Por Upiara Boschi
“Quando o Judiciário tem membros sendo vaiados ou aplaudidos, há algo errado no Estado de Direito”. A frase é de José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça e advogado de Dilma Rousseff (PT) no processo de impeachment em 2016. O petista encerrou o XIV Congresso de Direito da UFSC na última sexta-feira, com uma palestra em que criticou o “ativismo judicial exacerbado” e disse temer um avanço autoritário no país liderado por uma “aristocracia burocrática”.
Depois da palestra, conversei com José Eduardo Cardozo. Sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro, o petista disse que ele “se legitima através do confronto e ao fazer isso aprofunda a crise institucional do Brasil”.
– Eu que achava que a eleição recomporiam o quadro de violação democrática, vejo hoje o Brasil indo ladeira abaixo do ponto de vista institucional – disse Cardozo.
Leia a entrevista
O senhor defendeu a ex-presidente Dilma Rousseff no processo de impeachment. Acha que a crise política piorou três anos depois?
Na defesa do impeachment eu já dizia que não existe solução para o Brasil fora da democracia. Infelizmente, a meu ver, o impeachment levou ao enfraquecimento das instituições democráticas no Brasil. Há gente que concorda, gente que discorda, mas acredito que naquela época já estava muito claro que viveríamos momentos de muita turbulência no Brasil. Mas eu esperava que com as últimas eleições houvesse uma repactuação institucional. Aí eu avaliei errado, porque o governo eleito não tem nenhuma preocupação com a institucionalidade brasileira. Parece que o atual governo quer aprofundar o embate.
A lógica do confronto é a forma como o governo de Jair Bolsonaro se legitima?
Ele se legitima através do confronto e ao fazer isso, aprofunda a crise institucional do Brasil. Eu que achava que as eleições recomporiam o quadro de violação democrática, vejo o Brasil indo ladeira abaixo do ponto de vista institucional.
Há uma avaliação de que setores do próprio governo, especialmente os militares, começam a se incomodar com essa lógica de confronto. Como o senhor vê?
Vejo claramente isso. Aliás, não vejo um governo, vejo governos. Núcleos que não se entendem. Vejo um decreto de armas que vai na contramão da história e vejo que dentro do governo existia uma oposição em relação a isso. Ministros que eram “superministros” (referência a Sérgio Moro, da Justiça) simplesmente se submetem a situações que acredito que vão contra suas próprias convicções. E aí acaba havendo dentro do próprio uma confusão demoníaca. Não tem dia que não tenhamos graves trapalhadas e isso tem reflexo claro na economia e na institucionalidade.
Existe uma expectativa no governo e em que o apoia de que a reforma da previdência pode gerar um otimismo em mercados e investidores que resultaria no crescimento da economia. Não há um risco de gerar uma frustração se o resultado não vier?
A reforma da previdência tem que ser discutida amplamente com a sociedade. Eu, pessoalmente, acho até que é necessária. Não nos termos propostos pelo governo Bolsonaro, que acho absurdos. Mas isso tem que ser discutido pela sociedade de uma forma ampla. Imaginar que ela vai resolver todos os nossos problemas é ser muito ingênuo. Ela vai atender a um problema e, se vier da forma que o governo Bolsonaro quer, a certas expectativas empresariais. Para a população é péssima. Imaginar que isso vai tirar o Brasil do desastre é de uma ingenuidade brutal. O governo hoje não consegue parar em pé no Congresso Nacional. Em lugar nenhum. Nunca vi com menos de 120 dias de governo um negócio desses tão descalibrado, despropositado.
O Brasil parece ter entrado em uma momento em que vão prevalecer as ideias mais à direita, que chamo de onda conservadora. Acha que o presidente Bolsonaro consegue se manter como líder desse movimento ou será descartado?
A impressão que eu tenho não é a de que ele será descartado. Ele é que está se descartando. O que está acontecendo hoje no Brasil é fruto da própria fragilidade, incompetência, irracionalidade do próprio governo.
Estamos falando bastante de Bolsonaro, mas sua palestra fez uma avaliação mais profunda da situação envolvendo Lava-Jato, ativismo judicial, Estado de Direito. Às vezes brinco que estamos vivendo a Revolta dos Concursados, que estariam dispostos a consertar o país por dentro. Acha que isso é mais relevante que o próprio bolsonarismo?
Toda vez que você tem a negação do Estado de Direito e da democracia, seja através de um governante eleito pela própria democracia, seja através de estruturas burocráticas do Estado, que se acham mais legítimas que os eleitos. Às vezes nós temos a dimensão de que uma pessoa ao ser concursada, ela é mais capacidade para gerir a política pública do que um não concursado. Isso é um equívoco grotesco. O concursado pode ser mais preparado tecnicamente, mas ele não pode ter liderança e conhecimento da vida necessários para fazer isso. Ou seja, o técnico é importante para fornecer subsídios técnicos para quem decide, não para ele decidir. Quando temos elementos corporativos querendo assumir o exercício do poder políticos, com projetos políticos que chegam a ser até messiânicos, nessa linha de comportamento estão esfacelando nosso Estado de direito. Hoje nós temos um presidente que não tem o menor compromisso com o Estado de Direito, embora tenha sido eleito nele. E temos setores da máquina estatal que têm um claro projeto de poder, que querem concentrar poder e que acham que eles governando salvarão o país. Isso é um desastre absoluto, porque quem tem que ter poder de decisão é o povo. Temos que aperfeiçoar os mecanismos democráticos e não aniquilá-los.
Como fazer para restaurar o poder político que está em colapso, restaurar a confiança da população na classe política, resgatar essa autoridade que a urna deveria legitimar, mas não está legitimando?
Há muito tempo defendo uma reforma política no Brasil. Não acho que ela vá resolver o problema do Estado de Direito, tema da minha palestra. O problema do Brasil é agravado por um sistema político anacrônico. Ele favorece a corrupção, ele leva à ingovernabilidade, ele traz a deslegitimação acentuada do sistema legislativo. O problema é que a própria sociedade ainda não se conscientizou disso. A sociedade ainda acredita em “mitos”, em “messias”. Não percebem que o problema está mais embaixo.
A reforma política é um falso consenso, porque cada um tem a sua. Como encontrar os mínimos consensos para uma proposta de reforma?
Disputando e convencendo a maioria. Temos que discutir a reforma política com a população, com a sociedade, com os empresários, com os trabalhadores. Não dá para continuar como está.
O PT no auge da popularidade do ex-presidente Lula não perdeu a chance de fazer esse tipo de mudança?
Eu acho que perdeu. Assumo a autocrítica. Naquele momento o governo Lula investiu muito na reforma da previdência e outras reformas. A política ficou secundarizada porque havia muitas resistências dentro do Congresso. Hoje vendo a história eu acredito sinceramente que nós deveríamos ter investido mais na reforma política. Infelizmente não fizemos isso.
Mas a reforma política que o PT defendia previa votação em lista, financiamento exclusivamente público. Era reforma mais do que PT do que pactuada com a sociedade.
Naquele momento era uma reforma com consenso em torno do relatório do Ronaldo Caiado, que era então do PFL, hoje DEM. Havia em uma primeiro momento um acordo entre esse partido, o PT e o PSDB. Quem reagiu foram os pequenos partidos, que disseram que romperiam com o governo. Não vou dizer que havia sido discutida amplamente com a sociedade, mas ela representava segmentos políticos ideologicamente bastante diversos. Perdeu-se a oportunidade de aprovar aquela reforma, como perdeu-se a oportunidade de discutir com a sociedade de forma ampla uma reforma. Isso fica como minha autocrítica como parlamentar no período.
A questão da autocrítica é muito associada ao PT. É o partido de que mais se cobra essa postura. O que seria a autocrítica do PT, além dessa que o senhor citou sobre a reforma política?
Acho que todos nós temos que permanentemente fazer uma crítica sobre o nosso comportamento para manter os acertos e mudar os erros. O PT, como todos os partidos, deveria fazer autocrítica de tudo. Agora, o que se faz é uma expiação do PT, não uma autocrítica. Não é assim. Engraçado que embora a corrupção atinja todas as forças políticas, todas no país, se cobra uma autocrítica do PT. Como se não tivesse o presidente do PSDB acusado, como se todos os partidos não tivessem. Acho que o PT tem sim que se discutir, internamente corrigir. Acho isso e defendo há muitos anos. Mas acho que esta forma como se cobra o PT é uma forma de estabelecer uma luta política discriminatória. O problema está em toda a situação política brasileira, fruto de um sistema político anacrônico, que gera corrupção na origem. Focar-se no PT é algo que faz parte de uma estratégia política.
Como o senhor vê o futuro do PT e a relação com o ex-presidente Lula preso em Curitiba. De certa forma, o PT não está encarcerado junto com ele, com dificuldade de apontar para o futuro?
Eu diria que não é o PT que está encarcerado com o ex-presidente Lula. É a história brasileira que está encarcerada com ele. Lula é o maior líder popular que tivemos na história brasileira. Ao ser encarcerado, especialmente em um processo em que não existem, a meu ver, provas suficientes para isso, em que se acelerou a prisão e o processo em sua tramitação para que ele não fosse candidato a presidente – quando ganharia as eleições. Isso é algo que encarcera a história democrática brasileira. Portanto, a luta do PT em relação ao Lula não só é legítima, mas não é só pelo Lula, é pela história democrática.
Como a esquerda pode reconquistar um eleitor que já votou em Lula, já votou em Dilma e que aderiu a Bolsonaro na última eleição?
Através da afirmação de políticas consistentes para o país. E por algo que já está sendo inevitável: a percepção da falência de um governo.
Não falta à esquerda um olhar mais generoso com essas pessoas que mudaram de caminho? Vejo muita cobrança, especialmente nas redes, até tripudiando.
Acho que sim. Às vezes somos intolerantes com os intolerantes. A grande questão é como dosar essa intolerância. Eu não posso tolerar o fascismo, o arbítrio. Mas muitas vezes eu posso ser intolerante conscientizando e não brigando. Acho que a pedagogia é um elemento importante na luta política. Quando falo em pedagogia, falo em buscar a reflexão ao invés da agressão. Certas coisas que são defendidas pelo atual governo me parece que a melhor maneira não é brigar, execrar quem defende. É levantar a dúvida, fazer pensar.
Como é a vida de José Eduardo Cardozo depois do impeachment de Dilma Rousseff e a saída do PT do poder?
Bem mais tranquila (risos). Eu voltei a assumir muitas aulas (é professor na PUC-SP). Estou advogando em Brasília e São Paulo. É uma vida muito mais tranquila.
O senhor mantém atuação político-partidária?
À distância. Estou muito ocupado com a vida acadêmica neste momento e a vida profissional. Tentando recuperar os terrenos que ficaram muito tempo paralisados por causa da minha vida política. Eu acompanho a política, sou um ser político, mas não venho tendo uma atuação militante.
Texto publicado originalmente no NSC Total.
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