Por Tarso Genro
“Nossas decisões e ações irão determinar se usaremos nossa dor, nosso pesar e ultraje para caminharmos em direção à única solução duradoura para nosso país — um governo eleito pelo povo, do povo e para o povo. Não se apresse, pense, analise, então aja.”
(Nelson Mandela)
A luta de partidos e a luta de ideias no campo da política, que renasceu de forma mais civilizada depois da superação da tentativa golpista simbolizada pelo 8 de Janeiro, não tem tido uma correspondência suficientemente articulada no campo da Teoria do Direito, especialmente no que refere às questões constitucionais referidas às Forças Armadas.
Estas, enquanto existirem as guerras, não só jamais serão extintas como não serão cooptadas politicamente por quaisquer governos civis, em qualquer parte do mundo. Quanto a estes, as tentativas de cooptação normalmente desandaram para a supremacia militarista sobre o Estado.
As Forças Armadas podem ser cooptadas por governos militares fortes — autoritários ou ditatoriais — ou em situações de Guerra por Governos civis de unidade nacional. Trata-se, portanto, de verificar com quais parâmetros as Forças Armadas de um país como o nosso, que não está em Guerra nem quer Guerra, devem ser tratadas para cumprirem políticas de Estado na Defesa Nacional, na garantia do funcionamento do poderes, na proteção do território e na conservação das nossas riquezas.
Os crimes de bando (associação criminosa) exigem uma participação consciente dos sujeitos ativos, associados e previamente organizados para o “fim específico de cometer crimes”.
O crime de golpe de Estado pode ser organizado por uma associação criminosa ampla, por uma cadeia associativa de cumplicidade criminosa — estanque ou não — ou até mesmo por tentativa individual de uma liderança política institucional (ou extra institucional) para tentar destituir quem está exercendo o poder legal e legitimamente.
Um texto brilhante de Milly Lacombe (11/2/2024) que circula nas redes, mostra um desses momentos preparatórios à tentativa de golpe, efetivada por um perigoso e estranho grupo dirigente.
A trágica, patética, doentia e anárquica reunião, presidida por Bolsonaro destinada a “fechar” a unidade política do governo para a aventura golpista, reuniu os seres políticos mais nefastos, ignorantes, reacionários e fascistas, do espectro vencedor das eleições de 2018.
Ali, os militares e civis presentes mostraram uma divisão nas FFAA, que não era necessariamente ideológica, mas uma ruptura entre de um lado a mínima sensatez e profissionalismo dos tempos da globalização por fora da Guerra Fria e, de outro, a marginalidade fardada e civil, sem nenhum compromisso, mesmo com a tradição autoritária e conservadora das próprias Forças Armadas vinculada ao Projeto do “Brasil Grande” do Golpe de 64.
Na reunião a tentativa de golpe estava absorvida por inteiro pela compulsão do crime “desorganizado”, que combate o Estado de Direito para cumprir o seu destino de “dever ser” — como grupo dominante — no interior do espectro da direita fascista e\ou conservadora que nos governava.
Na história do liberalismo político [1] “a capacidade dos seres humanos, compreendidos como agentes racionais (…) é o núcleo do conceito de liberalismo, (que) apresenta a liberdade individual como valor fundamental: a autonomia, então, é a capacidade individual de tomar e justificar decisões nas relações intersubjetivas”.
Há uma escala de mediações, todavia, a ser observada para o exercício dessa liberdade individual, especialmente nas Forças Armadas de qualquer nação, que passa pela tradição moral e intelectual das classes dominantes do país, das formas de dominação vigentes num momento dado da vida do Estado atravessadas — igualmente — pelas condições psicológicas e culturais de cada indivíduo, dentro de uma dada estrutura de poder, assim como pela sua experiencia educativa, fora e dentro dos quartéis.
Nas estruturas militares de qualquer ordem a formação do indivíduo passa por duros protocolos de disciplina consciente — de reconhecimento de hierarquias e ou de servidão voluntária nas relações intersubjetivas, que faz o exercício desta autonomia mais complexo do que na vida comum civil.
Se não for compreendida esta especificidade não se compreenderá o “ser militar” e os próprio limites da sua autonomia na vida militar, necessários em qualquer tipo de Estado Moderno, que confie a sua defesa nacional a um contingente especializado e organizado de pessoas.
O que distingue os militares portanto, como corporação especial de qualquer nação democrática não é, então, a sua fidelidade formal às normas da Constituição, cuja decisão sempre estará nas mãos das cúpulas de superiores hierárquicos, a quem os “inferiores” tributam a sua disciplina em qualquer lugar do mundo.
O que os diferencia é a sua capacidade de distinguir — entre os seus superiores — aqueles que traem o espírito da Constituição Democrática, para buscar exercer seu próprio poder, e os que — mesmo em momentos de crise — se mantêm fieis ao sentido mais amplo da democracia constituída, cujo preâmbulo distribui seu valores a toda a ordem jurídica.
É importante discutir esses temas no âmbito da Teoria do Direito e da Teoria Política, porque as diferentes posições dos militares brasileiros sobre a tentativa de golpe de Estado, encetada por quadros civis e das Forças Armadas — pela provas colhidas até o momento — mostram uma sucessão de atos preparatórios e depois um conjunto de movimentações-tentativas, com objetivos atingíveis, se os coordenadores da aventura tivessem obtido uma adesão majoritária partir da cúpula das Forças Amadas do país.
Neste quadro a “não adesão”, sustentei eu sob impropérios “radicais”, exerce um papel-chave e digno no insucesso do golpismo.
Três posições
À medida que a conspiração foi sendo desvendada ficou claro que existiam nas Forças Armadas (não se sabe ainda em que proporção) três posições dominantes: uma parte destas sofreu um assédio de cooptação pelos líderes golpistas da extrema-direita militar sem aderir a ela, mesmo sendo alvo de diversos graus e formas de apelos violentos; outra parte que concedeu — rapidamente — seu acordo com os líderes golpistas e participou diretamente da tentativa; e uma terceira parte, ainda, que não concordava com a ação golpista – por diversos e diferentes motivos — e repudiava a ação subversiva que estava em andamento.
Para que se faça uma exame sereno deste processo devem ser levados em consideração alguns elementos particulares da tentativa de golpe: primeiro, ela foi coordenada pelo próprio comandante supremo das Forças Armadas, estabelecendo assim uma dupla conexão com a disciplina militar — como costume e norma — atemorizando os elementos mais vacilantes, para a sua adesão ou não, à aventura golpista; segundo, foi uma tentativa golpista original, fora da tradição dos golpes latino-americanos, pois trabalhada nas redes, cresceu nas redes e invadiu os quartéis e os lares dos militares e da sociedade civil, a partir da ficção (renovada) do perigo comunista e do fanatismo religioso; terceiro, o campo democrático não esteve em condições de reagir, unitariamente — a tempo — contra o golpe, que começou a ser preparado na própria eleição de Bolsonaro e que unia, contra o PT e a esquerda (que são minoritários no país) todas as posições da velha ordem oligárquico-industrial, que controla a comunicação e a vida produtiva do país.
O processo
Vejamos em que quadro normativo e de valores se dá este processo. O preâmbulo da CF de 88 diz que a Assembleia Nacional Constituinte “institui um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direito sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”(…), na qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição” (artigo Primeiro § único), cujos “fundamentos” estão previstos como normas-princípios, tanto como os da “igualdade perante a lei” como da “inviolabilidade dos direitos”.
O artigo 142 da Constituição que regula a “materialidade” deste “dever ser” da nação, para ter viabilidade de efetivar-se, deve compor um sistema de defesa da pátria (do “território político” da nação) — através das Forças Armadas — para garantir o funcionamento dos poderes constitucionais (Legislativo, Judiciário e Executivo), sob autoridade do presidente da República: as Forças Armadas, que são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, estão necessariamente vinculadas a estes sedimentos do Estado de Direito.
Salienta [2] Zaffaroni que “um olhar mais atento permitirá verificar que aquele “dever ser” (da Constituição) por si mesmo, cumpre uma função importante, mas “tampouco é fácil o avanço da sua vigência”.
E segue o mestre: “em outros tempos a dignidade da pessoa e da natureza era questionada como simples ideologia, no mau sentido da palavra”, (mas) agora ninguém pode negar que se trata de direito positivo, ao menos como ”dever ser” positivo e vigente (e que) “quem viola a norma pode ser assinalado como infrator e, ademais, sabe que atua ilicitamente, ainda que negue e racionalize a sua negativa”.
Na ideologia política dominante nos meios aristocráticos-conservadores (Hayek e von Mises) está toda a contenção antihumanista do Direito, lembrada por Zaffaroni, mencionada no livro de Hayek — “A mentalidade anticapitalista” — onde este reclama contra o reconhecimento dos direitos inalienáveis do ser humano, com uma sentença clássica: “se parte sempre de um erro grave, mas muito expandido: que a natureza concedeu a cada um direitos inalienáveis pelo simples fato de ter nascido”.
Síntese
A síntese desta visão de humanidade é que os homens não podem sequer serem presumidos como iguais, como seres humanos porque, necessariamente, estão constituídos por diferenças que vêm da própria naturalidade e que são insuperáveis, por isso não podem deter uma correspondência sólida com direitos inalienáveis.
Zaffaroni reclama corretamente que as Academias de Direito e as instituições do mundo jurídico, atravessadas por interesses mesquinhos, por falta de preparo e falta de iniciativa para lutar no campo da Teoria – e mesmo por uma depreciação ignorante das grandes conquistas do iluminismo democrático – têm sido muitas vezes cúmplices das novas tragédias do século 21.
O Von Ihering da “Luta pelo Direito” vai sendo colocado cada vez mais no fundo das gavetas das bibliotecas vetustas, substituído pelos juristas da “exceção” como normalidade e pelos juízos de “normalidade” que aceitam a depreciação do seres humanos concretos para louvar o capital abstrato, que se realiza — hoje — no fascismo e no rentismo que governa os governos e também as nossas vidas assediadas pelas guerras.
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[1] CAMILLOTO, Bruno; VIEIRA, Giule, MATA, Sérgio- O problema do conceito do Liberalismo-São Paulo, Editora Contracorrente, 2023.
[2] ZAFFARONI, Raúl- Para que sirve el Derecho?- la tecl@Eñe Revista, 13 de fevereiro de 2024
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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