Por Carolina Brígido
Elas são muitas. No Brasil, há registro de 10.161 pessoas trans presas — entre elas, 1.027 travestis, 611 mulheres trans e 353 homens trans. Os dados são de 2020, compilados pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional). A expectativa é que esse número tenha aumentado nos últimos anos. Ainda assim, é uma população invisível aos olhos da sociedade. Invisível não: “Translúcida”, como diz o título do mais recente livro do ministro Sebastião Reis Junior, do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Juiz de uma turma de direito penal na corte, ele passou a visitar presídios e cadeias para ver de perto a realidade dos detentos. Na apresentação do livro, o ministro conta que teve a oportunidade de visitar o CDP Pinheiros 2 (Centro de Detenção Provisória), em São Paulo, há quatro, cinco anos. Passou uma manhã na companhia de presas transexuais e ouviu “suas angústias, suas esperanças, seus medos, seus desejos, suas tristezas, suas decepções”.
No ano passado, voltou ao local com a intenção de “amplificar as vozes daquelas mulheres”. Primeiro, pediu a elas autorização para fotografá-las. Diante do consentimento, voltou com a câmera na mão semanas depois.
Entre fotos e retratos, posados e espontâneos, Sebá, como o ministro é conhecido pelos colegas no tribunal, captou fragmentos do cotidiano das detentas. Foram feitas mais de mil fotos em preto e branco. Dessas, 38 foram selecionadas para compor o livro, que será lançado em 22 de junho, no Auditório Externo do STJ, em Brasília. A edição é da Amanuense Livros.
Na apresentação da obra, o ministro faz logo uma ressalva: “Não é um livro de fotos. Também não é um livro que se limita a discutir a questão prisional. É muito mais do que isso. As fotos serviram para provocar, para falarmos sobre algo que não pode ficar escondido atrás dos muros de uma prisão, nem embaçado por preconceitos e mentiras. Temos que falar abertamente sobre as pessoas transexuais. Não só das presas, mas de todas que estão ao nosso redor, com quem convivemos no dia a dia”.
Sebastião convidou várias pessoas para observar as imagens e, a partir delas, criar um texto. São 35 textos de autores — entre eles, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, a subprocuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, a escritora e desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Andréa Pachá, e os ministros do STJ Rogério Schietti Cruz e Maria Thereza de Assis Moura.
Duas das fotos inspiraram ilustrações do artista visual Joao Alexandrino, conhecido como JAS, e da cartunista Laerte.
A diversidade da formação daqueles que escreveram levou a uma diversidade de temas escritos. Poemas, cartas, depoimentos, textos técnicos. São textos e desenhos livres. Respeitou-se a vontade de cada participante” Sebastião Reis Junior
Os textos não têm relação direta com a história das pessoas fotografadas. A exceção é o de autoria da desembargadora do TRF (Tribunal Regional Federal) da 2ª Região Simone Schreiber, que foi até o presídio para entrevistar Léia, uma das detentas fotografadas por Sebastião. A desembargadora contou um pouco da rotina que viu:
“Sua cela tem 25 presas, que vivem em delicado equilíbrio. Todas devem respeitar as regras, que são discutidas entre elas coletivamente. Regras sobre o uso do espaço em dias de visita, sobre a limpeza dos banheiros, sobre o uso da televisão. Há também os casamentos.
Quando presas LGBT se casam com internos héteros, eles passam a morar nas celas LGBT. É preciso usar o banheiro com atenção, respeitando o marido da companheira de cela. Antes de entrar no banheiro, tem que gritar: banheiro! E aguardar a resposta: bicha, trans, mona, mulher, homem!”.
O centro visitado por Sebastião é um retrato da superlotação dos presídios brasileiros. Com capacidade para 700 presos, o local tinha 1.300 em agosto de 2022, data que as fotografias foram feitas. “Não há como uma pessoa se sentir feliz estando no cárcere”, resumiu Schreiber no livro. Apesar da melancolia registrada em boa parte das imagens, há momentos de descontração entre as mulheres. Para quem olha de fora, algo próximo de alegria.
O texto da jornalista Eva Marchiori, que optou por usar um nome fictício na publicação, também não é ficção, embora não tenha relação direta com a imagem capturada por Sebastião. Ela conta sua experiência pessoal de avó de uma menina trans. Em 2019, aos 6 anos, a menina adotou o nome feminino e passou a ser socialmente identificada no gênero com o qual sempre se identificou:
“Viver o que vivemos, sem saber em quem confiar, que tipo de médico buscar, é uma das situações de maior aflição. Lidamos com um assunto envolto em tabus e preconceitos. Encontrar uma equipe médica preparada, profissionais experientes, foi uma benção. Muito mais difícil do que receber o diagnóstico de disforia de gênero era não saber o que fazer e temer que ela atentasse contra a própria vida”.
No texto que assina, Barroso se colocou no lugar de uma pessoa trans para escrever:
“Eu sou um ponto de luz como todo mundo, fruto de uma fagulho de vida. Uma alma antes de um corpo. Igual a todos, trago a alegria e a tristeza, o prazer e a dor, a paz e a aflição. Sou um espírito como os demais. Só o meu corpo é diferente. Diferente do padrão, não do normal. O normal é uma invenção”.
Sebastião deixa no livro “um agradecimento especial a todas as meninas que foram fotografadas”. E uma promessa: “O próximo passo será um livro em que quem escreverá não serão advogados, médicos, políticos, militares, artistas, mas vocês mesmas”.
Publicado originalmente no UOL.
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