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O circuito afetivo do autoritarismo

O circuito afetivo do autoritarismo

Quem apoia um tirano também deseja ser um em sua vida social, familiar, cotidiana

Em termos civilizatórios, o Brasil atravessa um período nebuloso. Nas últimas semanas, fomos abalroados por notícias como a do assassinato do militante petista Marcelo Arruda, a do estupro de uma paciente durante o parto e a de uma juíza que negou aborto a uma criança de 11 anos, também vítima de violência sexual. No plano da política como disputa de poder, os episódios citados corroboram um processo. Integram uma espécie de circuito afetivo autoritário, em curso há algum tempo e que ganhou imensa força sob Bolsonaro. Dessa maneira, o estupro no hospital está fortemente relacionado à morte do militante do PT e à postura desumana de uma juíza. A natureza política que vincula esses fenômenos é a mesma.

Uma das principais características do sentido de Justiça moderno passa pelo entendimento da tirania como não observação dos direitos. O filósofo francês Étienne de La Boétie, que exerceu influência sobre Marx, em muito contribuiu para esse debate ao formular, no século XVI, uma pergunta fundamental: por que nos submetemos aos tiranos? Uma resposta que ele mesmo dá a essa questão ajuda a elucidar a configuração do circuito afetivo populista de extrema-direita. La Boétie diz que quem apoia um tirano quer também ser um em sua vida social, familiar, cotidiana.

Esse é o mecanismo de um bolsonarista ao alinhar-se à visão de mundo do “mito”. O apoiador do presidente revolta-se quando o meio o tolhe de privilégios que havia acumulado por distorções socioeconômicas e comportamentais que se verificam incabíveis na construção de uma sociedade de respeito aos direitos humanos. Impedido, pelas vias democráticas que se firmam em princípios e valores éticos, de exercer o machismo, a homofobia, o racismo, o ódio à pobreza, esse indivíduo se pendura na chancela de uma autoridade macroperversa para dar vazão às suas condutas nocivas no nível micro. Paulo Freire dizia que o opressor, quando perde sua condição como tal, sente-se oprimido.

Tudo isso acaba por redundar no esvaziamento, na degeneração da democracia e dos direitos, que cedem lugar ao que podemos chamar de princípios morais metafísicos desprovidos de sentido. Roland Freisler, jurista alemão à época da República de Weimar e que prestou auxílio à ascensão de Hitler e comandou depois o Tribunal Popular, a mais alta corte do Estado nazista para crimes políticos, condenou cerca de 4 mil indivíduos à morte com base no conceito da consciência moral do povo alemão.

O que vivemos hoje no Brasil é também herança do paradigma colonialista perpetuado por nossa elite e transferido para parte de nosso povo. Determinadas artimanhas, não só de ação, mas de retórica, por parte do governo atual são realizadas como estratégias de reforço a uma estrutura que se pretende como arcabouço de dominação tirânica. Uma tirania que, por natural, visa se perpetuar no poder. As críticas de Bolsonaro às urnas eletrônicas, repetidas pelo presidente em reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, ilustram bem esse cenário.

Bolsonaro, faz algum tempo, profere discursos de deslegitimação do STF e da Justiça Eleitoral com vistas a invalidar as eleições. Agora se vale abusiva e ilicitamente das prerrogativas de Chefe de Estado e, candidato à reeleição, procura justificar internacionalmente seus evidentes intentos golpistas. Claramente comete crime de responsabilidade e atenta contra o funcionamento dos demais poderes. As pesquisas têm indicado sua futura derrota eleitoral, o que certamente intensifica seu movimento golpista, desta vez ante autoridades estrangeiras. Ao não realizar o debate apenas no âmbito de nosso sistema de Justiça, Bolsonaro pretende entregar o destino do País aos estrangeiros. Esse movimento tem um nome: traição à Pátria.

Manobras desse tipo servem para azeitar as engrenagens da máquina fascista da violência, essa mesma que, na revelação cotidiana das faces do ódio estrutural, alimenta crimes como o do estupro no hospital e do assassinato do militante do PT. Responder, no entanto, a esses ataques no território da belicosidade é um equívoco. Nosso caminho é o da narrativa. Ela é o nosso escudo contra a desordem e o tumulto fomentados pela extrema-direita.

Isso não significa que possamos nos acovardar. Ao contrário. Temos de estabelecer mecanismos de resistência institucional, e a mídia tem papel importante a desempenhar nesse contexto. Por sua vez, a Frente Partidária de apoio a Lula precisa criar uma estrutura de proteção a seus eleitores contra as agressões, não apenas para denunciá-las, mas para identificar os agentes de violência e expô-los publicamente. A defesa do Estado Democrático de Direito exige atitudes enérgicas, o que não significa sucumbir à vala comum e não civilizatória do “olho por olho, dente por dente”. Mais inteligência, menos força bruta.

Artigo publicado originalmente na Carta Capital.

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