Por Ronilso Pacheco
Núcleo bolsonarista forja um Jesus ávido por ter o domínio de tudo e de todos
Este é um artigo sobre os riscos reais do avanço do cristianismo reacionário no Brasil, ao redor do governo Bolsonaro, e sobre como perceber que a fé deste reacionarismo é uma fé em colapso. Como “fé em colapso” eu entendo a completa perda de simetria com a prática de Jesus descrita nos textos bíblicos, a qual resumo em três princípios básicos que aproximam a mensagem de Jesus à defesa das liberdades, do respeito à diversidade e à justiça.
O bom samaritano, em que o acolhimento é feito não por religiosos, mas por um samaritano secular, o que indica que o princípio da ética da solidariedade supera as convicções religiosas; a multiplicação dos peixes, em que o princípio da justiça distributiva e igualitária é posta em favor de uma multidão, sem critérios de “pertencimento”, mas de “necessidades”; e a leitura do livro do profeta Isaías, que Jesus faz no no templo (evangelho de Lucas) e na qual ele afirma que veio para os pobres e para proclamar a libertação dos oprimidos —o que é uma clara distinção entre o seu princípio de sensibilidade e identificação, o que ele faz, e o que o templo, que compõe a estrutura de poder, se põe a fazer.
Com esses princípios, nenhum cristão evangélico ou católico precisa ser um militante. Ele naturalmente teria apreço pela justiça e rechaço a qualquer forma de ação e discurso que lhe parecesse estranho a isso. Pois a fé em colapso dos poderosos pastores à frente de suas influentes igrejas e tantos sacerdotes e leigos católicos, reacionária como é, faz o caminho inverso —ou seja, eles pretendem conservar a estrutura de desigualdade (não necessariamente social e econômica) porque o poder deles está ali.
Líderes como Josué Valandro Jr., Silas Malafaia, as famílias Ferreira e Valadão, Edir Macedo, Marco Feliciano, igrejas como Bola de Neve e sua estética e músicas alternativas, mas de base profundamente conservadora e reacionária, ou o núcleo calvinista que integra hoje o governo Bolsonaro, estão comprometidos com um moralismo vertical, que idealiza e ideologiza um Jesus soberano, tão conservador quanto eles mesmos. Todos forjam um Jesus ávido por ter o domínio de tudo (social e culturalmente), sobre todos, empenhado em, através deles, derrotar inimigos. E derrotar de várias maneiras.
A filósofa americana Iris Marion Young, no seu livro “Justice and the Politics of Difference” (sem tradução para o português), se refere a opressão como possuindo cinco faces, a saber: exploração, marginalização, desempoderamento, imperialismo cultural e violência.
Com essas cinco faces, a opressão assume sua dimensão estrutural. E com dimensão estrutural, ela vai citar Foucault para lembrar que estruturas de poder se manifestam não apenas pela ação direta dos que detém o poder, mas, ao contrário disso, como efeito de práticas de educação, muitas vezes liberais e “humanas”, burocráticas, no dia a dia.
É assim a fé em colapso, ela está operando na opressão, quase como uma “prática de educação”, didaticamente. E, embora receba pouca atenção, a fé em colapso não mobiliza mentes e corações apenas pelas palavras que são ditas de púlpito; ela também chega pelas canções entoadas semanalmente, ouvidas exaustivamente, nas rádios e nos cultos.
É evidente que “hinos”, católicos ou evangélicos, não precisam ter como prioridade qualquer mensagem social ou militante. Mas não deixa de ser frustrante que, na maioria das canções, não seja possível encontrar vestígios de simetria com a ética da solidariedade, da defesa da igualdade e afirmação da diversidade, além de uma sensibilidade política que rompa com os abusos das estruturas de poder, para pensar, portanto, comunitária e coletivamente.
Mas este artigo é pautado pela esperança. A fé em colapso não tem o domínio da mensagem bíblica e da vivência de evangélicos e católicos. Muitos, intuitivamente, percebem essa assimetria entre os amantes do poder que querem falar desautorizadamente em nome de todos os cristãos, e aqueles e aquelas que estão buscando viver suas vidas fazendo alguma diferença coerente com o que sabem que é mais coerente com a mensagem de Jesus.
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.
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