A interceptação telefônica virou regra, não se cumpre o exigido e o previsto na lei de regência. Tornou-se norma de aplicação automática
“É fácil trocar as palavras, difícil é interpretar os silêncios! É fácil caminhar lado a lado, difícil é saber como se encontrar” (Fernando Pessoa)
Sou de uma época em que se dizia que deveríamos nos preocupar com o “guarda da esquina”. Esse conceito se popularizou com o episódio ocorrido em 1968, quando o então vice-presidente, Pedro Aleixo, ao questionar os termos do AI-5, ponderou ao presidente Costa e Silva: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.
Hoje estamos pior do que antes, o guarda da esquina continua a nos preocupar e nós temos a figura execrável do “tira hermeneuta”. Tenho alertado que a principal figura do processo penal brasileiro hoje é o que chamo, em homenagem ao grande advogado Luis Guilherme Vieira, de tira hermeneuta. É aquele policial que “analisa” e “interpreta” as escutas telefônicas.
Na luta contra o crime organizado é claro que as interceptações telefônicas são um grande instrumento de investigação, às vezes, essenciais. Mas só às vezes. Daí a excepcionalidade de que se revestem as autorizações judiciais de escuta, apesar da quantidade absurda, ilegal e inconstitucional de grampos que observamos no cotidiano da advocacia.
A interceptação virou regra, não se cumpre o exigido e previsto na lei de regência. Ao contrário, tornou-se norma de aplicação automática, ao que parece. Mas o pior é que nem sequer se cumpre o rito legal de ampla defesa para que se possa aferir o que de fato foi objeto de escuta. Não se permite, na maioria das vezes, o acesso pleno às gravações, não se faz a necessária degravação para que possamos sair da armadilha do resumo feito pelos tiras hermeneutas.
Eles escutam as gravações por horas, dias, semanas, meses, anos e, no dia a dia, fazem resumos do que pensam que ouviram e do que julgam ter entendido. Todos estamos sujeitos a essas interpretações. Prisões são pedidas, vidas são violentamente expostas na mídia, ações penais são propostas, enfim, vários institutos incorporados à vida civilizada são desprezados no cotidiano das interceptações telefônicas.
Os princípios da presunção de inocência, da privacidade, do devido processo legal, da ampla defesa são solenemente ignorados.
Poderia mencionar vários exemplos do meu cotidiano na advocacia, mas prefiro escolher um em especial, justamente um caso em que não advogo: o da professora de filosofia Camila Jourdan, que ganhou destaque na mídia após ter sido acusada como suposta líder de uma “quadrilha armada” responsável por ações violentas em protestos, segundo investigação da polícia carioca que, a partir da interpretação de uma escuta telefônica, concluiu que o filósofo russo Mikhail Bakunin, mestre teórico da anarquia, seria um agitador, um subversivo, alguém a ser investigado, segundo compreendeu um tira hermeneuta.
É humilhante ver o estado de ignorância do Estado responsável pela investigação. O tira não tem a obrigação de conhecer Bakunin, mas a estrutura acusatória do Estado tem, sim, a obrigação de fazer esse filtro antes de lançar acusações. Ficamos submetidos ao arbítrio, à ignorância, à má-fé, à violência.
Enfim, dá até para citar Bakunin, é uma anarquia! Mas não nos termos propostos por ele, pois aí já seria querer muito deste Estado autoritário e invasivo.
Só quero lembrar que num país de grampos sem freios e sem medidas, sem controle razoável pelo Judiciário, quando se grampeia alguém, não se escuta só o próprio investigado, mas todos aqueles que conversaram com ele, pessoas quaisquer de casa, do escritório, do celular. E todos, indistintamente, serão objeto da interpretação de um tira hermeneuta.
É claro que esses que nos investigam de forma indevida não têm noção do mal que fazem à democracia. É como dizia Bakunin: “Não há nada tão estúpido quanto a inteligência orgulhosa de si mesmo”.
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.
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