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Eleições 2022 – a oportunidade de barrar o neofascismo no Brasil

Eleições 2022 – a oportunidade de barrar o neofascismo no Brasil

Há cem anos, em outubro de 1922, o regime fascista eclodiu na Itália, com a Marcha sobre Roma. Por meio desta marcha, que contou com uma grande adesão popular, Benito Mussolini ascendeu ao poder e ocupou o cargo de primeiro ministro italiano. Cerca de uma década depois, em janeiro de 1933, Adolf Hiftler instalou o regime nazista na Alemanha, que germinou em um terreno tão fértil quanto germinara o regime fascista e que a ele se equiparou, superando-o em crueldade, mortandade e outros fatores dantescos que marcaram a história do século XX.

Suscita-se agora, no século XXI, permeado por crises dos regimes democráticos, por um neoliberalismo atroz, pelo crescimento da extrema direta, pelo resgate de regimes autoritários, o retorno do nazifascismo – o neofascismo.

Compara-se o momento atual ao fenômeno histórico que, entre os anos 20-40, ensejou a 2ª Guerra Mundial e vitimizou destacadamente judeus (foram cerca de 6 milhões – o terrível holocausto), mas também comunistas, socialistas, negros, deficientes, testemunhas de jeová, homossexuais, ciganos, entre outros. Tais grupos sofreram confiscos de bens, foram explorados, torturados, massacrados, separados de suas famílias, submetidos a trabalhos exaustivos e a experimentos médicos cruéis, conduzidos a mortes avassaladoras – alguns assassinados a sangue frio e jogados em valas enormes onde se formavam montanhas de corpos humanos desvalidos, outros lançados em câmaras de gás e derradeiramente queimados.

Essas e muitas outras atrocidades especialmente cometidas pelo regime hitlerista envergonham a humanidade, nos atemorizam, nos chocam. E o risco de um regime assemelhado ganhar corpo entre nós não deve ser desprezado; não deve ser minimizado; não deve ser subestimado.

A triste e alarmante comparação entre os regimes nazifascistas e o momento atual (no Brasil e mundo) não é sem razão. Há, sim, similitudes entre os absurdos que a humanidade testemunhou no século passado – especialmente na Itália e na Alemanha – e o momento atual.

No Brasil, desde a aclamação a um conhecido torturador, por um então deputado federal no Congresso Nacional, durante a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff1, até incitações múltiplas de violência, declarações racistas, homofóbicas, xenofóbicas e alusões a símbolos, frases e imagens direta ou indiretamente vinculadas ao nazifascismo, temos nos preocupado, chocado e atemorizado. Lamentavelmente, tais ocorrências se assemelham às tendências que, no início das décadas de 20-30, cederam espaço ao nazifascismo.

Por décadas, filósofos, economistas, cientistas políticos, juristas e outros estudiosos das ciências sociais se debruçaram sobre o fenômeno para tentar compreendê-lo – para compreender as causas, as circunstâncias em que ele foi fecundado, o porquê de sua extensão tão alarmante, tão destrutiva. E alguns deles, nessa avaliação, alertaram para o risco de ressurgência, ou seja, de retorno de tendências, governos e inclinações nazifascistas.

Parte destes estudiosos avaliaram o que ocorria no calor dos acontecimentos, isto é, quando da irrupção do nazifascismo – ao tempo em que Hitler e Mussolini angariavam apoios e conquistavam o poder. Alguns anteviram o que ocorreria e foram desacreditados por seus pares. Como exemplo, citam-se Clara Zetkin, Leon Trotsky e Antonio Gramsci (este último, vítima do regime de Mussolini, escreveu sua obra mais importante durante a prisão política – “Os Cadernos do Cárcere”).

Outros estudiosos – a exemplo dos integrantes da Escola de Frankfurt, o Instituto de Pesquisas Sociais – analisaram as peculiaridades dos dois regimes enquanto eles se desenvolviam e se expandiam. Houve os que se debruçaram sobre os horrores das ditaduras italiana e alemã após a queda dos dois regimes, ao fim da Segunda Guerra. Entre eles, mencionam-se (i) Franz Neumann, que empreendeu um acurado estudo sobre o governo e o judiciário nazista na obra “Behemoth”; (ii) Friedrich Pollock, que cunhou o termo “capitalismo de estado”; (iii) Theodor W. Adorno, que desenvolveu um importante estudo sobre a personalidade autoritária; (iv) Herbert Marcuse e Max Horkheimer, estudiosos da filosofia; e (v) Wilhelm Reich e Eric Fromm, focados na psicologia e na psicanálise.

Aproximando-se do tempo presente, em vista de outras e agudas crises capitalistas, pesquisadores como Nicos Poulantzas retomaram a análise e alertaram para a possibilidade real de expansão dos movimentos fascistas e consequente retorno de governos da mesma natureza.

E até hoje, muitos são os analistas que tratam dessa temática com recorrência, sob variadas vertentes – econômica, filosófica, política, jurídica, psicanalítica. Reunidas, todas são válidas.

O fascismo representa um estado de exceção, que envolve várias nuances – emerge em períodos de crise, conquista a adesão popular, elege alguns inimigos (“bodes expiatórios”) como causa dessas crises e das mazelas que a população sofre, provoca impulsos violentos contra estes inimigos, enaltece valores tidos como supremos (família, Deus, propriedade, tradição) e manipula a psique de nossas frágeis subjetividades, na medida em que apresenta um líder (geralmente um homem, inconscientemente equiparado à figura paterna) como salvador; na medida em que aglutina pessoas carentes de uma causa para direcionar suas pulsões de vida em torno de lemas que provocam emoção (tal como o patriotismo), fortalecendo-as.

Hoje, estamos imersos em uma nova crise de contornos e extensões peculiares2 – crise potencializada por uma pandemia que tomou o mundo de assalto em 2020 (disseminação mundial da COVID-19, a qual vitimou quase 700 mil de pessoas no nosso país) e que repercute nas esferas econômica e política, provocando miserabilidade, desemprego, precarização do trabalho, ultraconservadorismo e a ascensão da extrema direita.

Nesse contexto, a trajetória do ex-presidente dos EUA Donald Trump é paradigmática. Depois de propalar discursos desagregadores e incitar uma histórica invasão ao Capitólio, em Washington, Trump teve sua conta suspensa e posteriormente banida da rede social Twitter. Com ineditismo, foi alvo de dois processos de impeachment aprovados na Câmara Estadunidense (o segundo ocorreu a seis dias de completar seu mandato). Ainda assim, construiu sólidas bases eleitorais e propagou o legado de sua governança, inspirando e fortalecendo Jair Bolsonaro e seus apoiadores, numa ameaça contundente ao já fragilizado Estado Democrático de Direito e às instituições nele baseadas.

Persiste o risco. Do declínio do Estado de bem-estar social ao vilipêndio dos sistemas ditos democráticos frente à extensão e à agudização do neoliberalismo, deliberações e práticas similares às dos regimes fascistas têm sido resgatadas por alguns estadistas. No mesmo compasso, narrativas autoritárias são ágil e intensamente disseminadas por meio de conexões ampliadas e instantâneas (a exemplo das redes ditas sociais), reverberando em diversos grupos.

Assim, similarmente ao contexto econômico, político e social que ensejou o implemento de regimes fascistas no início do século XX – com maior contundência na Itália e na Alemanha, a contemporaneidade oferece um campo fértil à legitimação de práticas coercitivas extremadas e de restrições de direitos há muito consagrados.

Persistem questionamentos quanto às circunstâncias que deram e dão guarida ao advento de sistemas opressivos e à diminuição (por vezes, à extirpação) de conquistas sociais que reduzem desigualdades longevas e garantem mínimas condições de sobrevivência a classes historicamente exploradas e extorquidas. Persistem, porque o fenômeno nos horroriza e porque percebemos sinais de que pode eclodir novamente. E qual a razão? Como nos prevenir? Como barrar comportamentos, discursos, inclinações fascistas?

A resposta não é difícil, mas sua implementação é. O fascismo está umbilicalmente ligado ao capitalismo. Enquanto houver capitalismo, que é atravessado por crises cíclicas (haja vista o modo de produção que o caracteriza, a concentração e o acumulação de riquezas), haverá risco de ressurgência fascista. Foi o que sintetizou o já mencionado Max Horkheimer, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais – “Quem não quer falar do capitalismo deve calar-se também sobre o fascismo”.3

O fascismo não representa a vez ou a oportunidade de pessoas maléficas, de sociopatas; não representa a luta do bem contra o mal. De quando em vez, enquanto existir capitalismo, surgirão Mussolinis, Hitlers, Salazares, Trumps, Bolsonaros.

Nos anos 20-40, o mundo experenciava uma intensa crise econômica. Basta lembrar da crise de 1929 – da explosão de índices inflacionários, da Grande Depressão. Alemanha e Itália, já enfraquecidas após a primeira guerra, sofreram contundentemente. Desesperançados, arruinados, pauperizados, atingidos em sua honra, dignidade, moral, alemães e italianos aderiram a um regime que lhes esperançou, lhes prometeu redenção, ascensão, crescimento.

E parte do empresariado, de industriais, da elite financeira à época, financiou tais regimes. Financiou, não porque se sensibilizou com a precariedade dos camponeses, dos miseráveis. Financiou, porque temia que regimes esquerdistas tomassem o poder; porque receava que a Revolução de 1917 ocorresse, de igual modo, no oeste europeu.

E hoje, em certa medida, essa nova crise capitalista também reacende esperanças; tal como no passado, também se insurge ferozmente contra a esquerda – demonizando-a, temerosa de que o sistema de concentração e acúmulo de riquezas sofra ranhuras, seja atacado e derrotado.

Daí, recorrendo a inverdade, ao negacionismo, ao irracionalismo, a teorias da conspiração, representantes do neofascismo, patrocinados por parte da elite financeira (tal como no passado) atraem a massa exaurida, acrítica, despida de consciência quanto à realidade social, quanto à classe que integram. Parte da elite financeira, a propósito, prefere aderir ao caos e a atrocidades, frente à ameaça de ruína do sistema capitalista de acumulação. Por isso, nos anos 20-40, patrocinaram os regimes nazifascistas. E, como ele, emergiram.

Absurdamente, no Brasil atual, a despeito de manifestações horrendas e que já deveriam ter sido coibidas e punidas por nossas instituições, parte da elite financeira financiou, financia e persistirá financiando os desvarios a que assistimos absortos, indignados.

No passado, se as supostas sandices de Mussolini e Hitler fossem coibidas a tempo, se houvesse intenção para tanto, talvez o mundo não fosse maculado por essa mancha do holocausto, da Segunda Guerra – um legado de muito sofrimento em todos os níveis. Agora, se não barrarmos o que está havendo, se continuarmos a subestimar falas, omissões e ações inenarráveis de um grupo que ocupa o poder – no executivo, no legislativo e em outras esferas – não sairemos ilesos.

E, por ora, como instrumento para tanto, dispomos do voto. As eleições são iminentes e compete a cada um de nós, olhando para passado, pensando no futuro, votar com responsabilidade. Depois, temos de avançar; temos de repensar o sistema que está posto. É ele a causa primária de tendências fascistas e ditatoriais.

Então, pensemos criticamente a partir de então. Mas, agora, coibamos esses discursos, esses comportamentos, essas tendências ao autoritarismo, à divisão social, à eleição de um inimigo comum que deve ser extirpado, à ideia de pátria que não acolhe a pluralidade, à violência, à expansão desmedida de armamentos. E coibir, neste momento, é não aderir aos atuais representantes destas tendências; não aderir, não compactuar e, sobretudo, não subestimar.


1 https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160415_bolsonaro_ongs_oab_mdb – entre outras insurgências, este ato ensejou um pedido de cassação do então deputado Jair Bolsonaro pela OAB.

2 A respeito da crise atual, recomendável a leitura de “Crise e golpe”, de Alysson Mascaro – MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Crise e golpe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

3  Tradução nossa do original: “Wer aber vom Kapitalismus nicht reden will, sollte auch vom Faschismus schweigen”. HORKHEIMER, Max. (1939). Die Juden und Europa. Studies in Philosophy and Social Science, 8, caderno 1. Reimpressão pela Deutscher Taschenbuch Verlag, 1980, p. 115.

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