Por Antonio Sergio Borba Cangiano
Mestrando em Filosofia, UnB – Mestre em Engenharia de software, IPT – USP, bacharel em Ciências da Computação, bacharel em Ciências Econômicas na Unicamp
Sempre penso que a filosofia é a melhor disciplina para nos aproximar das verdades do mundo sensível. Iniciamos o século com muitas esperanças, e apenas vinte anos depois vivemos um mundo conturbado, confuso, líquido segundo Zygmunt Bauman. (1) Para ele a justiça que seria o caminho para a paz está ausente e portanto é preciso recorrer à sabedoria que ela não envelhece, ao contrário do conhecimento que se torna obsoleto com o tempo. Todo o planeta está aberto à circulação de mercadorias tudo está mercantilizado, não existe mais o “lado de fora” material. A vida abundante de uns poucos é consequência da miséria de muitos. Segundo Milan Kundera (citação de Bauman), essa “unidade da espécie humana” fruto da globalização significa que não existe nenhum espaço para a fuga. Chegamos a um grau onde a contemporaneidade nos tornou impotentes para decidir com segurança quais a seguir. Estamos presos na gaiola neoliberal é ela que conduz a nossa modernidade.
Não é à toa que negacionistas menosprezam os milhões de mortos na pandemia do Covid 19, são simplesmente ignorados. Prega-se o conformismo sem levar em conta a dor humana dos que ficam e a perda de talentos e capacidades. Estamos na época em que nada valemos para o capitalismo que nos compra, explora e acumula sem limites e não nos deixa sonhar, criar e renovar livremente.
Na pandemia estamos no fio da navalha entre o negacionismo e os direitos comuns. Os negacionistas pregam o individualismo insistem que o deus mercado proporciona o equilíbrio das riquezas e do bem estar segundo dispositivos (2) preconizados por Foucault e Deleuze em sua filosofia da imanência, e com eles geram a governamentalidade (3) moderna que é um desastre para a saúde, o meio ambiente e a economia. Para os negacionistas e os neoliberais, os recursos escassos do planeta são de sua propriedade. Segundo Bruno Latour, eles sabem disso e por tanto negam a ciência, aproveitam a pandemia para celebrar as mortes dos idosos e dos vulneráveis, sucateados da produção, de tal forma que possam continuar em suas bolhas de opulência.
Negam o aquecimento global, as queimadas e as mortes, para preservar seus privilégios quando afirmam que a terra é plana, com isso negam a ciência e obviamente negam o passado dos direitos sociais conquistados. Lançam mão da lawfair, se apropriando do direito privado contra a soberania popular. Negam o poder baseado no direito comum que deveria emanar do povo e colocam em risco a democracia. Negam o passado de conquistas dos trabalhadores, escapam dos problemas agravados pela pandemia como se na terra não vivessem.
Entretanto, a pandemia abre rachaduras profundas na gaiola (4) neoliberal. O outro, o diferente passa a existir. Constata-se que todos estão fisicamente ligados, o vírus não escolhe um ou outro, ele contamina a todos, os outros passam a ter importância mesmo que sejam miseráveis ou idosos. A solidariedade se manifesta, a iniquidade com a concentração monumental de renda salta aos olhos, permanece em evidência, a renda mínima global toma corpo político e no direito, os impactos ambientais mitigados na pandemia com a retração econômica, mostram que a terra clama por respirar. O descaso com o meio ambiente, as queimadas, passa a sensibilizar uma consciência global. A saída da crise exige repensar todos os hábitos. O planeta não aguenta, tem que ser compartilhado por todos. É necessário dar um passo atrás, questionar se esses negacionistas habitam a Terra, ou outro planeta qualquer (Latour, 2020), é necessário aterrar.
A democracia no século XXI precisa ser renovada com base na liberdade e nos direitos dos outros. A diversidade está no centro dos direitos comuns, a diferença pura precisa entrar em campo, com toda a sua subversão (Deleuze, 1988). É preciso mudar radicalmente a mentalidade identitária, para uma outra, a da diferença que respeita a diversidade, busca compreender o outro, e agir com amor e não com ódio. Que cada um possa colocar-se no lugar do outro e respeitá-lo, compreender que a mais admirável capacidade humana é a potência do pensamento, e para isso é preciso que a liberdade esteja no centro da política. O direito comum no nosso século terá que sobrepor o direito privado, não é uma questão de normatividade, e sim de sobrevivência das espécies, todas sem exceção.
NOTAS
1 Em Tempos Líquidos, Bauman nos fala que:”se você quer paz, cuide da justiça”, uma advertência da sabedoria antiga. Atualmente a justiça está ausente e bloqueia o caminho para a paz. Em um mundo circulado por fibras óticas, não existe mais um lugar sequer sem que o conheçamos, seja por imagens ou por fatos reportados. Não há terra Nulla. A miséria humana de todos os espaços mundiais aparecem nas telas em uma conexão global.
2 Michael Foucault e Gilles Deleuze – O que é um dispositivo? Vídeo: https://youtu.be/QKNMzgeK-cU
3 Michael Foucault – Conceito de Governamentalidade – governos que agem segundo uma mentalidade intencional que nos conduzem sem deixar saídas políticas, excluindo a soberania popular da política.
4 O termo gaiola é uma referência ao conjunto de dispositivos neoliberais que não deixam saídas, ou seja, alternativas viáveis, ao menos sustentáveis no plano da economia e dos impactos globais a que todos estão sujeitos.
Bibliografia
Shöpke, Regina Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, 2004 Edusp.
Bauman, Zigmund, Tempos Líquidos 2007 ed. Zahar
Castells, Manuel, Ruptura A crise da democracia liberal 2017 – ed Zahar
Streeck, Wolfgang- Tempo Comprado – A crise tardia do capitalismo democrático 2013 ed. Actual
Zourabichvili, François – Deleuze: uma filosofia do acontecimento 2016 Editora 34.
Dardot, Pierre e Laval ,Christian – Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI, 2017ed. Boitempo.
Negri, Antonio – Hardt, Michel Bem Estar Comum – 2016 Ed. Record
Latour, Bruno – Onde aterrar? – Como se orientar politicamente no antropoceno – 2020 ed. Bazar do Tempo.
Deleuze, Gilles – Diferença e Repetição – 1988 editora Graal.
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