Debates teóricos são coisa rara. No Brasil não se naturalizou a ideia de que um debate teórico-jurídico é um debate teórico-jurídico; desacordos teóricos não são críticas pessoais. Pelo menos não deveriam ser. Para debater, há que ser educado. Lhano. Coisa rara hoje em dia.
Nessa linha, proponho hoje um tema que vitima direitos todos os dias. A ele, pois.
Com efeito, sabemos que, em 2019, o STF decidiu, por maioria, que réu delatado tem o direito de apresentar suas alegações por último. Decisão correta, que ultrapassou interpretação textualista capitaneada pelo Min. Edson Fachin. Venceu a corrente não-textualista, fazendo com que processos fossem anulados nos casos em que o delatado não tenha tido esse direito. No fundo, uma interpretação conforme ao devido processo legal. Logo, conforme à Constituição.
1. A nova interpretação do STJ à decisão do STF
Pois agora — e este é o tema de hoje — o Superior Tribunal de Justiça apresenta outra interpretação para o dispositivo do CPP. O ponto é: se o réu delatado não suscitou esse direito (portanto, a nulidade por ter de falar antes e não depois), não se aplica o precedente do STF.
Sem precisar entrar na minudência do caso concreto (HC 549.850), a discussão se resume ao seguinte: para que a nulidade decorrente de o delatado não ter falado por último aproveitar a esse, a defesa teria que ter alegado a tempo.
2. O eterno retorno ao pas de nullité sans grief
Logo, o STJ aplicou a antiga tese de que não há nulidade sem prejuízo, isto é, o indigitado pas de nullité sans grief. Entre tantas outras questões, a primeira delas é: qual é o limite de uma nulidade? Em que momento uma nulidade deixa de ser absoluta e se torna relativa, para que dependa de alegação?
Disso exsurge a contradição principal: por que é possível aplicar o adágio-enunciado “não há nulidade sem prejuízo”?
Lembro aqui de uma decisão paradigmática, proferida pela ministra Cármen Lúcia, no HC 103.555, no qual a prova foi feita pelo juiz e, assim, foi totalmente desobedecido o artigo 212 do CPP. A decisão: não ficou demonstrado o prejuízo. A propósito: o réu foi condenado a mais de 9 anos de reclusão. O prejuízo? Como demonstrar o prejuízo? Eis a pergunta de um milhão de dispositivos legais.
Essa questão já foi levada ao STF e não obteve resposta. Nesse sentido, o belo trabalho representado pela ADPF 612 (ver aqui o texto e a doutrina atinente). A referida ADPF — fulminada in limine pelo Min. Lewandowski — deixa claro que o suposto postulado “pas de nullité sans grief” nasce de uma tentativa de calar e silenciar o poder judicial, na regra “nullité sans grief n’opere rien”, do ordenamento jurídico napoleônico, a partir do antagonismo entre o rei e o parlamento, e, portanto, contrária ao princípio republicano (arts. 1º, 3º e 4º, da CF/88).
Mais ainda, acentua que o artigo 563 do CPP deve ser interpretado no sentido de se presumir o prejuízo ao acusado, com a decretação de nulidade, sempre que se relacione a violação do rito/forma em temas ligados à “medula óssea” ou “espinha dorsal” do Processo Penal”: competência, quebra da parcialidade, cerceamento de defesa, constrição da liberdade pessoal ou de direito patrimonial, prova e, julgamento e fundamentação das decisões judiciais.
Correta a ADPF. Corretos os subscritores. Esse tema é candente. Deve ser enfrentado. De frente. Incorreta a decisão do Ministro Lewandowski que impediu a tramitação. Por qual razão o uso do enunciado pas de nullité não fere preceitos fundamentais? E qual seria o outro modo de corrigir essa anomalia? Qual é o conceito de subsidiariedade?
3. De como o pas de nullité vai na contração da Constituição
No caso recente, o STJ, ao dar uma interpretação minimalista à decisão do STF que garantiu ao réu delator falar por último, reforça a permanência de um enunciado performativo que serve para reforçar o subjetivismo na hora de decidir sobre o alcance de uma nulidade.
O referido enunciado “pas de…” nada mais faz do que inverter aquilo que a modernidade nos legou: entre o Estado e as liberdades públicas, a balança deve pender a favor das liberdades. Bem antes da modernidade e antes de o logos superar o mito (no Brasil, o mito é criado para explicar o logos), já se sabia na Grécia que, havendo dúvida, a decisão deve ser “pro réu”. Isto é: na briga entre o grandão e o pequeno, havendo empate ou dúvida, o pequeno deve vencer.
4. De como pas de nullité sans grief é irmão gêmeo do in dubio pro societate
Explico. No fundo, há uma somatória de elementos aqui. O adágio in dubio pro societade sustenta o pas de nullité sans grief. E o que sustenta os dois?
Simples: O velho instrumentalismo processual. Os escopos. A velha dogmática jurídica e sua carência epistemológica.
Claro: quem decide acerca do que é prejuízo? Simples. O julgador. Eis o ponto. Protagonismo. Filosoficamente tem uma explicação: trata-se da aposta no sujeito-que-põe-o-direito. No Brasil, a teoria imperativa encontra o realismo jurídico. E se abraça a ele. E transforma isso tudo numa coisa só. E como a doutrina não reclama… pas de nullité.
E ainda por cima tem um agravante: o réu não só tem de provar o prejuízo como também tem de demonstrar que foi alegado. Neste último caso, tem-se o HC aqui sob comento. O paciente não alegou. A nulidade? Fica em segundo plano.
Como no famoso livro de Lionel Shriver, precisamos falar sobre o pas de nullité sans grief. Para tanto, precisamos compreender que a Constituição, em sua geografia, não por acaso colocou o artigo 5º., que trata de garantias e proibição de nulidades, logo no início. Pela primeira vez. Antes, na Constituição outorgada, estavam lá pelos artigos 150 passim.
Explico. A CF primeiro diz: esta Constituição pretende desigualar a desigualação. Depois diz quais os objetivos do Brasil em termos de território e soberania.
4. Porque os irmãos gêmeos devem bater contra a muralha constitucional
Afinal, o que é e o que significa o artigo 5º.? Simples: o artigo 5º. é uma muralha construída contra o arbítrio, venha ele de onde vier. Essa muralha nos protege, porque de nada adianta o artigo 3º. determinar a desigualação da desigualdade se não temos liberdades para usufruir.
E o papel do Judiciário? Seu papel é proteger os armeiros que estão postados na muralha. Contra os inimigos. Não, não, no EDD os inimigos não são os que cometem crimes. Por quê? Porque a favor deles está o elenco do artigo 5º. Não fosse assim e o artigo 5º. seria inútil.
Garantias existem para proteger os cidadãos contra o arbítrio. Como assim? Simples: a Constituição (e toda a doutrina do EDD) diz que, para que o Estado possa punir os que cometem crimes e transgressões, devem ser postos a disposição do infrator todas as garantias. O Estado não pode ser infrator. Isso parece estranho para muita gente. Para quem duvida, tenha a pachorra de ler os incisos do aludido artigo 5º.
Por mal compreenderem esse fenômeno do Estado Constitucional, muitos pensam que o PJ está aí para combater o crime. Não. Ele existe para garantir que o Estado (e o próprio MP), quando usar prova ilícita, transgredir o devido processo legal e coisas do gênero, deve ser contido.
Sim, o Estado deve ser contido! Essa é a muralha do artigo 5º. da Constituição do Brasil. Quando o judiciário não protege a muralha, ele acaba dando uma mãozinha para o arbítrio pular o muro.
Por isso, na dúvida, o arbítrio (falei arbítrio e não árbitro!) deve ficar fora da muralha. Por isso, o pas de nullité não pode passar pela muralha do artigo 5º. E nem o judiciário deve servir de escora ou catapulta para que a muralha seja ultrapassada (ou destruída).
Por tudo isso, parece urgente que se forme uma doutrina que fortaleça essa paliçada a favor dos direitos. E se os juízes têm medo do “clima”, da “opinião pública”, da “voz das ruas” (qual é a “voz das ruas”?!), ora, é fácil: coloque a culpa na democracia. Aplique a lei. Faça valer o império do direito. Não é feio fazer isso numa democracia.
Por isso, precisamos falar sobre o pas de nullité sans grief. Urgente.
Post scriptum: o mais interessante em tudo isso é que parcela considerável dos críticos do in dubio pro societate e pas de nullité chamam a esses enunciados de…princípios. Como assim? Problema? Simples: quando se começa uma discussão sem levar a sério os conceitos, chega-se a conclusões erradas. Ou, se se acerta, é como um relógio quebrado – acerta a hora duas vezes por dia. Isso sem considerar os críticos que dizem que decisão é uma escolha do intérprete, isto é, dependendo do intérprete, a decisão pode ser outra ou qualquer. Como disse um importante professor, “ele escolhe, valora, mas ele terá que motivar”. Que bom! Ele escolhe e depois nos diz o porquê. Decide e depois fundamenta. Vi isso em uma tese. Depois nos queixamos.
Post scriptum 2: De mais a mais, todo esse imbróglio revela ainda, sem querer, um outro problema — permito-me dizer, recorrente — no STJ: o propalado sistema de precedentes e sua função e conceito. No caso do HC sob comento, o STJ fez distinguishing. Porém, qual era a ratio decidendi? Qual era o caso? Como se identifica ratione decidendi/holding de precedente no Brasil? Quais são os critérios? O que conta como “precedente vinculante”? Precisamos falar sobre isso também, permito-me dizer novamente. O STF, sobre o assunto, não tinha quórum para súmula vinculante. OK. Todavia, pergunto: só obriga se é SV da Suprema Corte? Se sim, tem de ser sempre assim, em todos os casos. Se não é assim, então também tem que ser em todos os casos. Mas, quando e em que termos uma decisão obriga? Eis um gap do sistema. Por isso, precisamos falar sobre isso.
Termos em que ofereço este texto para o debate. Como sempre, respeitoso.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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