Cuidado a pessoas em uso intensivo de drogas precisa ser pautado na ampliação da vida
“Meu coração é cheio de pássaros, por isso nunca me dei bem com gaiolas.”
Esse sentimento de Sérgio Vaz é o mesmo expresso por muitos que já ficaram confinados em comunidades terapêuticas e hospícios. No Brasil, o movimento antimanicomial vem construindo uma política de cuidados para a área de saúde mental e para pessoas com uso intensivo de álcool e outras drogas, baseado no cuidado em liberdade, no respeito à autonomia e aos direitos humanos. Uma política que vinha sendo implantada durante diferentes governos e que teve, nas gestões do PT, um grande investimento. Nela foi construída uma rede de atenção psicossocial, com moradias assistidas e centros de cuidados abertos, como os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), num movimento de substituição aos leitos em serviços fechados.
Durante o governo Jair Bolsonaro (PL), essa lógica de cuidados se inverteu, e o financiamento priorizou fortemente serviços fechados, como os hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas (CTs), que são entidades privadas que trabalham com a lógica da privação de liberdade para tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas. Uma ruptura com os princípios de uma política pautada pelo cuidado em liberdade. Um levantamento do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) apontou que as CTs receberam, entre 2017 e 2020, o total de R$ 560 milhões do poder público. Na esfera federal, o aumento, em valores corrigidos, foi de cerca de 109%. Por outro lado, houve um desinvestimento na rede aberta de cuidados psicossociais. Em 2021, os Caps-AD (álcool e drogas) tiveram apenas um terço do orçamento das comunidades terapêuticas. Uma inversão da política pautada pela mudança nos valores que a conformam.
Uma Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas foi realizada em outubro de 2017, nas cinco regiões do Brasil, pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/Ministério Público Federal. Na grande maioria das CTs inspecionadas, a privação de liberdade era o eixo condutor, em 60% destas o castigo e punição eram usados como tratamento e, em 86%, foi registrada a prática de restrição à liberdade religiosa.
O tema da “guerra às drogas” é atravessado por grandes interesses econômicos e políticos e tem sido um cenário de justificativa para o exercício de muitas formas de violências e controle, particularmente com a população preta, pobre, vivendo em comunidades e em situação de rua. O município de São Paulo tem sido palco de sucessivas políticas que visam higienizar o centro com o uso da violência e das internações compulsórias em CTs das pessoas em situação de rua. Projetos que violam cotidianamente a garantia de direitos. Violência não se resolve com violência!
Internacionalmente e em muitos municípios brasileiros, temos experiências e pesquisas que afirmam que o cuidado a pessoas em uso intensivo de álcool e outras drogas precisa ser pautado na possibilidade de apoio à ampliação da vida, articulando políticas de habitação, trabalho, assistência social, cultura, segurança e saúde. Um morador do “fluxo” em São Paulo disse: “Já fui internado compulsoriamente em CT mais de 20 vezes. Não adianta nada, volto pra mesma rua, pra mesma vida!” O investimento em CT não é um investimento na vida das pessoas. Precisamos fortalecer políticas de cuidado pautadas no cuidado em liberdade e na defesa de direitos. No Brasil, a detenção em comunidades terapêuticas também tem cor e classe. Pretos, pobres e pessoas em situação de rua são os que mais são internados, mesmo contra sua vontade.
Sabemos que os governos são atravessados por diferentes forças e que governar exige um movimento de composição. Fazer isso sem perder a coerência com os princípios que o orientam é um desafio. A criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome dialoga com os interesses destas, rompendo com a perspectiva de defesa da vida aqui defendida.
Estamos no início de um novo governo, que fez renascer no Brasil a esperança em um mundo que supere a enorme desigualdade social e que seja pautado pelo compromisso com a defesa dos direitos. Temos certeza de que este esperançar também será assegurado às pessoas que demandam cuidados nessa área, com políticas intersetoriais que avancem na direção do sonho, alimentado por tantos, de acesso ao direito ao cuidado em liberdade.
Como nos lembra Pessoa: “O homem é do tamanho de seu sonho”. No governo Lula, o Brasil também o será.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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