Rascunho encontrado na casa de Anderson Torres segue longa tradição de camuflagem jurídica de golpes de Estado
Os golpes de Estado que se sucederam ao longo da história do país buscaram, com raras exceções, uma roupagem jurídica para legitimar a ruptura da ordem constitucional. Esse é o pano de fundo, argumenta o autor, da ideia de golpe “dentro das quatro linhas” propagada por Bolsonaro e seu entorno, em que medidas flagrantemente ilegais são impostas em nome da lei.
Em “As Viagens de Gulliver”, houve uma longínqua guerra que vitimou 15 mil soldados. O motivo: como se devem quebrar ovos. Isso porque havia uma norma constitucional que dizia que todos deveriam quebrar ovos pelo lado certo.
Essa caricatura e crítica ácida feita por Jonathan Swift à realidade daqueles tempos (a obra é de 1726) mostra as múltiplas e, às vezes, bizarras possibilidades de interpretação de normas —e, claro, interpretações para justificar, muitas vezes, o contrário do que diz a lei. O ponto: a lei sempre pode ser usada para contrariar o seu “espírito”.
Não há previsão em nenhuma Constituição de proibição de golpe de Estado. Claro, porque se der certo, os golpistas se instalam no poder. O máximo que a lei prevê é que a tentativa de golpe é crime. Questão de lógica: o vencedor do golpe não pode ser punido porque foi exitoso; o perdedor terá que ser punido porque sua tentativa de impedir deu errado.
O tema do golpe de Estado está na ordem do dia por duas razões: porque deu errado a tentativa que teve seu auge em 8 de janeiro e porque o presidente Lula trouxe à baila o episódio do impeachment de Dilma Rousseff. Ele reafirmou na Argentina recentemente que o mandato para o qual ela foi eleita foi usurpado por um golpe.
“Se depender de mim, vai continuar falando que foi golpe”, disse o respeitado jornalista Hélio Doyle, indicado para comandar a rede pública de jornalismo, a EBC (Empresa Brasil de Comunicação). Difícil contestar. O consenso a que chegaram as elites e a oposição pesou mais que os 54,5 milhões de votos que Dilma recebeu em 2014. Na prática, sim, mas a ruptura institucional é irrebatível.
O “Valgate”, revelado pelo senador Marcos do Val, mostra os muitos tons da criatividade golpista: gravar o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), com suporte do serviço de inteligência do Planalto, para forjar uma prisão criminosa, atesta isso.
Olhando a história do Brasil, vemos que os diversos golpes —é possível contar pelo menos dez— sempre tiveram, com exceção talvez da Proclamação da República, uma roupagem jurídica. Trata-se de uma juscamuflagem e, em nome do direito, se rompe o direito.
Querem ver como se quebra um ovo do lado certo? Veja-se o que disse Pontes de Miranda, poucos dias após o golpe de 1964: “As Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la”. Viram? Basta querer justificar. Sempre se acha um jeitinho brasileiro de disfarçar o golpe.
Funciona como “para o bem da nação e utilizando as leis tais e tais (algo que serve para qualquer coisa)”, se derruba o governante. Há interessantes estudos sobre essa “camuflagem jurídica”. Um, mais antigo, de Leonel Severo Rocha, outro mais recente, de Danilo Pereira Lima. Embora os autores se fixem nos períodos pós-golpes bem-sucedidos, em que mostram que mormente o regime de 64 buscou sempre uma pseudolegitimidade no campo jurídico, os estudos são úteis para mostrar como até mesmo os golpes de Estado buscaram se basear “na lei”.
Antes da destituição de João Goulart, a base governista e os conspiradores chegaram a disputar a narrativa sobre quem se colocava em defesa da legalidade. Em 1961, durante a crise da renúncia de Jânio Quadros, os golpistas foram derrotados pela Campanha da Legalidade, de Leonel Brizola. Pouco tempo depois, a situação se inverteu. Com apoio de amplos setores da comunidade jurídica, a destituição de Jango passou a ser tratada como um ato de defesa da legalidade contra o espantalho do comunismo.
Talvez por isso o golpe de 1964, uma autêntica quartelada, ainda seja chamado por alguns de movimento. Acrescente-se a tese da posse de Ranieri Mazzilli, mas aí já é muita omelete. Lembrando que o presidente ainda se encontrava em território brasileiro no momento da manipulação.
A questão da legalidade foi um tema central para os generais após a destituição de Jango. Já nos primeiros dias da ditadura, juristas foram consultados para apresentar uma fórmula jurídica. Claro. Era preciso apresentar um fundamento no direito para deixar claro que a ditadura seria imposta em nome da lei. Depois de analisarem muitas propostas, os generais optaram pelo ato institucional de Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva. Desse modo, os dois jurisconsultos asseguraram que a ditadura seria imposta “dentro da lei”. Sempre em nome da lei.
Em 1968, os generais aprofundaram as medidas autoritárias em total conformidade com posições políticas já adotadas por Castelo Branco e instituíram o AI-5, que dava ao presidente poderes imperiais. Todos os atos do Executivo foram baseados no AI-5. Isto é, tudo de “acordo com a lei”.
Tanto é que, em 1977, Geisel usou o AI-5 para “legitimar” o fechamento do Congresso, a suspensão das eleições para governador e a criação do senador biônico. Tudo de “acordo com a lei”, até porque os atos institucionais tinham assumido o status de principal instrumento normativo da ditadura.
Veja-se: no entendimento dos militares, o uso da legalidade garantia um status diferenciado para a ditadura brasileira no ambiente latino-americano. Esse é o busílis. Os generais brasileiros não queriam ser confundidos com os chamados caudilhos da região, pois desejavam assumir ares de superioridade.
Queriam que o Brasil fosse visto como uma democracia, com alternância de generais na Presidência, com o STF e o Congresso Nacional aparentemente funcionando dentro da normalidade e com um bipartidarismo fictício (Arena-MDB) para dizer que existia pluralismo político. Assim funcionava a dupla face da legalidade autoritária brasileira: de um lado, o verniz da normalidade institucional; de outro, a repressão nua e crua.
Dá para entender melhor agora o argumento de Bolsonaro das “quatro linhas”? Ele sempre disse que fazia tudo dentro das quatro linhas. Pois esse é o conceito de golpe no Brasil. Dar o golpe segundo a Constituição para “salvar a democracia”. Como se faz isso?
Temos um exemplo também interessante na Operação Lava Jato, ovo da serpente de tudo isso que está aí. Fazia-se “tudo de acordo com a lei”. Todos sabemos como era esse “de acordo com a lei”, inclusive com as delações superpremiadas que eram conduzidas pelo MP (Ministério Público), que vetava determinados advogados e escolhia outros para serem seus ex-adversos.
Isso é “fazer de acordo com a lei” no Brasil. As ilegalidades foram praticadas exatamente pelo “fiscal da lei” e pelo responsável por interpretá-la e aplicá-la. A legalidade nunca é ilegal, mas a ilegalidade pode ser legal. Se é que me permitem a nuance —e peço que permitam, porque é exatamente uma questão das nuances.
O impeachment de Dilma Rousseff pode ser um “case de sucesso” nas aulas de direito constitucional do golpe e de linguística. De um lado, o impeachment transformou o presidencialismo em parlamentarismo; de outro, todas as acusações restaram revertidas. Faltaram votos para impedir o impeachment, se diz, e isso seria um problema das “regras do jogo”. “Tudo dentro das quatro linhas”! O problema é que o impeachment exige mais que maioria de votos para derrubar um mandatário. Mas a camuflagem fica bem visível, se é que camuflagem faz algo ficar suficientemente visível.
No entanto, para além disso, o golpe mais anunciado da história brasileira foi o 8 de Janeiro. O presidente e seu entorno, auxiliados por jornalistas, radialistas, jornaleiros, parlamentares e ex-jogadores de bingo lançavam mão de uma ultracamuflagem jurídica: o famoso artigo 142 da Constituição, que, para a tese camufladora, é um dispositivo que cria um gatilho de autoimplosão da Carta e do sistema democrático. Claro, tudo “dentro da legalidade”, não é mesmo? Fosse verdadeira a tese, o Brasil seria declarado inimputável pelo constitucionalismo internacional.
O lema é “tudo dentro das quatro linhas”, como se pode ver pelo rascunho encontrado na casa do ex-ministro da Justiça e pela declaração do presidente do partido do presidente da República, Valdemar Costa Neto, que disse que rascunhos de decretos de estado de defesa e afins rolavam aos quatro cantos. Ele disse mais: como o presidente não encontrou modo de alterar o resultado das urnas dentro das quatro linhas, desistiu do golpe. Pronto: eis o conceito. Golpe dentro das quatro linhas. Criação bem brasileira.
O clássico exemplo em teoria é bastante didático (se me permitem o parêntese). Age ou não age estritamente —ou supostamente?— na “letra da lei” um juiz que, diante da proibição de cães na plataforma, permite um urso e proíbe o cão-guia? O ponto é que esse juiz hipotético não está agindo (apenas) injustamente. Está praticando uma ilegalidade ao subverter a lei em seu próprio nome. Isto é: nenhum legislador é tão idiota para proibir cães e liberar ursos. Mas o juiz-intérprete pode se achar mais esperto e dar um golpe na lei. Golpes de Estado se dão assim (também). Ou seja: o sujeito pode levar ursos e jacarés “dentro da lei”.
Wittgenstein traz o exemplo do jogo. Se eu peço para que alguém ensine um jogo para meus netinhos, preciso explicar antes que não se pode ensinar um jogo inapropriado para crianças, envolvendo dinheiro e apostas? É claro que não.
Assim como o golpe de Estado, que ninguém proibiu expressamente. Ideia genial: a partir de hoje, fica proibido o golpe exceto quando seguir um rito, formalisticamente. Aí pode, porque daí não é golpe. Será mesmo?
Outra lição: todo golpista chega ao poder dizendo que vai cumprir a lei. Cuidado: talvez ele cumpra mesmo. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição”, disse Castelo Branco. Pronto. A junta militar disse isso também em 1968. Ora, a lei…
Aí vem mais uma das lições desse imbróglio: todo golpista sempre terá um jurista para chamar de seu, para dizer qual é o lado certo de se quebrar o ovo, para lembrar a ironia de Gulliver.
Tudo dentro da lei, pois. Circulando! Eis o nosso jeitinho brasileiro de dar outro nome às coisas. Até nisso damos golpes nas palavras.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *