Há uma música de Lenine que volta e meia me vem à mente nestes últimos tempos:
“O medo é uma linha que separa o mundo.
O medo é uma casa aonde ninguém vai.
O medo é como um laço, que se aperta em nós.
O medo é uma força que não me deixa andar.”
Parece que ouço ele cantar ao mesmo tempo em que leio as notícias de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, propôs ação penal e, concomitantemente, representou contra o professor Conrado Hübner Mendes na Comissão de Ética da universidade em que ele leciona, a Faculdade de Direito da Universidade São Paulo.
A representação, em síntese, faz referência às manifestações de Conrado expostas no artigo “Aras é a antessala de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional”, publicado no jornal Folha de S.Paulo, e outras publicações de suas redes sociais. Nessas oportunidades, Augusto Aras foi severamente criticado por sua atuação, face a resposta do governo à pandemia da Covid-19. Entretanto, não se consegue antever na crítica contra essa pessoa pública algo que extrapole qualquer fronteira legal. A contundência e a indignação são próprias ao confrontar o quadro que se apresenta, em que responsáveis pela barbárie não são responsabilizados. Portanto, no estreito campo da liberdade de expressão acadêmica e de opinião.
Este capítulo nada mais é do que o espelho do clima autoritário que grassa no Brasil, que coloca às claras um dos instrumentos usados para silenciar, qual seja, a criminalização da liberdade de expressão, que se dá das mais variadas formas, e muitas delas com uso do aparato próprio do sistema de justiça.
E, esclareço, a criminalização aqui compreendida em seu sentido amplo, equivalendo a mecanismos controladores, que podem ser exercidos de várias formas, não exclusivamente com inquéritos e processos criminais, mas também com procedimentos administrativos e de outras esferas do Direito, todos com um sentido real e ao mesmo tempo simbólico e com o mesmo objetivo: incutir o medo e paralisar os que pensam diferente, ao arrepio da Constituição Federal.
Vale relembrar que, entre os fundamentos do Estado democrático de Direito, encontramos o pluralismo político (artigo 1º, inciso V, CF), que pressupõe uma diversidade de visões de mundo, uma pluralidade de ideias, que devem ser garantidas pelo próprio Estado e na qual seja possível a crítica e o diálogo entre os divergentes.
Para tanto, a nova ordem acolheu o chamado sistema das liberdades como sustentáculo da própria democracia, particularmente no artigo 5º da Constituição Federal, além das normativas regional e internacional.
Nossa Carta acrescentou que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação não sofrerão nenhuma restrição, salvo a observada na própria Constituição Federal. Para as hipóteses abusivas, há previsão de medidas para a garantia da democracia, como o direito de resposta, a indenização por dano moral e material ou à imagem (artigo 5º, incisos V e X), além das previstas nas normas infraconstitucionais, como a tipificação de crimes.
Consagrou que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5º, inciso IX), como a antever os focos das possíveis maiores violações e os seus principais alvos, que normalmente são os que expandem o conteúdo do pensamento, como a atividade de jornalistas, professores, acadêmicos, cientistas, artistas, comunicadores e lideranças de movimentos.
A realidade mostra que eles têm sido o público preferencialmente atingido pela criminalização da liberdade de expressão e que a crítica e o debate aberto e público, notadamente em relação aos poderes públicos, têm recebido como resposta tentativas de silenciar vozes, para retirar-lhes a virtude que acompanha e caracteriza os seres humanos: o de pensar o mundo, de comunicar-se com outros para construir um modelo de sociedade. Nessa medida, minam a própria democracia, enfraquecendo essa ferramenta-chave, que mantém uma relação essencial com o sistema democrático e indispensável para o exercício dos demais direitos fundamentais.
Por vezes o Poder Judiciário consegue sanar tais situações. Em outras, é o próprio órgão de violação. Mas o fato é que, de qualquer modo, se cria e se fomenta o medo, a intimidação, de modo que o resultado principal nem é o deslinde de eventual procedimento ou processo, mas o que irradia subjetivamente para a sociedade e para os cidadãos, que podem se autocensurar. Logo, os atos de intimidação ferem não apenas o indivíduo diretamente atingido, mas toda a sociedade.
Qualquer mecanismo que seja usado para impedir o exercício do direito à expressão retira dos cidadãos o controle sobre os assuntos públicos e, como consequência, ceifa a democracia.
É preciso, mais do que nunca, fortalecer o funcionamento do sistema democrático pluralista, mediante a proteção e o fomento da liberdade de expressão.
Como disse o professor Conrado Hübner Mendes, a quem rendo minha solidariedade: não há liberdade plena onde há medo.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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