Presidente não deve curvar-se aos desejos de uma associação privada
Nada há de errado na prática da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) de apresentar ao presidente da República nomes que gozam do apreço de seus colegas para liderar a Procuradoria-Geral da República (PGR). Indesejável é que o presidente, eleito para zelar pelo interesse público, seja obrigado a curvar-se à vontade de uma associação privada na escolha de quem terá a missão de fiscalizar os Poderes, defender a coletividade e promover os direitos à vida, à liberdade e à saúde, entre outros.
Essa camisa de força não foi o desejo dos constituintes de 1988. É por isso que a nossa Carta, em nenhuma linha, sugere que o presidente, ao fazer essa escolha, sobreponha vontades potencialmente corporativas ao critério do compromisso inabalável com o Estado de Direito.
Ter o nome na lista da ANPR é, sim, sinal de prestígio, mas não uma prova cabal de alinhamento com valores que precisam ser defendidos pela PGR. Há, inclusive, uma falsa simetria. Diferentemente das listas formuladas pelos tribunais e pela OAB para o quinto constitucional, a ANPR é ente privado e não representa todos os Ministérios Públicos.
O debate sobre a lista pode até ser salutar, mas sua imposição seria totalmente desconectada das regras constitucionais. Lula não estaria errado se consultasse os professores antes de nomear o ministro da Educação, ou os médicos para a Saúde, mas não lhe cabe renunciar à responsabilidade pelos escolhidos.
O presidente tem não só o poder, mas também o dever de indicar um defensor destemido da Constituição. Como afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, “o poder não é dado em homenagem ao sujeito: é um meio, um instrumento para que a autoridade satisfaça o interesse público”. Para impedir que o presidente se mova por desejos indevidos, a Constituição deu ao Senado o poder de frear uma indicação não republicana.
Não se nega que foi o próprio Lula quem, em 2003, inaugurou a “tradição” de observar a lista tríplice. De lá para cá, porém, o país foi sacudido por diversos ataques contra a Constituição, inclusive dentro de instituições criadas para protegê-la. Não é possível ignorar o silêncio de grande parte do MP quando seus atores, na Lava Jato, impuseram ao país a doutrina de provas ilícitas, conversas vazadas, delações negociadas e imputações por PowerPoint. Corromperam a lei a pretexto de combater a corrupção.
Lembrar as violações passadas não é revanchismo. É defesa intransigente do Estado de Direito. O presidente Lula tem o dever de escolher um procurador-geral comprometido com a defesa das garantias fundamentais tão maculadas nos últimos anos. Um PGR capaz, pois, de repensar os próprios rumos de uma instituição que recebeu enorme relevância e poder na ordem constitucional de 1988.
A experiência de quem governou duas vezes uma das maiores democracias do mundo e sentiu na pele os dentes do fascismo será sua conselheira. Por certo, essa vivência vai recomendar a ele que reverencie os nomes da lista tríplice, mas sem estar engessado quando a Constituição o quer livre para defender o interesse público.
A pessoa escolhida pelo presidente não deve precisar do cargo para ter uma biografia, mas chegar já com um currículo de serviços prestados à democracia. É positivo que o país saiba o que pensa cada postulante em relação a direitos humanos, racismo estrutural, igualdade de gênero, meio ambiente, povos originários.
Espera-se que não esteja contaminado, por exemplo, com uma postura de complacência com o abandono dos brasileiros no período mais severo da Covid. Que jamais titubeie diante do golpismo. Eis porque um debate transparente sobre a escolha para a PGR deve ter a Constituição como seu mais sábio guia, dentro ou fora da lista tríplice.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *