Por Reinaldo Azevedo
Os obscurantistas da CPI perderam o que nunca tiveram: rumo. Fingiam ao menos. A infectologista Luana Araújo destruiu, com a impiedade que a verdade simula às vezes — mas é só a verdade, nada mais do que ela —, cada uma das diatribes toscas a que se dedicaram Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Melo (PL-SC), Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos do Val (Podemos-ES).
Num momento que teve até a sua graça, Heinze — aquele que finge transformar em sapiência as compilações que lhe são entregues pelo Gabinete do Ódio — resolveu exaltar as qualificações científicas do picareta francês Didier Raoul, o malucão que começou com esse papo de cloroquina contra coronavírus, com base em meros “estudos observacionais”.
Luana perguntou, então, se ele já tinha ouvido falar no “Rusty Razor”. A doutora se referia a uma premiação simbólica, criada pela revista britânica “The Skeptic”, que distingue a pessoa que mais promoveu pseudociência. Raoul foi o escolhido no ano passado. Rusty Heinze nunca tinha ouvido falar. Não constava da sua colinha de absurdos e mexericos das redes sociais.
Depois de Nise Yamaguchi, com seu negacionismo estúpido e sua assombrosa mediocridade intelectual, a passagem de Luana pela CPI foi uma epifania, no sentido de revelar o sentido essencial das coisas.
Não! Ela não é de esquerda e não tem vínculo partidário de nenhuma natureza — ainda que fosse e tivesse, é bom deixar claro, repetindo o que ela mesma disse: ciência não tem lado. Existem a boa e a má.
“VALIDAÇÃO POLÍTICA”
Observem: ela havia aceitado um cargo no governo Bolsonaro. Chegou a ser nomeada secretária especial para o enfrentamento da Covid-19 e foi demitida dez dias depois. Segundo o estupefaciente ministro Marcelo Queiroga, ela precisaria ter, além da “validação técnica”, também a “validação política”.
E aí está o paradoxo que resulta em morte em massa. Quem, no Ministério da Saúde, tem a validação técnica jamais terá a política porque não aceita lidar com a desinformação, com a malandragem e com charlatanismo. E quem tem a validação política não terá, por óbvio, a técnica: como Pazuello, Queiroga e Nise. E estamos como estamos. Marchamos para 500 mil mortos, enquanto “Rusty Heinze” insiste que o mundo está aderindo ao Kit Bolsonaro. Segundo diz, já são 28 países… Ainda que verdade fosse, o “Rusty” não se deixa convencer pelos 167 que não querem ouvir falar dessas porcarias.
Como Luana sabe o que sabe e não depende da boa-vontade de picaretas, pode dizer com clareza o que a ciência consagra. Sobre o uso de drogas inócuas contra o vírus — e com graves efeitos colaterais em muitos casos —, afirmou: trata-se de uma “discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”. E reiterou os termos de um texto antigo seu, que pode ter-lhe custado a demissão dez dias depois de nomeada, em que afirmou que coisas como o tal Kit Covid colocavam o Brasil na “vanguarda da estupidez mundial”.
Os arautos das trevas quedaram-se paralisados, tartamudeando objeções banais. Mais um pouco do poder também retórico de Luana? Pois não:
“Ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de que borda da Terra plana vamos pular. Não tem lógica”.
O tal Do Val disse que recebera mensagens no celular de familiares médicos apontando que Luana estaria “desrespeitando os seus colegas”. Ele próprio, claro!, afirmou defender as vacinas, mas por que não, também, a cloroquina, já que o médico deve ter a liberdade de prescrever etc, etc, etc?
A infectologista disse que respeitava, sim, seus colegas, mas que falava ali de “responsabilidade”. Defendeu com ênfase, nem poderia ser diferente, a autonomia do médico para prescrever um tratamento, mas afirmou com absoluta precisão e correção:
“A autonomia precisa ser defendida, sim, mas com base em alguns pilares: do conhecimento, da plausibilidade teórica, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, da ética e da responsabilização”.
O Conselho Federal de Medicina, por exemplo, não entendeu isso até agora. Ou melhor: entendeu. Mas o alinhamento político com o governo Bolsonaro substitui a ciência pela ideologia. Dados os parâmetros do CFM, um médico tem liberdade para receitar cloroquina ou bosta de burro para um paciente de Covid-19.
E sobre tratamento precoce? Doutora Luana gravou na pedra:
“Todos nós somos absolutamente a favor de uma terapia precoce que exista. Quando ela não existe, ela não pode se tornar uma política de saúde pública”.
Até o senador Rusty Heinze entendeu.
Ocorre que lhe passaram uma tarefa: produzir obscurantismo e livrar a cara do chefe.
Convenham: não havia mesmo espaço para Luana no Ministério da Saúde.
Ali é preciso ter uma validação política que anula a validação técnica e moral.
Artigo publicado originalmente no UOL.
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