Por Priscila Camazano
Historiador afirma que falta espaço para discussão sobre racismo ambiental no debate climático
A Coalizão Negra por Direitos esteve com uma comitiva na COP26, a Conferência do Clima da ONU realizada em Glasgow (Escócia) de 31 de outubro a 13 de novembro. Foi a primeira vez que o movimento negro participou do evento e jogou luz sobre um tema que tem sido negligenciado no debate climático: o racismo ambiental e as consequências da crise climática para as comunidades quilombolas.
Composta por organizações como Uneafro Brasil, Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e outros movimentos, a comitiva teve como um de seus representantes o historiador e cofundador da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior, 42.
“A COP precisa ser estruturada a partir do debate sobre racismo, porque ele é o sistema de dominação que organiza a sociedade moderna em todo o planeta”, afirmou Belchior.
Para ele, falta espaço para a discussão sobre racismo ambiental no debate climático. “O impacto socioambiental é ainda mais agressivo nas populações quilombolas e negras das periferias”, afirmou. “Estamos falando, sim, de um novo colonialismo, mas agora pintado de verde.”
O movimento oficializou a sua participação no evento no dia 5 de novembro, quando realizou o painel “Terra, territórios e o enfrentamento ao racismo nas lutas contra a crise climática”. Na ocasião, a Coalizão Negra lançou também uma carta em que mais de 200 organizações defendem que “titular as terras quilombolas é desmatamento zero”.
Em entrevista à Folha, Belchior falou sobre a relação entre a crise climática e o racismo, a importância de discutir o tema na conferência e como foi a participação do movimento negro no evento.
A comitiva do movimento negro na COP26 exibiu uma faixa com os dizeres “justiça climática sem justiça racial é o novo colonialismo”. Como a crise climática dialoga com o racismo? Nossa carta lançada na COP26 destaca que os países em desenvolvimento e pobres não podem voltar a ser colônias e novamente serem impactados pela nova industrialização “carbono zero”. É preciso que a economia de baixo carbono, ou verde, como dizem, não repita os erros que a história mundial cometeu até hoje. Entre eles, estão o racismo e os impactos socioambientais que são ainda mais agressivos nas populações quilombolas e negras das periferias. E temos também a falta de espaço no debate climático. Sem essas mudanças, estamos falando, sim, de um novo colonialismo, mas agora pintado de verde.
Em um Estado racial de supremacia branca, de racismo antinegro ou antipovos indígenas, tudo que decorre da ação do Estado é racista. E a relação com o ambiente também.
A primeira Revolução Industrial foi fruto direto de 400 anos de escravidão da América. O próprio capitalismo como a gente conhece é fruto dessa escravidão da terra e dos povos originários e africanos. O mundo que a gente conhece se assenta sobre isso, ideologicamente cravado na lógica e na ideia do racismo. Com uma proposta de organização social de dominação racial sobre todos os outros.
No Brasil, pessoas negras são mortas todos os dias em decorrência de toda essa dinâmica histórica. E aí também se aplica o racismo ambiental, por conta da história do uso da terra, dos espaços físicos, do território do campo e da cidade, do acesso à água e das condições sociais e ambientais de saneamento. Só quem sofre com essas questões é quem sabe a complexidade da vida.
Como disse a professora Dulce Pereira, o racismo ambiental é uma das materializações do racismo que estrutura o país.
Por que é importante discutir racismo ambiental em um evento como a COP26? É sobre a vida da maioria da população brasileira. O movimento negro não entrou na luta ambiental ontem, ele foi colocado de fora da agenda climática durante muito tempo. São mais de 500 anos, a população quilombola brasileira produz a luta pelo direito à terra. A luta por um território saudável, que não será desmatado, que não será contaminado, que irá proteger a biodiversidade e as águas, que não emitirá carbono.
Como foi a participação do movimento negro na conferência na ONU? Nós estamos vivendo um movimento inédito, pois temos responsabilidade política. O que fizemos na COP26 é histórico. Organizamos um bloco do Movimento Negro Brasileiro em nosso próprio nome. Enquadrando, levando nossa demanda, nossa agenda política, os poderosos e donos do mundo para mostrar o que nós entendemos como necessidade para salvar o planeta.
O modelo de vida que nós defendemos vem dos quilombos, das aldeias e povos originários, nas cidades no papel das matrizes africanas. Defender o nosso quintal, a vivência e a elaboração política de quem vive ali, é salvar o planeta.
É um orgulho poder representar parte do movimento, ao lado de importantes líderes da nossa causa. Como disse o poeta José Carlos Limeira, estamos fazendo Palmares de novo. E nada mais importante do que o cuidado da terra para isso. Os quilombos eram um lugar de produzir vida, inclusive a partir da terra, ter autonomia sobre o que queremos comer e como viver.
Na carta lançada na COP26, a Coalizão Negra afirmou que “titular as terras quilombolas é desmatamento zero”. Qual o impacto da crise climática para as comunidades quilombolas? As comunidades quilombolas sofrem com o não conhecimento da sua importância de maneira geral, historicamente. Não há titulação de territórios quilombolas há anos.
Durante a pandemia a Conaq teve que entrar na Justiça para que os quilombolas tivessem direito a ser considerados prioridade na vacinação. Há uma negação do direito dessa população em um nível altíssimo. E há mais do que isso, há uma invisibilização e negação das experiências de organização politica do povo negro.
O movimento quilombola tem uma coordenação nacional que se organiza há cerca de 25 anos e discute crise ambiental há 25 anos. Como a imprensa não sabe disso? Como ignora essa organização tão antiga e poderosa?
Da mesma maneira que o mundo reconhece a importância de proteger os povos indígenas, porque eles protegem a floresta, é preciso proteger quilombos, porque população quilombola viva também é a garantia de defesa da floresta, dos territórios e de todos os biomas, não só da Amazônia.
São 6.000 territórios quilombolas e não há política de titulação, de investimento, de apoio a essas comunidades. Há experiências riquíssimas de produção agrícola sem o uso de agrotóxicos e de cooperativas de produção de pequenos agricultores quilombolas que são ignoradas.
Depois de passar por Glasgow, a comitiva esteve em Paris, Madri e Berlim. Como foi a discussão sobre racismo ambiental nessas cidades? Nós saímos de Glasgow e fomos direto para Paris onde aconteceu no sábado (6) a Marcha pelo Clima, evento que ocorreu simultaneamente em vários países da Europa.
Participamos da marcha e levamos a demanda sobre o debate de clima no Brasil, reivindicando, da mesma maneira que fazem os nossos irmãos indígenas, que é necessário proteger a vida das pessoas na floresta, nas águas, os ribeirinhos e os povos tradicionais de todas as vertentes.
Há séculos existe um modo de produção na sociedade mundial que destrói o planeta. Nós temos que questionar essa maneira de se relacionar com o clima.
Do ponto de visto racial brasileiro, nós estamos falando de uma sociedade cravada na construção a partir de quatro séculos de escravidão dos povos originários, populações indígenas e do povo negro. Esse povo está no interior desse país e nas florestas. O povo negro, inclusive, é maioria entre as populações da Amazônia Legal, somos quase 80% nos nove estados [da região].
Portanto, passa pela proteção das pessoas, pessoas vivas são árvores e florestas de pé, são a grande saída e solução da preservação do meio ambiente no Brasil.
O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, afirmou durante a COP26 que “onde existe muita floresta também existe muita pobreza” e o senhor rebateu dizendo que a fala era racista. Poderia comentar? É racista porque ele não reconhece a humanidade dos povos que vivem na floresta. Ele não reconhece a importância e a riqueza da biodiversidade brasileira.
Do ponto de vista deste governo, o modo de vida dos povos indígenas e dos quilombolas é pobre. É um olhar colonizador e negador da humanidade do outro. O conceito de pobreza deles é o modo de vida que não é adequado ao que eles entendem como riqueza. Ele está falando de pessoas brancas que detêm o poder econômico e que vivem no concreto da cidade.
As manifestações são racistas quando Bolsonaro diz que os quilombolas pesam em arrobas. Ele está relacionando aquela pessoa a um animal. É racista porque o argumento está partindo da ideia de que determinados grupos, esses que vivem nesses territórios, não são detentores de humanidade suficiente.
Em artigo publicado na Folha, o senhor afirmou que a COP26 precisa dar a devida urgência ao tema do racismo ambiental. Houve avanço no debate? O que houve foi uma mobilização da sociedade civil organizada que entendeu a importância de se mobilizar, mas não houve alteração ou mudança no sentido da conferência como estrutura enquanto espaço oficial. A própria ONU precisa avançar no debate sobre a importância do racismo ambiental. Nós sabemos que isso não vai acontecer de maneira gratuita, isso será fruto da mobilização e da pressão.
A COP precisa ser estruturada a partir do debate sobre racismo, porque ele é o sistema de dominação que organiza a sociedade moderna em todo o planeta.
Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.
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