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O pacote anticrime e seus dois caminhos

Por Rafson Saraiva Ximenes e André Lima Cerqueira

O presidente da República sancionou, no último dia 24 de dezembro de 2019, em edição especial do Diário Oficial da União, a lei 13.964/19, que surgiu, segundo anuncia sua ementa, para “aperfeiçoar a legislação penal e processual penal”. Resultado de intensas articulações políticas em sentidos opostos, ela não produziu uma síntese, mas dois caminhos alternativos. Por um lado, traz dispositivos extremamente punitivistas. Por outro, traz previsões bastante avançadas que podem ser decisivas para que finalmente superemos a herança cultural da inquisição, como o juiz de garantias.

Fruto de uma política de Lei e Ordem (Law & Order), os projetos originais da lei 13.964/19 reúne propostas dos ministros Sergio Moro, da Justiça, e Alexandre de Moraes, do STF, sofrendo fortes críticas principalmente em relação aos efeitos e consequências próprias de uma normatização que amplia o tempo de prisão e restringe institutos de execução penal e garantias processuais.

O Brasil, segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciária (INFOPEN), através de estatística compilada no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, ocupa o 3º lugar no ranking mundial de pessoas privadas de liberdade, tendo aproximadamente 750.000 (setecentos e cinquenta mil) presos, em todas as unidades federativas, perdendo apenas para países de ampla tradição de restrição de liberdade, como são os Estados Unidos e China.

O número de pessoas privadas de liberdade mais do que dobrou nos últimos 15 (quinze) anos, quando 316,4 mil pessoas estavam presas. Em 1990, começo da série histórica, a quantidade era oito vezes menor do que a de hoje: 90 mil.

Apesar do quadro que deveria gerar cautela no uso do sistema penal, algumas inovações legislativas, inexoravelmente, irão aprofundar o superencarceramento: a) o aumento de cumprimento da pena privativa de liberdade, que passa de 30 (trinta) para 40 (quarenta anos), na nova redação do art. 75 do Código Penal; b) endurecimento dos requisitos para obtenção do livramento condicional, exigindo do preso bom comportamento durante toda a execução de sua pena; c) criação de novas regras de suspensão do prazo prescricional, isto é, do limite temporal ao direito de punir do Estado, nas hipóteses de recursos aos Tribunais Superiores ou enquanto não cumprido o acordo de não-persecução penal; d) novas regras para obtenção de progressão de regime prisional, com escala fracionária de cumprimento mínimo de pena para progredir, a depender da quantidade de pena, tipo de crime e perfil do apenado; e) vedação de saídas temporárias aos condenados que cumprem pena por praticar crime hediondo com resultado morte e; f) prisão provisória automática nas hipóteses de condenação, no Tribunal do Júri, a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.

Em relação a vedação de saídas temporárias pensamos que tal dispositivo é flagrantemente inconstitucional por interferir no princípio constitucional da individualização da pena, retirando do Juiz das Execuções Penais a perspectiva e possibilidade de melhor individualizar a pena do condenado por crime hediondo com resultado morte.

Ainda pior é a a hipótese de prisão cautelar automática obrigatória. Tal modalidade de prisão cautelar, trazida pela nova redação do art. 492, I, “e”, do CPP, com redação dada lei 13.964/19, passa a ser imposta nas condenações do Tribunal do Júri a pena igual ou superior a 15 anos de pena privativa de liberdade. Ou seja, é uma prisão cautelar decorrente de sentença condenatória recorrível.

Sobre o presente tema, cumpre afirmar que há diversos exemplos de dispositivos legais que impunham a prisão ex vi lege no ordenamento jurídico pátrio (vide art. 2º, II, da lei 8.072/90 – redação original; art. 7º da Lei 9.034/95, art. 21 da Lei 10.826/03 e; art. 44 da Lei 11.343/06), todos eles já declarados inconstitucionais pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por violar os princípios da presunção de inocência, devido processo legal em sua feição substancial, proporcionalidade e individualização da pena (vide ADIn 3.112/DF).

O quadro parece aterrorizante para quem conhece a realidade do sistema prisional e é bom esclarecer que nenhuma das mudanças citadas traz benefícios para as vítimas. Mas, o projeto inicial trazia outros erros tão ou mais graves, retirados pela reação dos parlamentares. Além disso,  a nova legislação trouxe avanços importantes. A audiência de custódia foi regulamentada.(nova redação do art. 310 do CPP). Foi implementada a figura do Juiz das Garantias (art. 3º-B, CPP), a quem compete o controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.

Nessa parte, a nova legislação importou em verdadeira transformação do modelo atual do CPP (ainda inquisitivo), aproximando-se do modelo acusatório definido pela Constituição de 1988, ao definir que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (art. 3º-A, CPP).

A partir da nova redação do art. 282 do CPP, não é mais possível que o juiz decrete medidas cautelares de ofício, nem mesmo no curso da instrução criminal. É vedada a produção de prova de ofício, em substituição da atuação do órgão incumbido de promover a acusação, no caso, Ministério Público ou querelante.

Adite-se a importância da previsão expressa da criação e regulamentação da cadeira de custódia probatória.

Nos termos da lei, considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

O início da cadeia de custódia dá-se com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio, ficando o agente público que reconhecer um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial responsável por sua preservação.

Verifica-se que estamos diante de uma lei de duas cabeças, que lutarão entre si para saber qual predominará. Poderemos ter um país que desperdiça ainda mais vidas e dinheiro com prisões ou um país em que os julgamentos penais sejam mais justiça e menos condenações prévias. Pouco importa quem perde politicamente, pois prevalecendo a lógica punitiva, é certo que perdem os mais pobres. Caberá às instituições escolherem por onde vão.

Artigo publicado originalmente no Migalhas.

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