Por Sheila de Carvalho e Douglas Belchior
Na data que lembra a falsa abolição, denunciamos o contínuo genocídio negro
Em seu livro “Olhos D’Água”, a escritora Conceição Evaristo traz um diálogo entre dois meninos pretos que sempre nos leva às lágrimas. Ao ver seu amigo estendido no chão, o menino Dorvi diz: “A gente combinamos de não morrer”.
Esse combinado é parte do movimento negro: enquanto eles combinam de nos matar, nós combinamos de não morrer. Criamos diariamente estratégias com o propósito de nos manter vivos —dentro e fora das institucionalidades. Afinal, como canta Emicida, “tudo que nóis tem é nóis”.
Deveria ser inaceitável acordar todos os dias com a notícia de que pessoas negras foram assassinadas pela violência de um Estado que deveria nos proteger. Chacinas tão frequentes que raramente geram comoção. Crianças negras são assassinadas enquanto brincam dentro de casa ou no recreio da escola. Passaram três anos desde o brutal assassinato de Marielle Franco, uma parlamentar negra, sem que os responsáveis reais sejam responsabilizados. Tragédias como essa não são suficientes para parar o país. São vidas que parecem só importar para nós.
Cada um que é interrompido leva um pouco de nós. A cada morte denunciamos, gritamos, cobramos resposta, tentamos cuidar dos que ficam. Mas para cada morte tudo que se encontra fora do “nós” é silêncio, apatia, anuência com a política de morte que nos aniquila.
Neste marco histórico de 13 de maio de 2022, quando se lembra 134 anos do que chamamos de falsa abolição, organizados pela Coalizão Negra por Direitos e aliados aos movimentos de mães que lutam diariamente pela memória e vida de seus filhos vítimas de uma violência sem fim, apresentamos ao Supremo Tribunal Federal a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) pelas vidas negras. É a histórica denúncia do genocídio negro brasileiro, feita há tantas décadas por nossos movimentos, alcançando a mais alta corte do país.
A ação se funda em três pilares —reconhecimento, justiça e reparação. É fundamental que o Estado reconheça que há no Brasil uma política de morte direcionada aos corpos negros e que se alicerça no racismo estrutural e institucional. É necessário que o Estado crie políticas capazes de sustar a violência e medidas que visem reparar os danos causados por esta a tantas famílias negras.
O ato formal que fez do Brasil o último país a abolir a escravidão não rompeu com a lógica de servidão racializada da sociedade. Vivemos desde então um contínuo processo de reivindicação da cidadania à população negra para que também sejamos considerados sujeitos de direitos.
No filme “Medida Provisória”, Lázaro Ramos nos apresenta a distopia de um Brasil que quer tirar os negros daqui. Na prática, essa distopia não poderia ser mais real. Há —da extrema direita ao campo progressista— uma vontade estruturada no racismo para que nós não façamos parte deste país. Não há como negar que esse processo inconcluso da abolição também se deve a uma constante limitação da participação da população negra nas instituições democráticas, bem como ao fato de nossa agenda nunca ser incorporada como prioridade dentro dos planos de gestão do Estado.
Boas políticas foram promovidas em gestões progressistas, especialmente o avanço das ações afirmativas. Mas ainda não houve governo capaz de centralizar a proteção às vidas negras —a maioria da população brasileira— como plataforma política prioritária.
A ação da Coalizão Negra por Direitos é uma provocação à Suprema Corte: há neste Judiciário espaço para aplicar os direitos da Constituição Federal também ao povo negro brasileiro? Mais que isso, a ação é um convite ao futuro àqueles que almejam ocupar os poderes Legislativo e Executivo. Serão esses capazes de se comprometer e construir um projeto de país que rompa com a necropolítica aos negros e crie um projeto de vida para todas e todos?
A ADPF pelas vidas negras traz uma sinalização positiva de novos tempos ao ser proposta em uma grande aliança partidária de frente ampla —PT, PSOL, PC do B, PV, Rede, PSB, PDT. Torcemos para que esse seja um indicativo de que os partidos também estejam dispostos a romper com a lógica do Brasil colonial e racista.
Nossa luta não pode mais esperar; é a hora de construirmos um novo país. Já dizia Marielle Franco: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *