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O Jantar do Prerrô e as vacinas contra a tanatomorbia que adoece o Brasil

O Jantar do Prerrô e as vacinas contra a tanatomorbia que adoece o Brasil

Ao ler o excelente “A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil”, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling[i], podemos ter uma boa dimensão de como a história tende a se repetir para quem não a pensa e elabora. Da leitura, concluímos o quanto os negacionismos e as abordagens predominantemente políticas ou econômicas a uma pandemia potencialmente mortal podem ter por consequência o agravamento da situação, com a explosão do número de contágio e mortes, como se deu no caso da gripe espanhola e, outra vez, podemos verificar em relação à covid-19 no Brasil.

Àquela época como hoje, embora fosse conhecido o avanço letal da doença na Europa já arrasada pela Primeira Guerra e na África, não foram poucas as atitudes de subestimação da doença (“apenas uma gripezinha”), de protelação à tomada das medidas sanitárias necessárias para arrefecer seu avanço, assim como as ofertas de soluções simplistas e mágicas para o mal desconhecido, sendo também marcantes os esforços no sentido de maquiar o estrago causado pelo agente patógeno que se disseminava sem controle.

Dentre essas tentativas de minimizar a dimensão do estrago causado pela gripe espanhola quando esta desembarcou no Brasil no segundo semestre de 1918, chama a atenção a adoção de um neologismo pomposo empregado nos registros de óbito emitidos em Pernambuco, atribuindo a uma tal tanatomorbia (doença que mata) a causa da morte de inúmeros cidadãos que sucumbiram apresentando sintomas característicos da espanhola. Ao fim e ao cabo, como bem destacam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling na referida obra, a tal tanatomorbia terminou matando mais que a própria gripe espanhola[ii].

Viajando um século na história, constatamos que, desafortunadamente, nem só de pandemias mal administradas vivem nossas repetições. Há patologias de outras ordens que nos acometem com potencial letal semelhante e que, sem dúvida alguma, terminam catalisadas pela pandemia. Referimo-nos a discursos e fenômenos políticos que remetem ao fascismo e às mentiras que sustentam sua caminhada de violência, destruição e morte, orientadas por uma verdade mítica imune à realidade e que agrega fiéis a partir de um fanatismo ativado pelo acionamento de fantasias e impulsos os mais primitivos[iii]. São ódios descompromissados com a razão que constituem o laço que agrupa uma horda incivilizada, a qual, se não contida, tem por mirada a destruição total.

No Brasil contemporâneo, se o sal de quinino já não empolga, temos a cloroquina – sua substituta imediata – e a ivermectina, enquanto os apagões de dados amparam subnotificações e inúmeras protelações, sem mencionar o já conhecido desprezo de determinadas autoridades públicas por ações profiláticas e até mesmo pela vacina, única medida reconhecidamente eficaz em conter a letalidade da pandemia.

Entretanto, embora possam ser muitas as semelhanças, há diferenças que merecem destaque enquanto bem separam as ações e omissões verificadas em 1918 se comparadas àquelas atualmente observáveis. Nesse sentido, se em 1918 podemos identificar um temor por prejuízos políticos como causa primeira das protelações e subestimações em relação à gripe espanhola, temos, contemporaneamente, uma postura pública oficial (em termos de governo federal, principalmente) abertamente contrária às recomendações das autoridades científicas mundialmente acolhidas, que concorreu e concorre ativamente para a disseminação da covid-19, com sabotagens concretas e simbólicas às medidas de profilaxia, além de atrasos conscientes nas campanhas de vacinação da população, bastante efetivas em nos conduzir a números catastróficos de mortes por covid-19 (aproximadamente 620 mil) e que, desde ontem (06/01/22), alcança novo patamar.

Como se já não fosse suficiente a sensação de absurdo – sempre ela, desde 2016 – provocada pela indiferença presidencial diante das tragédias causadas pela chuva na Bahia e no norte de Minas – catástrofes ocorridas enquanto Sua Excelência passeava pelo litoral catarinense, dava rolês de jet ski e brincava em parque de diversões –, em live promovida no dia de ontem, 06 de janeiro de 2022,  o presidente desobstruiu o curso de sua costumeira verborreia para dar vazão a uma sequência de ataques à ANVISA, bem como à vacinação infantil[iv], desconsiderando os índices de êxito das campanhas de imunização pelo mundo[v], além do alerta de especialistas no sentido de que a covid-19 foi a doença que mais matou crianças dentre aquelas preveníveis por vacina nos últimos anos[vi].

No atual contexto de franca expansão da covid-19, da influenza e do livre curso de tragédias mais ou menos naturais, a impostura presidencial demonstrada na live de ontem, dia 06/01/22, eleva suas atitudes e desídias a um novo patamar. Cada vez mais, o absurdo dá lugar ao asco diante da esculhambação mortífera imposta ao país, subjugado pela doença, pela morte, abandonado a uma carestia calculada para uma maior humilhação dos abandonados à miséria e que assiste à quotidiana destruição da liturgia de cargos públicos, da educação, ao aviltamento pela apropriação de forças e instituições de segurança, a um processo de medievalização no curso do qual se busca, com considerável êxito, fazer com que as superstições que dão suporte a mentiras e mitologias fascistóides solapem a ciência. Esse (des)governo conseguiu contaminar o Brasil com sua essência que, desobstruída, tornou-nos um país infecto, perigoso e indesejado mundo afora.

Retornando a 1918, temos que tanatomorbia converte-se, hoje, em palavra adequada para o bom diagnóstico daquilo que adoece e mata o Brasil – inclusive, mais que a própria covid-19, embora dela se valha na aceleração desse processo. E não nos referimos à pandemia ou ao vírus que a causa, cujas consequências, todos sabemos, poderiam ter sido bem menos drásticas por aqui, bastando, por exemplo, que fossem adquiridas vacinas seguras assim que ofertadas. Temos que, se em 1918 serviu para maquiar a realidade, o neologismo, hoje, talvez sirva para ajudar a esclarecê-la.

A tanatomorbia (doença que mata) que nos fustigou em 2020 e massacrou em 2021 – e que certamente seguirá nos adoecendo e matando por um bom tempo, consideradas as ações e omissões que asseguram bom fluxo à pandemia e a tantos outros desastres que ainda terão de ser dimensionados – pode ser atribuída a essa desventura de essência fascista que escolhemos pelo voto em 2018, empurrados por outros agentes patógenos que lhe abriram os caminhos e minaram nossa frágil imunidade democrática, afetando, em especial, a credibilidade de poderes e instituições, com graves danos a nosso sistema de justiça.

Contra essa tanatomorbia, devemos nos valer de todas as vacinas democráticas disponíveis. Olhemos para o passado, e em relação a ele sejamos críticos. Em nenhum lugar onde se anunciou o projeto fascista houve progresso civilizatório ou bem-estar partilhado e por um simples motivo: sua mirada é a destruição total. Frente às mentiras, à violência e à morte anunciadas pelo fascismo – que não se esconde sob suas novas roupagens –, a direita racional e as esquerdas de todos os matizes se uniram em nome da sobrevivência e da dignidade humana. Na luta contra a devastação irracional de inspiração fascista, imprescindível a suspensão das diferenças ideológicas e sua união em uma frente comum, até mesmo a fim de garantir que tais diferenças possam voltar a dialetizar logo adiante, como bem reclamam a democracia e a marcha civilizatória.

Esse é o caminho ensinado pela história e que o Jantar do Prerrô nos fez recordar e nos convida a elaborar, em defesa da vida, da justiça e da democracia, bens maiores cuja proteção reclama união e solidariedade, valores que se materializam na possível composição entre Lula e Alckmin, esquerda e direita reunidas em nome da reconstrução e da garantia de futuro a um Brasil que, mais uma vez, tentações autoritárias tentam abortar. Aliás, dizemos de um futuro mais ameaçado que nunca, considerados os últimos descalabros vociferados pelos nossos orgulhosos representantes de Herodes e sua legião.

Vida longa ao Prerrô e suas vacinas antifascistas, a serviço da dignidade, da vida e da democracia brasileira!


[i] São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[ii] A propósito, remetemos ao capítulo 3 da referida obra (“Tanatomorbia: a doença que mata no Recife”).

[iii] Nesse sentido, FINCHELSTEIN, Federico. Uma breve história das mentiras fascistas. São Paulo: Vestígio, 2020.

[iv] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/06/bolsonaro-ataca-a-vacinacao-e-questiona-a-honestidade-da-anvisa-comunidade-medica-repudia.ghtml

[v] Dentre outros: https://www.otempo.com.br/cidades/em-minas-72-de-internados-na-uti-por-covid-nao-completaram-vacinacao-1.2591573

[vi] Dentre outros: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/12/19/covid-matou-mais-criancas-no-pais-que-doencas-imunopreveniveis-em-15-anos.htm

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