Fenômeno instigante constitui a reação do homem moderno em face do crime, especificamente em face da divulgação do crime pela mídia.
De plano, surge uma primeira observação: o chamado homem midiático sofreu uma significativa redução em seu senso crítico. Aquilo que é mostrado pela imagem parece não passar pela razão e tem o efeito de provocar emoções imediatas. O filtro da racionalidade é substituído pelas manifestações de amor, de ódio ou de indiferença.
A mídia televisada, ao divulgar um crime, ciente de que ele provoca fortes emoções, colabora eficazmente para o fenômeno da perda do senso crítico, pois o explora sempre de forma teatral, com enfoque quase exclusivo na acusação, na culpa e na punição, olvidando a possibilidade da inocência e da absolvição.
Não há por parte da mídia nenhuma preocupação em dar ao fenômeno criminal um tratamento pedagógico, didático, no sentido de extrair dele lições, por meio da análise de suas causas, consequências e circunstâncias subjetivas e objetivas, visando até a evitar novos delitos.
Ao contrário de cumprir a sua responsabilidade de informar com isenção e de contribuir para a construção de condutas contrárias às práticas criminosas, a mídia televisada explora à exaustão, com cenas de sangue, crueldade e extremada violência, de um lado, e de execração, humilhação e violação da dignidade do acusado ou mero suspeito, de outro, o fenômeno criminal, abstraindo todo o seu conteúdo humano e as suas marcantes consequências sociais.
O crime foi transformado em espetáculo, com óbvios atrativos financeiros nos campos da publicidade e da propaganda, passando a constituir, portanto, importante fator de aumento da audiência, do índice do Ibope e do faturamento.
Dentro deste contexto, a chamada operação “lava jato” foi erigida a símbolo maior do combate ao crime do colarinho branco e vem sendo difundida como a panaceia para os nossos males, como o instrumento de transformação de um país onde imperam a corrupção e a impunidade, numa nação ética e rigorosa com os seus malfeitores. E a sociedade crê piamente no que vem sendo divulgado.
Ai de quem ouse criticar aspectos pontuais da operação. A intolerância, que reflete a total ausência de espírito democrático, atinge até mesmo aqueles que tecem críticas eminentemente técnicas.
Quem se atrever a proferir uma crítica é tachado de antipatriota e adepto da corrupção. A sociedade verbera aqueles que se opõem a pontos específicos da operação. Advogados são confundidos com os seus clientes, como se tivessem colaborado para a ação criminosa; jornalistas que emitem opiniões contrárias aos excessos cometidos são atacados por seus próprios colegas; e até magistrados de segundo grau que reformam decisões proferidas pelos de primeiro ou que não acatam pedidos formulados pelo Ministério Público acabam sendo alvo de execração social.
É imprescindível que se realce não ser a operação “lava jato” um clube de futebol, um partido político ou uma competição qualquer, em relação aos quais se é a favor ou se é contra e se torce por uma vitória ou por uma derrota.
O desejo de combater a corrupção não é privilégio de alguns iluminados que se arvoram em paladinos da justiça e da honradez. Os que assim se julgam estão absolutamente equivocados, demonstram uma autoestima exacerbada e têm uma visão pouco democrática, na verdade autoritária, da sociedade e das instituições.
Aqueles que criticam a operação — e não me refiro aos corruptos que a temem e desejam o seu fim — se limitam a apontar aspectos específicos, mostrando os excessos cometidos em face da lei, da doutrina e da Constituição, sem, no entanto, posicionar-se contra ela. É indiscutível que uma ação coordenada das autoridades deveria ter sido empreendida, como efetivamente o foi, a partir dos primeiros indícios da ocorrência de lesão ao patrimônio público.
No entanto, é preciso que a sociedade entenda — e para isso necessita readquirir a sua capacidade crítica — que a “lava jato” não é e não será a responsável exclusiva pelo saneamento ético e moral do País. Ela não é uma vara de condão que, por mágica, poderá extirpar todos os nossos males.
Existem outros interesses e necessidades de grande relevância que obviamente não podem ser olvidados, nem pela sociedade, nem pelas autoridades, mesmo que esse esquecimento se dê em nome de uma operação que enganosamente se propaga ser de salvação nacional. Educação, saúde, moradia, combate a outros crimes tão danosos quanto a corrupção e as inúmeras reformas que necessariamente deverão ser empreendidas constituem algumas outras metas a serem perseguidas para a construção da nação dos nossos sonhos, e não podem ser substituídas por uma ação policial e judiciária, por mais relevante que seja.
Punições, após regular processo penal, com garantia de ampla defesa são necessárias e cumprem um dever estatal emanado da Constituição federal. No entanto, é preciso que se tenha consciência de que tais punições não têm o condão de intimidar, prevenir ou evitar novos crimes. No Brasil e no mundo está sobejamente demonstrado que a punição, por mais rigorosa que seja, não impede que novos crimes sejam cometidos, por terceiros ou mesmo por aquele que já foi apenado. O Brasil é o terceiro país do mundo em número de presos (650 mil, aproximadamente) e, no entanto, a criminalidade continua a crescer.
O combate efetivo à corrupção se dará quando houver a assunção de uma consciência voltada para o bem comum, distante do egoísmo e da cobiça, com mudanças éticas no comportamento de cada indivíduo e do corpo social como um todo capazes de operar alterações no triste panorama da vida nacional. É preciso punir o culpado, mas isso só não basta; é imperioso que se evite o crime.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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