doutrina e a jurisprudência norte-americanas chamam de chilling effect. Um efeito inibidor. Quando as autoridades exageram, quando passam a enxergar lavagem de dinheiro em tudo, geram um resfriamento até mesmo da atividade econômica lícita. Empresários que não estão envolvidos com o crime ficam verdadeiramente paranoicos e gastam fortunas para não se verem envolvido em acusações injustas. Isso gera efeitos muito ruins para a economia. Racionalidade é, de fato, a palavra de ordem.
Lavagem de Dinheiro: pareceres jurídicos, jurisprudência selecionada e comentada
Coordenadores: Pierpaolo Cruz Bottini e Ademar Borges
Editora: Revista dos Tribunais
Páginas: 438
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Acompanhe o debate na segunda-feira (25/10):
Entrevista publicada originalmente Consultor Jurídico.
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