“… malandro, pra valer trabalha, mora lá longe e chacoalha no trem da central…”
(Chico Buarque – Ópera do Malandro)
A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu, no julgamento do habeas corpus 399.109/SC, que o não pagamento de ICMS caracteriza retenção de imposto cobrado de terceiro e, assim, espécie de apropriação indébita tributária prevista no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90.
Causou espanto o julgamento não apenas pelo inusitado entendimento, mas também porque no caso os réus eram pessoas simples, que haviam deixado de recolher alguns poucos milhares de reais, e eram defendidos pela valorosa Defensoria Pública de Santa Catarina.
O caso seguiu para o Supremo Tribunal Federal, no RHC 163.334, de relatoria do ministro Roberto Barroso, onde deverá ser julgado pelo Plenário da Corte.
Diversos autores já escreveram com profundidade e proficiência sobre o tema, de modo que não se pretende aqui revisitar toda a problemática jurídica envolvida, mas apenas sob enfoque da jurisprudência do STF.
De fato, desejando a Suprema Corte manter coerência com a jurisprudência construída ao longo de anos acerca da sistemática do ICMS, deverá rever a decisão do STJ, e julgar que é atípica do ponto de vista penal a conduta de declarar e não pagar o imposto.
Vejamos:
Como se sabe existem duas formas de apropriação indébita tributária, a via desconto (apropriação indébita previdenciária e artigo 337-A), e aquela feita mediante cobrança adicional (substituição tributária no ICMS).
No desconto, o empresário retém do pagamento que precisa fazer a alguém a parte do imposto (apropriação indébita previdenciária prevista no artigo 168-A).
Já na cobrança, como ocorre na ICMS por substituição tributária, além do preço do produto, no qual estão embutidos os impostos próprios, há uma cobrança separada a título de imposto.
É por isto que o inciso II prevê as duas formas ao estabelecer que configura crime “deixar de recolher no prazo legal valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação tributária…”
A grande controvérsia quando se discute se há ou não apropriação indébita no não pagamento do ICMS próprio é se o valor recebido pelo contribuinte na operação é imposto ou preço.
Sim, porque enquanto no ICMS-ST não há dúvida de que o empresário cobra o imposto em nome do fisco, no ICMS próprio, como o próprio nome diz, o contribuinte é ele mesmo.
Nem a obrigação de destacar na nota é suficiente para desnaturar o caráter de preço do valor e a condição de contribuinte próprio do vendedor ou prestador de serviço. Afinal, pela inteligência do artigo 13, parágrafo 1º, I da Lei Complementar 87/96, o destaque na nota constitui mera indicação para fins de controle.
Na devolução da mercadoria fica ainda mais evidente que o ICMS destacado não pertence ao estado, pois, em alguns estados, não deve constar na nota de devolução a alíquota ST, mas apenas o ICMS próprio.
Como, por pura lógica, o empresário só pode devolver o que está na sua esfera de disponibilidade, e como não só pode, como deve devolver o ICMS próprio, é porque o valor destacado na nota lhe pertence e não ao fisco.
A tese do acórdão do STJ tampouco encontra guarida no precedente do STF, proferido no RE 574.706, do STF, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, no qual se assentou que o valor do ICMS não integra a base de cálculo da Cofins, porque não é receita, mas mero “trânsito contábil”.
A expressão “trânsito contábil” levou parte da doutrina a concluir, portanto, que ICMS declarado e não pago configura apropriação. Na judiciosa análise de Eisele em artigo publicado nesta ConJur, o precedente seria a pá de cal, o tiro de misericórdia na tese de que no ICMS próprio “compõe o preço da operação e configura propriedade do vendedor”.
Ocorre que nem mesmo este precedente permite precipitar tal conclusão por alguns motivos:
Primeiro, porque o acórdão do STF se baseia em outros fundamentos como já assentado há mais tempo no RE 240.785 do STF, de que “tributos não devem compor a base de cálculo para incidência de outros tributos”, e também na ideia de que não se permite a inclusão na base de cálculo de receita de terceiros, como é o caso do ICMS, de competência dos Estados.
Segundo, porque o STF argumentou que o valor recebido pelo vendedor configura “trânsito contábil”, que é conceito abstrato, próprio do direito tributário, o qual, a nosso ver, não permite deduzir, de pronto, comportamento humano configurador de apropriar de valores pertencentes, conduta humana muito mais complexa, que é o que importa ao direito penal.
Até porque o artigo 2º, inciso II, prevê conduta real e não mera realidade contábil. Veja por exemplo que se o empresário vende, mas não recebe o valor da venda, há registo contábil, mas não o trânsito efetivo de valores, logo, não haverá o crime sequer no tocante à substituição tributária. Prova de que o tipo penal não se compraz da mera ficção contábil.
De mais a mais, a exclusão do ICMS do Cofins só parece possível quando o imposto estadual é pago. Sem recolhimento do ICMS, parece óbvio que não vale a regra sufragada no precedente. Sendo assim, então, ao incluir na base de cálculo do PIS e da Cofins o ICMS não pago, a União estaria sendo cúmplice da apropriação dos valores pertencentes ao Estado federado?
Não parece fazer sentido.
Contradição, no entanto, haverá mesmo se a Corte decidir que o não pagamento de ICMS configura crime, pois aí sim estaria infirmando seu próprio entendimento, sedimentado no julgamento do RE 608.872/MG, quando deixou de reconhecer imunidade de ICMS para entidades filantrópicas na aquisição de bens ou serviços, justamente sob o fundamento de que o valor pago é preço e não tributo.
Como desfrutam de imunidade tributária, as aludidas entidades pretendiam que fosse excluído o valor do imposto de todas as mercadorias e serviços que adquirem ou contratam. Ou melhor, o pleito era no sentido de que pudessem adquiri-los com o desconto do imposto. Ao dizer que isto não era possível, pois o ICMS destacado na nota não configura pagamento do imposto, o STF colocou fim à discussão. O ICMS destacado é preço, e não tributo.
Assim, não há dúvida de que, à luz do entendimento cristalizado na jurisprudência do STF, o não recolhimento do tributo incidente sobre a operação representa mera dívida fiscal e não apropriação indébita tributária.
Sendo assim, por qualquer ângulo que se analise a questão, o entendimento sufragado pela 3ª Seção do STJ é não apenas tecnicamente equivocado — pese todo respeito e admiração rendidos aos ministros que a compõem — mas sobretudo injusto por criminalizar a mera dívida fiscal, mecanismo que, no afã de suprir a falência dos instrumentos legais de cobrança, acaba por incentivar a própria a sonegação.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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