Por Luís Francisco Carvalho Filho
O indulto de Bolsonaro conforta milicianos e policiais assassinos
A boa notícia é a tradução (do russo) de Paulo Bezerra da obra de Dostoiévski “Escritos da Casa Morta” que a editora 34 lançará em 2020. Trecho do capítulo “O Espetáculo de Natal” foi publicado domingo (22) pela Ilustríssima. O livro é elaborado a partir da experiência prisional do escritor na Sibéria, depois de condenado por subversão.
A má notícia é o indulto de Natal assinado pelo presidente Bolsonaro beneficiando agentes de segurança.
O impacto do decreto é simbólico, porque não terá repercussão prática no sistema penitenciário: não alcança os criminosos hediondos (assassinos, torturadores) que o desejo mais íntimo de Jair Bolsonaro gostaria de favorecer. Provavelmente, ninguém será libertado por conta da “benevolência” presidencial.
O indulto de Natal é da tradição jurídica brasileira e, historicamente, serve para distensionar a vida nas prisões, estabelecendo fios de esperança em ambientes marcados pela mais severa brutalidade.
O ministro lambe-botas da Justiça e Segurança Pública saudou a iniciativa de Bolsonaro, apontando para a “linha clara” que distinguiria o indulto dos excessos culposos dos “indultos salva-ladrões ou salva-corruptos” dos governos anteriores. É curioso, assim como petistas no passado recente, o governo também se declara gestor de uma nova era.
Jair Bolsonaro e Sergio Moro (responsável técnico pelo estrambótico decreto) subvertem o caráter genérico do indulto (em benefício de vários setores da população penitenciária, desde que atestado o bom comportamento do preso, entre outros requisitos) e emite sinais de simpatia e conforto para a legião de policiais e milicianos habituados a agir à margem da lei.
É mais um estímulo do governo federal para tiroteios temerários, balas perdidas e salvamento dos que “dão azar” e matam inocentes.
Moro (a mais influente personalidade do Brasil), esperto e demagogo, é um homem iletrado. Aposto que nunca leu a tradução (do francês) de Rachel de Queiroz da preciosa narrativa de Dostoiévski, publicada em 1952, pela editora José Olympio, sob o título “Recordações da Casa dos Mortos”.
A brutalidade que caracteriza o regime prisional russo no século 19 é diversa da brutalidade do regime prisional brasileiro no século 21, que será diversa do caráter brutal da privação da liberdade na China no século 22.
Dostoiévski enxerga o caráter perene e deletério das prisões (casas mortas), independentemente de diferenciais de tempo e de lugar, da temperatura amazônica ou siberiana, da comida “parca e repulsiva” ou do caráter mais ou menos tirânico de quem a dirige, sempre ávido por esmagar alguém ou suprimir direitos.
Na visão do escritor, o encarceramento “suga a seiva vital do indivíduo, enerva-lhe a alma, enfraquece-o, assusta-o”. É desconcertante a sua percepção da coabitação obrigatória: “não poderia conceber nunca o tormento espantoso de não poder ficar só um minuto que fosse”.
No hospital da prisão, Dostoiévski coleciona anotações clandestinas de provérbios, frases e canções populares. Uma delas sintetiza a impossibilidade de transparência na gestão dos presídios e o sentimento do prisioneiro em qualquer canto do mundo: “ninguém vê, por trás dos muros, como vivemos aqui, mas Deus sempre está conosco embora nos guarde aqui”.
Destituído de sentimentos humanistas, Moro, mesmo que tenha lido o livro que ganhará nova e festejada versão em português, não é capaz de compreendê-lo.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *