Inusitado julgamento está na pauta do Supremo Tribunal Federal: a questão do indulto natalino editado em 2017 pelo presidente Michel Temer, que teve os seus efeitos sustados em face de uma decisão monocrática proferida por um de seus componentes, levado ao plenário um ano depois, neste mês de novembro. Os 11 ministros estão apreciando a questão, que rigorosamente não deveria estar em pauta, pois a matéria da concessão anual de indulto coletivo é da exclusiva competência do presidente da República, nos exatos termos do artigo 84, XII, da Constituição federal.
Aqui abro um parêntesis. As decisões chamadas monocráticas, hoje utilizadas pelos tribunais superiores até para julgar o mérito dos recursos e dos habeas corpus, quebram o princípio do colegiado e representam uma mordaça colocada nos advogados, que estão impedidos de sustentar seus pleitos oralmente. O recurso cabível desses julgados individuais não permite que os defensores se manifestem perante os integrantes de uma das turmas ou do plenário. Talvez essa impossibilidade imprima mais celeridade às sessões e venha ao encontro do desígnio de alguns ministros que não gostam de nos ouvir. Mas, com certeza, representa um cerceamento de defesa, obviamente em detrimento do cidadão jurisdicionado.
Voltando ao indulto, é interessante notar que a cautelar concedida monocraticamente, muito antes das eleições presidências do corrente ano, guarda perfeita sintonia com o desejo do presidente eleito de pôr fim ao milenar e universal instituto do indulto.
A suspensão do indulto natalino, apoiada por outros ministros, e a opinião do futuro chefe do Executivo parecem coincidir quanto à visão que têm sobre o sistema penal brasileiro: o Estado deve exercer o seu dever punitivo não somente para aplicar as sanções previstas nas leis penais, quando infringidas, mas também deve imprimir a tais sanções um cunho de castigo e de verdadeira vingança. Não basta ser aplicado ao culpado o rigor da lei. É imprescindível que ele sofra com punições paralelas.
Em certa medida, esse desiderato corresponde ao anseio da sociedade, estimulado e divulgado pela mídia, de obrigar o acusado a expiar e purgar os seus pecados e crimes. Aplicar “correções” exemplares, mortificar até o limite do possível, humilhar, expor à execração pública são providências que passaram a fazer parte do rol de retribuição pelo crime aceitas e almejadas por um corpo social cada vez mais intolerante e sequioso por punição. É de perguntar se não se está desejando a volta dos linchamentos, das chibatas, dos pelourinhos, das cruzes, das forcas e das guilhotinas. Caíram em desuso, mas será por pouco tempo ou continuaremos a resistir e a impedir a volta da barbárie?
Como dito, rigorosamente o indulto natalino não deveria estar sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se de prerrogativa constitucional do presidente da República. No entanto, uma vez que a decisão isolada foi proferida, tornou-se imprescindível que o Supremo Tribunal Federal, por intermédio de todos os seus 11 ministros, se manifestasse, pois a questão passou a carecer de deslinde. Isso, aliás, está ocorrendo e, ao que parece, para repor o bom Direito.
A sanha punitiva que tomou conta da sociedade parece estar batendo às portas do Judiciário. Sendo verdade, a característica mais significativa e marcante da Justiça, que é a imparcialidade, estará correndo riscos reais, pois os juízes de todos os graus se sentirão no dever de punir sistematicamente, em nome de um enganoso combate ao crime. Na realidade, o apregoado combate é falacioso. Ele se dá por meio da punição e esta, por sua vez, só é imposta após a ocorrência do delito. O combate seria verdadeiro caso as causas dos crimes estivessem sendo atacadas. Isso, no entanto, não é realizado. Apenas se quer punir.
Que o presidente da República pregue o castigo, o sofrimento, a ausência de humanismo, complacência para com os criminosos indiscriminadamente, colocando na vala comum todos eles, desde aquele que cometeu um furto famélico até o mais sanguinário dos facínoras, não se aceita nem se compreende, mas se pondera que ele é o chefe do Poder Executivo, e não magistrado. Deste se exige imparcialidade e isenção.
A assunção de uma posição a favor de punição sistemática, com provas, por vezes sem provas e até contra as provas; a visão da prisão como única resposta para o crime; a negativa reiterada de benefícios legais aos acusados ou condenados, por aqueles que têm um compromisso indeclinável de bem aplicar a Constituição e as leis; enfim, a perda da imparcialidade, tudo isso representa a negação absoluta do Estado Democrático de Direito.
O Estado punitivo em substituição ao Estado juiz pode nos levar ao autoritarismo do Judiciário e à anomia social e jurídica.
Por outro lado, os que defendem a abolição do indulto e de outros benefícios, ou a sua mitigação, estão se esquecendo de que o crime é um fato social e humano. Dessa forma, qualquer cidadão poderá sentar-se no banco dos réus, sendo culpado, tendo uma responsabilidade menor do que aquela que lhe é atribuída ou mesmo sendo inocente. Vale dizer, o crime é potencialmente de todos nós, razão pela qual devemos desejar sempre e para todos a aplicação da pena justa e um tratamento humano quando do seu cumprimento.
Aliás, não se esqueçam da desumanidade representada pelo Sistema Penitenciário Brasileiro.
A sociedade e os pregoeiros da vingança e do castigo precisam lembrar-se também de que o homem encarcerado um dia voltará ao convívio social. E, com quase certeza, desejará, ele, sim, vingar-se, transformando o ambiente deletério das nossas prisões em motivos para aumentar a intensidade de suas agressões contra a mesma sociedade que o encarcerou sem nenhum resquício de humanidade, complacência ou comiseração.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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