Há muito tempo que bato nesta tecla, a de exigir coerência do Judiciário na aplicação do Direito. Lembro que fiz uma comparação (leia aqui) do que disse um importante professor de São Paulo sobre a presunção da inocência: a “literalidade faz da presunção de inocência uma garantia de impunidade”. Tese: cumprir a literalidade faz mal. Logo, porque a literalidade do CPP e CF irem contra o que pensa, o professor busca uma interpretação para além do texto.
Já um juiz federal diz o contrário. Para ele, se a Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado”, disso não se segue que a pena antecipada fere a Constituição. Tese do juiz: embora a literalidade seja “clara”, não se deve aplica-la.
Resumindo, então: o professor entende que o texto constitucional é claro no sentido de obstar a prisão em segunda instância (ao menos nisso ele acerta…); mas pede que não optemos pela literalidade da Constituição. Em linha oposta, o juiz entende que o texto constitucional é claro no sentido de não obstar a prisão em segunda instância; assim, pede que optemos pela literalidade da Constituição. Entenderam?
O ponto em comum entre o professor, o juiz e ministros do STF que, no caso da ordem das alegações (artigo 403 do CPP), invocaram a literalidade? Simples: Todos dão “à literalidade” o sentido que querem para chegar em um objetivo já previamente estabelecido. Isso se chama de textualismo ad hoc, literalidade de marketing.
Temos, assim, que as decisões dos tribunais não resistem a uma análise comparativa, por exemplo, à luz do artigo 926 do CPC, que exige que a jurisprudência seja integra e coerente. No caso da presunção da inocência (logo, logo, esse assunto voltará à pauta do STF —ADCs 44 e 54), uns são contra a garantia com base na literalidade; outros são contra… com base na mesma literalidade. Outros fazem como fez o ministro Fachin: coloca-se, no caso do artigo 403, claramente pela clareza do texto, postura que ignorou totalmente quando da leitura do artigo 283 do CPP (caso da presunção da inocência). Afinal, quando se aplica a literalidade?
O que quero indagar é: quando posso confiar que o Tribunal (qualquer tribunal) vai lançar mão da literalidade e quando será voluntarista? Quando será textualista e quando se portará como os integrantes da “Escola do Direito Livre” (para falar da reação ao positivismo do século XIX que ocorreu na entrada do século XX)?
Para quem não entendeu a comparação, vou mais longe: Não dá para ser Scalia num caso e Ruth Ginsburg em outro. É muito perigoso quando não temos sequer noção da orientação que vai ser adotada. Esse é o busílis. Eu, hermeneuta que sou, sei muito bem que não existe decisão mecânica. Não existe um processo automático (quem quer isso é a turma da inteligência artificial…!). Mas é necessário ao menos que tenhamos de forma clara a orientação epistemológica de cada um.
Aliás, seja como for, as duas posições estão equivocadas. Essa dicotomia “literalidade ou não literalidade” é falsa. De minha parte —com minha ortodoxia constitucional— nunca preguei “literalismo” (aliás, até o nome está errado —hoje se fala em significado convencional) ou “antiliteralismo”. Essa não é e nunca foi uma discussão hermenêutica.
Quem me lê, sabe disso. O que lamento é que, hoje em dia, cada vez mais a literalidade e a não literalidade se transformaram em argumentos ideológicos e estratégicos. Um dia o texto é tudo; no outro, o texto é nada. Como o personagem Ângelo, da peça de Shakespeare, Medida por Medida (um dia ele usa a letra da lei para condenar Cláudio à morte; no outro, ignora essa mesma lei… porque se apaixonou pela bela Isabela).
Veja-se, pois, que tanto o professor, o juiz federal (e ministros do STF) chegam à mesma conclusão, a favor da prisão antecipada, com dois argumentos antitéticos: de um lado, diz-se que a literalidade é ruim no caso da presunção, porque propicia impunidade; de outra banda, diz-se que a literalidade aponta para a prisão. Seria bom se os intérpretes combinassem melhor entre si “o que é isto —a literalidade”. De outro lado, quem antes era antiliteralista, agora, na discussão do artigo 403, torna-se literalista.
Vejamos: o ministro Barroso, por exemplo, na linha dos ministros Fachin e Fux, diz que não existe previsão legal de que réus não colaborares apresentem alegações após réus colaboradores. Se ele tem razão, o que ele tem a dizer em relação à existência de previsão de que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado? O que é isto —a literalidade?
De todo modo, digo que, na democracia, não é feio aplicar aquilo que a lei diz. Tenho dito isto ad nauseam. Não nos envergonhemos de aplicar a lei. Sinonímias epistêmicas são desejáveis na democracia, desde que —atenção— o texto legal infraconstitucional seja conforme a Constituição. Caso contrário, deve ser expungido ou relido a partir de uma interpretação conforme ou nulidade parcial sem redução de texto. Ou isso ou voltamos ao século XIX.
Por outro lado, cumprir a “letra da lei” em hipóteses quetais não quer dizer subsunção ou “escravidão à lei” ou coisas desse gênero, que povoa(ra)m o imaginário dos juristas do século XIX e início do século XX (até o advento das teorias voluntaristas —embora esse fantasma ainda arraste as correntes nas salas de aula das boas casas do ramo).
O literalista é aquele que, diante da regra “Proibido cães na plataforma”, proíbe o cão guia. E deixa entrar o urso. O voluntarista, por outro lado, é aquele que deixa entrar o poodle porque acha bonitinho. O literalista proíbe o cão e deixa entrar o urso.
E aqui é pior. O mesmo literalista que deixou o urso entrar vira voluntarista no outro caso quando lhe convém. E o voluntarista, a mesma coisa; quando lhe convés, aí o texto vale.
E o hermeneuta? O hermeneuta é o que sabe que, para dizer algo, deve antes deixar que o texto fale. E, quando o texto fala, o hermeneuta ouve dele os princípios que sustentam a regra. Qualquer animal perigoso deve ser proibido de passear na plataforma.
Como já falei aqui, não é rigor comparar leis com ovos, mas, sim, com caixa de ovos. Na democracia —e vou adaptar um exemplo de Bobbio— um mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores, explosivos ou com ovos. Se a caixa for de ovos, devemos enchê-la com… ovos, e não com flores ou explosivos. E nem com qualquer outra coisa. Podemos até discutir o tipo de ovos. Mas são… ovos.
Saber o que são ovos já é um bom início de conversa hermenêutica. Não se faz direito penal descumprindo garantias. Literalmente falando…!
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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