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Lava Jato tem passado como um trator sobre a Constituição, diz Marcelo Nobre

Lava Jato tem passado como um trator sobre a Constituição, diz Marcelo Nobre

Marcelo Nobre, 51, que integrou o CNJ, diz estar preocupado com o futuro da democracia

O advogado Marcelo Nobre, 51, que integrou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirma estar muito preocupado com o futuro da democracia no Brasil.

“A Lava Jato tem passado como um trator sobre a Constituição e sobre o direito de defesa”, diz. “Se as instituições ficarem submissas a essas pessoas que se acham acima da lei, a gente acaba com a democracia no país.”

Nobre é filho do político, advogado e jornalista Freitas Nobre (1921-1990), conhecido por sua luta pela redemocratização do país. Costumava jogar bolinha de gude nos tapetes da Câmara dos Deputados enquanto seu pai discutia o país na tribuna.

O advogado afirma que juízes e procuradores têm atuado politicamente, que o “partido da Lava Jato” está em aliança circunstancial com o governo Bolsonaro e que a sociedade brasileira parou de pensar.

“É natural que uma pessoa, ao ser acusada, seja automaticamente condenada?”, pergunta o advogado, que não tem clientes na Lava Jato.

Nobre, que atuou na defesa de Eduardo Cunha no processo de cassação na Câmara, diz que é preciso haver um contraponto ao que o procurador Deltan [Dallagnol] e o ministro Sergio Moro falam. “Eles acham que existem heróis.”

Os princípios fundamentais da do estado democrático de direito têm sido atropelados? Há muitas formas de se acabar com a democracia. Antigamente, a democracia era atacada pela força. Hoje o ataque se dá pela pela desconstrução das instituições. Juízes de primeira instância estão esculachando o Judiciário. E isso afronta a democracia.

Como assim? Todo mundo quer ver corrupto preso. Mas numa democracia você precisa de um processo justo e de uma defesa plena. Como ter defesa plena, se as sentenças já estão prontas, se a decisão já está tomada previamente?

Isso tem acontecido? Sim. Outra questão inadmissível são essas prisões. O ato de se prender alguém virou um ato de vontade, não de direito. Prende-se para que hoje no país? Alguns já assumiram que prendem porque o passarinho preso canta [numa referência às delações].

E a prisão do Temer? Voltamos para a arena romana. A prisão do Temer, como a de tantos outros, se enquadra nessa questão de decisão como um ato de vontade, e não como um ato de direito. Quais foram os motivos para a prisão do Temer?

Evitar a destruição de provas e garantir a ordem… São discursos que pegaram no direito para tentar fazer com que a decisão tenha validade. No fundo, foi um ato de vontade, e não de direito. Se estivéssemos numa normalidade, o que aconteceria? Temer seria intimado a depor. Ele tem residência fixa. Não sei nem se apresentou sua defesa. O que aconteceu é inadmissível na democracia. É preciso usar fuzil para prender uma pessoa que não é violenta? Que está apenas na fase inicial do processo. Um ex-presidente?

A Lava Jato atua politicamente? Os grandes homens públicos do passado não fizeram sucessores, e a política passou a ser feita no Brasil, de um modo geral, por pessoas não vocacionadas, sem habilidade e sem conteúdo.

A política passou a ser desacreditada. Os jovens que gostariam de ir para a política ficaram desorientados. Então, estudaram, prestaram concursos públicos e entraram na Polícia Federal, no Ministério Público e na magistratura. E foram fazer política lá! Mas fazer política nesses cargos é complicado.

O senhor reconhece importância histórica na Lava Jato? Completamente. Sou a favor da Lava Jato, desde que tudo seja feita dentro da Constituição. A Lava Jato poderia ter feito muitas das coisas que fez dentro da Constituição. Só que a verdade é que ela tem passado como um trator sobre a Constituição, sobre o direito de defesa.

Em quais situações? Várias, muitas nem vieram a público. Falemos de um ato específico do Moro, o da gravação da presidente [Dilma]. Você pode não gostar dela, pode odiá-la. Mas o que não se pode é admitir que uma autoridade judicial descumpra a lei. Seja lá o objetivo que for.

Ele gravou a presidente, divulgou os áudios e, depois, chamado pelo relator do processo no STF, pediu desculpas. E tudo ficou por isso mesmo. A sociedade tem comprado essas situações sem perceber que, numa democracia, todo mundo tem de estar abaixo da lei. Todo mundo! Não apenas os políticos. Juízes e promotores também.

O sr. falou em arena romana. Os acusados estão sendo jogados na arena para os leões. E a sociedade, no coliseu, dá like e dislike, decide se o acusado vive ou morre. O maior exemplo é o André Esteves, do BTG. Foi preso por um ato de vontade, não de direito. Quase faliu. O processo passou por todas as instâncias e todo mundo disse ok. Até que chegou para o STF, que percebeu a situação e teve a coragem de soltá-lo. Foi achincalhado. E estava certo! Tanto que Esteves foi absolvido depois na primeira instância.

O Judiciário está refém do like e do dislake? Sim, a sociedade brasileira parou de pensar. É natural que uma pessoa, ao ser acusada, seja automaticamente condenada? A acusação nunca erra? As pessoas tomam um partido sem avaliar todos os lados. Conheço um magistrado que vinha decidindo questões da Lava Jato de forma a preservar a Constituição. Passou a sofrer críticas por conta do seu posicionamento e teve problemas pessoais. Acabou refluindo.

O Ministério Público tem… O [procurador] Deltan Dallagnol diz que o Supremo vai julgar um processo assim e assado. Diz que, se o STF julgar assim, acaba com a Lava Jato. E a sociedade e parte da imprensa compram sua ideia… Se o STF decide diferente do que ele pensa, passa a ser malhado e achincalhado.

Um outro procurador [Diogo Castor] disse recentemente que o STF preparava um golpe à Lava Jato. Querer jogar a sociedade contra o STF é uma irresponsabilidade. O que ele está testando? O que ele está querendo? Se as instituições ficarem submissas, a democracia acaba. O Conselho Nacional do Ministério Pública deveria se debruçar sobre a atitude de alguns membros do Ministério Público. A lei é para todos.

Quando o sr diz que procuradores e juízes atuam politicamente, o partido deles é o da Lava Jato ou o do governo? O partido da Lava Jato e o partido do governo estão numa simbiose. Tem membro do partido da Lava Jato no governo. E o partido da Lava Jato foi buscar um fundo partidário.

É uma aliança circunstancial? Sim, circunstancial. Tem coisas que precisam ser ditas. Neste governo, apoiado pelo partido da Lava Jato, a negociação política foi substituída pela intimidação.

E aonde pode parar isso? No final da democracia. Se as instituições ficarem submissas a essas pessoas que se acham acima da lei, a gente acaba com a democracia.

Não é um exagero falar em risco para a democracia? Criminalizaram a política e estão tentando criminalizar o Judiciário e a advocacia. Em termos institucionais, o que estão tentando? O que estão buscando? Temos de tomar muito cuidado. Tem de haver uma frente ampla para defender a democracia. Tem de haver um contraponto ao que o Deltan e o Moro falam. A sociedade precisa parar de comprar essas ideias e olhar para o todo. Estou muito receoso.

O Moro quer chegar aonde? Acho que está numa dúvida enorme entre ser ministro do STF ou presidente da República. Vamos falar um pouco sobre ele. Há um conflito enorme entre o Moro juiz e o Moro ministro. Passou grande parte da vida como um filho único, mandando. O PlayStation era só dele. Como ministro, ganhou um irmão. Agora tem de dialogar e convencer as pessoas de que o seu projeto é o melhor para o país. Não pode ordenar. Não é assim que se faz politica com “P” maiúsculo. Negociar não significa fazer coisa errada.

A fama subiu à cabeça dos membros da Lava Jato? Não tenho dúvida nenhuma. Subiu à cabeça. Gostam da notoriedade. Mas não existem heróis. Somos seres falíveis. Heróis existem nos quadrinhos e nos filmes. Mas eles acham que existem heróis.

Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.

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