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Pecado (do) capital: Sobre a proteção do patrimônio pelo Direito Penal

INTRODUÇÃO

O discurso técnico-jurídico do processo legislativo penal seleciona condutas que a sociedade elenca como reprováveis. Essa seleção penalizante é o processo de criminalização. É imperioso observar que as condutas não são, por si sós, naturalmente criminosas. Um exemplo é capaz de comprovar essa afirmativa: matar alguém é crime e é a conduta mais odiosa em uma sociedade; entretanto, se for praticado em legítima defesa, não o é.

Desta forma, se algumas condutas humanas podem ser selecionadas para serem tipificadas, chega-se a conclusão de que os tipos penais que temos atualmente em vigor são resultados de uma escolha política. Cria-se uma sanção penal para punir as pessoas que praticam a conduta que se escolher proibir.

Argumentado de outra forma, se cada crime não fosse uma escolha política, a sociedade não poderia deixar de perseguir todas as condutas que já foram tipificadas, como os tipos penais de adultério, sedução de mulher virgem e rapto de mulher honesta. Estas condutas deixaram de ser penalmente reprováveis para a atual sociedade e foram revogados do Código Penal em vigor. O que demonstra que a escolha de uma conduta penalmente tipificada é uma escolha política. A título de ilustração, na justificativa do Projeto de Lei nº 117/2003, proposição originária da Lei 11.106/2005, que promoveu estas revogações, a Deputada autora expõe: “É inadmissível a manutenção de tais dispositivos, que não se coadunam com os valores sociais contemporâneos e violam os princípios constitucionais da igualdade entre os gêneros e da dignidade humana”.

Assim, os valores sociais contemporâneos são indutores de processos legislativos na construção de leis civis, previdenciárias, trabalhistas e, também, penais. Esses valores são variáveis no tempo e no espaço e resultam em escolhas políticas.

Este trabalho tem por objetivo analisar a proteção penal dada a dois importantes bens jurídicos: vida e patrimônio. Para tanto, observará a política criminal e o histórico legislativo brasileiro, a fim de refletir criticamente sobre o tratamento conferido pelo sistema penal à vida e ao patrimônio. Por fim, apresentará proposta alternativa à atual proteção penal ao patrimônio.

1 – POLÍTICA CRIMINAL E SEUS DESDOBRAMENTOS NO COTIDIANO

Como a competência para legislar sobre direito e processo penal é da União (art. 22, I/CRFB), cabe ao Congresso Nacional propor, debater e aprovar as leis penais e processuais penais.

Mesmo que inúmeras correntes, teses ou interpretações sejam debatidas durante o processo legislativo, integrado por meio de inúmeras audiências públicas, é vencedor o parecer que recebe mais votos, da maior quantidade de parlamentares que representam a população. Isto não significa que será vencedor o projeto mais técnico. É vencedor o resultado final que mais agrada os representantes do povo.

Portanto, na prática, legislar não necessariamente significa usar da melhor técnica, levando-se em conta os estudos mais atualizados sobre o assunto, por exemplo; mas tão somente fornecer a resposta que a sociedade quer num dado momento histórico. A escolha de condutas que serão proibidas pelo Código Penal, ou leis esparsas, é chamada de criminalização.

O processo de criminalização se desenvolve em duas etapas. A criminalização primária é a criação de uma lei penal material que criminaliza certas condutas e prevê punição para aqueles que a praticam. Já a criminalização secundária é a ação punitiva em concreto, a partir do processo de seleção da agência policial sobre uma determinada pessoa, que supostamente tenha praticado uma conduta proibida, criminalizada, investigando-a e encaminhando-a para a agência judicial, para que inicie o processo penal.

Todas as sociedades conviveram e convivem com as condutas que cada uma delas considera desviante e reprovável, seja uma escolha política, religiosa ou ideológica. Algumas podem tipificar certas condutas, por exemplo, ser gay no Irã e na Arábia Saudita é crime punido com pena de morte; que para outras podem ser fatos atípicos. Por isso, o crime sempre existiu na sociedade. Desta forma, cada sociedade elaborou normas para criminalizar determinadas condutas que escolheu reprovar, cominando uma sanção para o caso de violação. E, nas mais das vezes, a conduta tipificada é aquela que viola o pleno exercício de um direito individual do outro.

A segurança pública visa proteger os direitos individuais e assegurar o pleno exercício da cidadania. E a ideia de segurança pública como modelo de política criminal para reduzir a criminalidade surge com a criação da polícia no século XVIII, na França e, posteriormente, na Inglaterra. No Brasil, a experiência surge a partir da vinda da família real, em 1808, e com ela a Guarda Nacional portuguesa, que tinha como missão o patrulhamento do espaço urbano do Rio de Janeiro.

Atualmente, a Constituição da República, no seu art. 144, dispõe que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (…)”.

Mas, além do conceito, (in)segurança é uma sensação percebida diferentemente por cada um dos cidadãos. Não necessariamente um maior efetivo policial nas ruas traz para todos a sensação de segurança. Para alguns, sim. Para outros, pode gerar a ideia de que aquele determinado local tem muita criminalidade, por isso, precisa de um maior policiamento.

Cabe destacar que a sensação de insegurança, muitas vezes agravada pelos meios de comunicação, pode gerar o medo na população,. A criminologia midiática reforça a ideia de que há impunidade, quase nenhum lugar é seguro e de que precisamos de penas mais rígidas. Daí surge o direito penal de emergência. A teoria do direito penal de emergência, em breves palavras, debruça-se sobre o processo legislativo penal a partir do discurso do medo. Reforça a ideia de que a produção legislativa pode “resolver” o problema (ou, ao menos, dar uma resposta imediata).

O senso comum legitima a função de prevenção geral negativa da pena: um instrumento apto à prevenção da prática criminosa, pois quanto maior a pena, mais inibido ficaria o cidadão de desviar sua conduta. Utiliza-se o medo como medida de controle social. Por isso, a proposta dos legisladores de “resposta” contra crescimento da violência é o aumento de pena e o agravamento do cumprimento dela. Desse discurso nasceu, por exemplo, a lei de crimes hediondos, a proposta de regime de cumprimento de pena integralmente fechado e o regime disciplinar diferenciado.

No entanto, essa “resposta” às condutas odiosas oferecida por nossos parlamentares não atingem o cerne da questão. O grande representante do iluminismo penal, Cesare Beccaria, também atribui à pena a função de intimidar, é verdade, mas foi além. Ele escreveu no seu livro “Dos delitos e das penas”, que

Ainda que as leis da natureza sejam sempre simples e constantes, não impedem que os planetas mudem às vezes os movimentos rotineiros. Como poderiam, portanto, as leis humanas, no entrechoque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja alguma perturbação e certo desarranjo na sociedade? Esta é, contudo, a quimera dos homens limitados, quando possuem algum poder[1].

E prossegue:

Para uma causa que impele os homens a cometer um delito, existem mil outras que impelem a ações indiferentes, que apenas são delitos perante as leis más. Ora, quanto mais se estender a esfera dos delitos, tanto mais se fará com que sejam praticados, pois se verão os crimes aumentarem à proporção que as razões de crimes especificados pelas leis forem mais do que privilégios de um pequeno número de senhores[2].

O que Beccaria quis dizer é que as leis não podem favorecer determinadas classes e que ao povo deve ser oferecido igual acesso à educação, para ser capaz de comparar objetos, analisá-los e modificar seus sentimentos, colocando-se no lugar do outro. Assim, ele não lamentará a partícula de liberdade de que abriu mão por se submeter a uma legislação que limita o livre arbítrio em comparação a segurança pública de todos.

O mestre italiano conclui que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”[3]. Ou seja, o recrudescimento da legislação, com o acréscimo da quantidade de pena e o agravamento das condições de cumprimento da mesma são soluções igualmente violentas.

Por isso, é preciso repensar nosso histórico legislativo e avaliar os resultados que a sociedade conquistou com a aplicação dessas leis. A maximização dos processos de seleção e punição de condutas reprováveis trouxe resultados satisfatórios? Reduziu a insegurança da população? Evitou novas ocorrências?

2 – DIREITO PENAL NA HISTÓRIA BRASILEIRA

Reputa-se importante a análise dos códigos penais que vigeram no Brasil, pois necessário se faz que se tenha conhecimento das condutas já imputadas como crime ao longo da história.

Cabe lembrar que, ao longo dessa mesma história, o criminoso não é tido como o cidadão em conflito com a lei, e sim o inimigo da sociedade. Desta forma, há uma tendência a “dirigir o processo de criminalização, principalmente, para as formas de desvios típicos das classes subalternas”[4]. Como aduz Nilo Batista:

“Quando alguém fala que o Brasil é ‘o país da impunidade’, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc.). Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do salário mínimo (punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos)”.[5]

Desta forma, observa-se no Brasil que a maior parte das condutas praticadas encontra seus sujeitos ativos nas camadas mais pobres da população; crimes, inclusive, que só poderiam ser cometidos por homens libertos/ex-escravos, o que será demonstrado abaixo.

2.1 LIVRO V DAS ORDENAÇÕES DO REINO – ORDENAÇÕES FILIPINAS

Em matéria de legislação penal, a primeira norma positivada que se tem notícia de aplicação no Brasil, desde a época de colônia, foram as Ordenações Filipinas. Esta compilação foi confirmada pela Assembleia Constituinte do país, mesmo após a Independência[6].

Durante sua vigência foi criado o tribunal da Relação do Estado do Brasil, em Salvador, em 1609, o que ensejou uma redução no poder punitivo privado, trazendo insatisfação à classe oligárquica[7]. Já em 1751, foi criado o tribunal da Relação do Rio de Janeiro. A partir de 1765 foram instaladas Juntas de Justiça nas cidades onde residiam ouvidores das capitanias, instituindo, desta forma, a estrutura burocrática necessária para a aplicação das Ordenações Filipinas que, apesar de ainda dar espaço para as práticas punitivas domésticas, começava a constituir referência centralizante e escrita. Com a presença de juízes que sabiam ler e escrever, o que antes não era obrigatório, foi conferido certo nível jurisdicional a essas práticas processuais penais.

As Ordenações Filipinas colidiam frontalmente com a Constituição de 1824, ferindo várias garantias individuais, tais como: liberdade de manifestação de pensamento, reserva legal, devido processo, liberdade de locomoção, abolição de penas cruéis e de tortura, dentre outras. Além do mais, não estabelecia proporcionalidade no tratamento de algumas condutas. Por exemplo, o Título LXI do Livro V das Ordenações Filipinas impunha a pena de morte natural para aquele que tomasse para si alguma coisa que valesse mais de mil reis, com o uso da força e contra a vontade daquele que detinha esta coisa[8]. Ou seja, o roubo era punido com a pena de morte. Entretanto, considerava lícita a conduta do homem casado que flagrava sua mulher com amante e matava ambos. Ressalte-se que, a condição social importava para a aplicação da pena. Se o adultero fosse um fidalgo ou um Desembargador e o marido traído fosse um peão, ele não poderia matá-lo. Se o fizesse, seria degredado para a África[9].

Era flagrante a criminalização privilegiada. Nas palavras do professor Pierangeli, “além de bárbaras e atrozes, as penas eram desiguais: influía na sanção a qualidade ou condição da pessoa, pois se puniam diversamente os nobres e os plebeus”[10].

No que diz respeito à matéria penal, as Ordenações Filipinas vigeram até a promulgação do Código Criminal do Império, de 1830, portanto, foi a legislação que durou por mais tempo no Brasil.

2.2 CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DE 1830 

Em 1824, foi outorgada a Constituição do Império, que, com seu art. 179, influenciou diretamente na elaboração do Código Criminal de 1890. Este artigo previa os princípios da utilidade, da irretroatividade da lei, da intranscendência, aboliu o açoite, a marca de ferro e a tortura.

O Código Criminal de 1830, em seu artigo 1º, revigorou o princípio da legalidade[11], já instituído na Constituição de 1824[12]; entretanto, na prática, não foi o que se deu. O Código do Processo Criminal de 1832 estabelecia maior liberdade ao julgamento do juiz, por meio de cláusulas abertas[13] – técnica legislativa onde o juiz pode adequar o caso concreto à lei, por exemplo: o juiz de paz poderia impor pena de até 30 dias e multa àqueles suspeitos de pretensão de cometer algum crime; os crimes contra a polícia e a economia particular das povoações poderiam ser punidos conforme as posturas municipais. A insurreição era um crime que tinha pena prevista em um decreto imperial, que mostra claro confronto com o princípio da legalidade.

Cumpre informar que este Código sofreu influências legislativas francesa e do jurisconsulto Jeremy Bentham, que trouxe o critério de utilidade das penas, bem como a idéia de atenuantes e agravantes; e, ainda, que no Brasil, durante a invasão holandesa ao litoral norte do país, teve notícias da aplicação do regime jurídico-penal implantado pelos holandeses[14]. Fato que merece menção é o de Nassau ter declarado que as punições não deveriam levar em conta a condição social das pessoas[15], vide a tipificação do adultério nas Ordenações Filipinas.

Entre o Código Criminal de 1830, e o Código Penal de 1890, surgiram leis esparsas importantíssimas na história deste país como, por exemplo, a lei nº 04, de 10 de junho de 1835, que imputava pena de morte, irrecorrível, ao escravo que matasse ou ferisse o senhor ou seus familiares; e a lei nº 3.279, de 28 de setembro de 1885, que assemelhava a apropriação indébita o acoutamento de escravos.

2.3 CÓDIGO PENAL DE 1890

Na Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o contexto era de uma economia agroexportadora (café, açúcar, algodão, borracha) oriunda de grandes propriedades, que começou a admitir mão de obra estrangeira, deixando desempregados escravos recém libertos. Com a recém proibição do tráfico negreiro e o fim da escravidão, a apropriação de terras devolutas por parte do Estado e o processo de industrialização, surge o Código Penal de 1890, promulgado através do decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Nele foi extinta a pena de morte, de acordo com o art. 43. Observa-se que o rol dos crimes contra a pessoa e a propriedade ficava no mesmo Título XIII.

Em meio a esta sociedade, surgiram novos inimigos a serem reprimidos: prostitutas, desempregados, capoeiras, malandros, vadios. Em 1899, o decreto nº 3. 475, no seu art. 5º, diz que não terão direito à fiança os réus vagabundos e sem domicílio, mesmo se o delito for punido com pena de multa.

A greve[16] também é criminalizada pelo Código de 1890[17], agravada e tornada inafiançável, pelo decreto nº 5.221 de 12 de agosto de 1927. Os operários que se interessassem pelas ideias anarquistas, ou mesmo comunistas, eram considerados suspeitos; suspeição esta que poderia se materializar em criminalização secundária a partir do ingresso em uma greve. A ociosidade é assimilada a infração, tal qual a pobreza, que despertava a suspeição quando o operário mudava seu itinerário casa-fábrica-casa.

 A vigilância é aprimorada durante essa época. Interessante a análise feita pelos professores Nilo Batista e Zaffaroni:

“A programação criminalizante da primeira República espelha, com evidência didática, as contradições de um sistema penal que participa decisivamente da implantação da ordem burguesa porém traz consigo, e reluta em renunciar a ela, a cultura da intervenção corporal inerente ao escravismo. Esquematicamente, poderíamos ensaiar uma descrição das estratégias de tal sistema penal a partir da própria concepção, cara ao positivismo e por sua iniciativa inscrita na bandeira republicana, de ordem. Encontraríamos, assim, a criminalização direcionada à configuração e preservação de lugares sociais, cujas bem delimitadas fronteiras não poderiam ser ultrapassadas, funcional ou mesmo territorialmente. Enquanto cumprisse resignadamente suas intermináveis jornadas de trabalho na fábrica, o operário estava em seu lugar, confortado pelo oportuno discurso ético-jurídico que associa trabalho à honestidade e ociosidade à corrupção”.[18]

Neste contexto, não se pode deixar de observar que o capitalismo faz com que a força do homem seja transformada em força de trabalho[19], e uma vez em que na sociedade de consumo não há trabalho para todos, segue-se que nem todos poderão consumir e a força de trabalho excedente vai das fábricas direto para as prisões. É a ideia de Foucault que se traduz pelo binômio sobre-lucro/sub-poder[20], onde para se conseguir o máximo de lucro, deve-se explorar o máximo do homem, mas não somente sua força de trabalho, como também adestrar seu corpo para que ele seja útil e dócil e que, portanto, se submeta ao padrão de subjetividade construído a partir das necessidades do mercado.

2.4 CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS PENAIS

A Consolidação das Leis Penais foi aprovada e adotada pelo Decreto n° 22.213, de 14 de dezembro de 1932. De acordo com os legisladores da época, em razão das alterações que havia sofrido o Código Penal de 1890, nas classificações dos delitos e na quantidade das penas, o que deu origem a grande número de leis esparsas e gerou confusão quanto ao conhecimento da lei e sua aplicação; foi entendido pelo legislador que era conveniente a adoção de uma consolidação de leis penais, por ter utilidade prática, no sentido de complementar as leis modificadoras em vigor à época.

Esta consolidação teve origem em um contexto econômico de crise. Dois anos antes, o mundo se viu diante de uma crise internacional do mercado, em 1930. Diante deste cenário é que surge o Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932, e posteriormente o Código Penal de 1940. Sob a influência do Estado Novo, em 1937, estes dois novos institutos jurídicos abordam o direito penal da intervenção econômica e da repressão política. É interessante notar que Lei nº 35, de 04 de abril de 1935, em seu art. 30, proibia os partidos políticos que discutissem política, entendendo por tal como subversão. 

2.5 CÓDIGO PENAL DE 1940

O Código Penal atualmente em vigor tem como contexto histórico o Estado Novo e o surgimento da Constituição de 1937, que foi outorgada em pleno regime ditatorial, para conter a ameaça comunista presente pela Intentona Comunista, de 1935. Diante deste cenário, apresenta-se a influência do Código Rocco italiano, de 1930, com o sistema do duplo binário.

Desta feita, foi promulgado o Decreto n° 2.848, de 07 de dezembro de 1940. O Decreto entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942.       Em sua exposição de motivos, é afirmado a influência da Escola Positiva, liderada por Enrico Ferri [21].

No que tange a análise dos artigos incriminadores, observa-se a discrepância com que são tratadas as condutas das pessoas das classes sociais diferentes. Por exemplo, no furto sem violência, se a pessoa restitui o bem até o recebimento da denúncia, tem uma causa de diminuição da pena, conforme previsto em seu art. 16. Já, se um empresário deixar de recolher as contribuições para a previdência social, mas se até o início da ação fiscal ele pagar a contribuição, fica extinta a punibilidade, de acordo com o previsto no art. 168-A, tendo, inclusive, suspensa a pretensão punitiva do Estado, se a pessoa jurídica estiver no plano de parcelamento da dívida, de acordo do o art. 9° da Lei n° 10.684, que trata do parcelamento de débitos tributários. Desta forma, fica clara a criminalização privilegiada, posto que dois crimes contra o patrimônio, praticados sem violência, são tratadas de forma diametralmente diferentes, em razão da conduta do sujeito ativo. É flagrante a criminalização da pobreza.

2.6 – LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS DE 1941

A Lei das Contravenções Penais cuida das infrações penais diversas dos crimes e, para tanto, tem algumas peculiaridades. Para a punição prevê a prisão simples, que não pode exceder cinco anos, e a multa; a natureza jurídica da ação penal é sempre pública; e os contraventores devem cumprir pena separados dos condenados por crime.

O Decreto-Lei n° 3.688, de 03 de outubro de 1941, reforçava o papel de criminalização da pobreza nos seus artigos 59 e 60. A punição dada ao que se entrega a ociosidade sem meios de subsistência e ao mendigo, são flagrantes casos de punição daqueles que não têm renda e optam por não trabalhar ou não conseguem um emprego.

Esta legislação está em vigor até hoje. Entretanto, a Lei 11.983 de 16 de julho de 2009, revogou o art. 60 do Decreto-Lei em análise e nos trouxe mais um caso de abolitio crimminis[22] do tipo penal de mendicância, que previa prisão simples de quinze dias a três meses. No entanto, a mesma sorte não teve a contravenção de vadiagem, restando claro a opção legislativa em manter incriminando aqueles que estão fora do mercado de trabalho.

Assim, diante da análise não só da Lei das Contravenções Penais, como das demais leis repressoras, observa-se a relação cárcere/fábrica[23]. Encerra-se este capítulo com a reflexão feita pelo professor Juarez Cirino quando diz que  “o método punitivo da prisão objetiva transformar o sujeito real (condenado) em sujeito ideal (trabalhador), adaptado à disciplina do trabalho na fábrica, principal instituição da estrutura social”[24].

3 – ANÁLISE CRÍTICA DOS DIREITOS PATRIMONIAIS X DIREITOS FUNDAMENTAIS

Na obra “Direitos e garantias”, Luigi Ferrajoli traz uma reflexão crítica acerca da defesa da propriedade como um direito fundamental. O autor italiano lembra que assim como a liberdade, a propriedade é vista como um direito fundamental por Locke, passando pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e por John Marshall. Mas aponta um equívoco teórico: a valorização da propriedade, no pensamento liberal, como um direito do mesmo tipo que a liberdade e, o inverso, a desvalorização da liberdade no pensamento marxista, desacreditado como um direito burguês, a par da propriedade[25].

Por isso, ao analisar a liberdade e a propriedade ou direitos fundamentais versus direitos patrimoniais, Ferrajoli aponta quatro diferenças estruturais.

A primeira é que os direitos fundamentais (liberdade, direito à vida, direitos civis, políticos e sociais) são universais; e o direito à propriedade, bem como os demais direitos reais, é singular. Aqueles são reconhecidos a todos os indivíduos, já este é reconhecido a cada um de maneira diversa.

A segunda é que os direitos fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransmissíveis e personalíssimos. Já os direitos patrimoniais são disponíveis, negociáveis e alienáveis, por sua natureza. Ferrajoli diferencia ainda a indisponibilidade ativa, que não podem ser alienados por seus titulares e indisponibilidade passiva, que não são expropriáveis por outros sujeitos[26].

Essas duas diferenças estruturais representam a noção formal dos direitos fundamentais: são universais e indisponíveis; por isso, são um limite não só para o Poder Público, mas também na autonomia de seus titulares.

A terceira diferença é uma consequência da segunda: os direitos patrimoniais são disponíveis, portanto, constitutivos, modificáveis e extinguíveis por atos jurídicos; ao passo que os direitos fundamentais decorrem da lei, são normas[27].

Por fim, a quarta e última diferença consiste na posição dos direitos: os patrimoniais são direitos horizontais (intersubjetivo) e os fundamentais são direitos verticais (do indivíduo frente ao Estado). Enquanto os horizontais geram a proibição genérica de não lesão entre as partes, os verticais correspondem a proibições e obrigações oponíveis ao Estado, cuja observância é condição de legitimidade dos Poderes Públicos.

 O nobre mestre italiano conclui que é justamente o limite que a lei impõe ao Estado, no seu dever de garantir os direitos fundamentais, que reside a esfera pública do Estado Constitucional de Direito, em oposição a esfera privada, das relações patrimoniais[28].

Essa diferenciação crítica, analisada pelo Professor Luigi Ferrajoli nos traz a seguinte reflexão: como pode o Direito Penal, que deveria ser a ultima ratio, tutelar direitos patrimoniais que são singulares/intersubjetivos? E mais grave, como pode tratar a violação ao patrimônio com penas, por vezes, maiores que às destinadas para as violações da integridade física[29], que é direito fundamental indisponível?

Na obra “Direito e Razão”, Ferrajoli nos propõe reflexão acerca do garantismo penal. Segundo ele,

“Garantismo”, com efeito, significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade[30].

E um dos desdobramentos do garantismo é o direito penal mínimo que consiste na ideia de que somente caberia a intervenção penal em conflitos extremamente graves, que violasse interesses gerais, que pudesse ensejar uma vingança privada ilimitada. É um limite ao poder punitivo, sem excluir o direito de proteção contra comportamentos delituosos resultantes de condutas graves. Por isso que a proposta do mestre italiano é de que o direito penal se limite a tutelar os direitos fundamentais.

A mudança no tratamento penal conferido à proteção ao patrimônio é o que se propõe no próximo capítulo.

4 – PERSPECTIVA DE MUDANÇA LEGISLATIVA

O Projeto de Lei do Senado Federal nº 236/2012, Anteprojeto de Código Penal, aqui analisado apenas no que diz respeitos aos crimes contra o patrimônio praticados sem violência, trouxe mitigações penais inovadoras.

Os crimes de furto simples, dano, estelionato, apropriação indébita e receptação tiveram suas penas reduzidas, além da extinção da punibilidade quando a vítima aceita a reparação do dano. Outra importante reforma foi a mudança da natureza jurídica da ação penal nestes casos, de ação penal pública incondicionada, o projeto transforma em ação penal pública condicionada a representação da vítima.

Como visto anteriormente, a propriedade sempre foi penalmente protegida, muitas vezes em detrimento da própria integridade física, cuja ação penal é condicionada a representação. Esta proposta apresentada no PLS nº 236/2012 pode ser vista como política criminal defendida pelo direito penal mínimo.

É um grande avanço para esta sociedade a propriedade privada ser tratada, no mínimo, no mesmo patamar que a integridade física. A desproporcionalidade flagrante do tratamento penal que é dado entre a violação à integridade física e a violação ao patrimônio exibe uma sociedade que dá mais valor às coisas do que às pessoas.

Entretanto, a proposta que se apresenta neste trabalho é que a violação simples ao patrimônio, excluindo-se a violação que resulta ou gera violência física ou ameaça, seja tratada como ato ilícito, regulado pelo Direito Civil, sujeitando ao infrator o dever de reparar o dano e restituir a coisa, como dispõem os art. 186 e 187 do Código Civil.

A abolitio criminis, aqui proposta, ensejaria nova alteração legislativa, porque seria necessária outra reforma ao Código Penal. Propõe-se, portanto, a descriminalização dos crimes sem violência contra o patrimônio. Lembremo-nos que as condutas não são naturalmente criminosas, são escolhas políticas que as tipificam como crime, como dito anteriormente.

A proposta de solução dos conflitos envolvendo a violação ao patrimônio, sem violência, na esfera cível permite, inclusive, que num processo que vise apurar os fatos, já possa resultar na compensação material para a vítima, já que no processo penal, a vítima de um crime contra o patrimônio tem apenas como “prêmio de consolação” a condenação do autor do fato e não a restituição do bem ou valor por ele subtraído, sendo necessário ajuizar nova ação para reaver seu bem ou valor, se assim o desejar. Esse é um processo que estimula a vingança privada e, não necessariamente, a restauração do status quo ante.

Desta forma, repensando nosso histórico legislativo e observando os resultados que as vítimas obtêm com a aplicação da lei penal, é possível concluir que o atual processo criminal não reduz a sensação de insegurança, haja vista a enorme quantidade de propostas que visam aumentar cada vez mais o poder punitivo que, há anos, não consegue reduzir os índices da criminalidade e, portanto, evitar novas ocorrências (até porque, como é óbvio, as condutas tipificadas só aumentam). Também é possível observar que, especificamente nos crimes sem violência contra o patrimônio, objeto deste estudo, o processo penal por si só não é capaz de restituir o patrimônio individual violado e, por isso, não traz um resultado prático para a vítima.

O direito penal deve ser mínimo, deve aplicar a técnica legislativa apenas para tutelar os direitos fundamentais. Como leciona Ferrajoli,

É sob esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção dos delitos e aquela das penas arbitrárias – são, entre si conexas, vez que legitimam, conjuntamente, a ‘necessidade política’ do direito penal enquanto instrumento de tutela dos direitos fundamentais, os quais lhe definem, normativamente, os âmbitos e limites, enquanto bens que não se justifica ofender nem com os delitos nem com as punições[31].

Conclui-se que todas essas tentativas de solução do problema já falharam e que é hora de pensar em outra política legislativa para as condutas, sem violência, contra o patrimônio, como o furto simples, dano, estelionato, apropriação indébita e receptação. Para tanto, aponta-se como alternativa a resolução deste conflito, a composição por meio do processo civil, com a restituição da coisa e/ou reparação do dano, seja material ou moral, deixando para o direito penal apenas as violações aos direitos fundamentais.

CONCLUSÃO

A sociedade institucionaliza o poder punitivo selecionando determinadas condutas para proibir e impor-lhe uma pena.

As condutas violadoras do patrimônio sempre foram criminalizadas na história do Brasil, desde quando o território ainda era colônia e a primeira legislação aplicada aqui ainda era a portuguesa. Diga-se de passagem, o Título LXI do Livro V das Ordenações Filipinas punia com pena de morte aquele que roubasse alguma coisa que valesse mais de mil reis. No atual Código Penal, a pena do furto simples é maior que a pena da lesão corporal simples. Uma inversão na proteção dos bens jurídicos tutelados.

 O professor italiano Luigi Ferrajoli abordou criticamente sobre a proteção penal à propriedade, lembrando que a inserção da propriedade no rol dos direitos fundamentais surgiu a partir de autores liberais, capitaneado por John Locke.

Para tanto, aponta quatro argumentos capazes de justificar porque os direitos patrimoniais não devem ser inseridos no rol dos direitos fundamentais. Primeiro, os direitos patrimoniais são individuais e os fundamentais são coletivos. Segundo, os direitos patrimoniais são alienáveis e negociáveis, diferente dos direitos fundamentais, que são inalienáveis, personalíssimos. Terceiro, os direitos patrimoniais são disponíveis, já os fundamentais são indisponíveis. Por fim, os direitos patrimoniais são horizontais, intersubjetivos e os direitos fundamentais são verticais, do indivíduo frente ao Estado. 

Ferrajoli conclui apontando que o direito penal deveria tutelar apenas os direitos fundamentais e entende, portanto, que os direitos patrimoniais não estão neste rol.

 O Poder Legislativo já aponta para uma perspectiva de mudança na política criminal. O Projeto de Lei do Senado Federal nº 236/2012 prevê redução da pena dos tipos penais praticados sem violência, como furto simples, dano, estelionato, apropriação indébita e receptação. Além do mais, prevê a extinção da punibilidade quando a vítima aceita a reparação do dano e a alteração da natureza jurídica da ação penal nestes casos, de ação penal pública incondicionada para ação penal pública condicionada a representação da vítima.

A proposição em tramitação no Congresso Nacional é um importante avanço no sistema penal.

Entretanto, o direito penal deve ser o último recurso a solucionar um conflito entre indivíduos em litígio meramente patrimonial, como brilhantemente abordado pelo mestre italiano Ferrajoli. Além do mais, o processo penal, por si só, não é capaz de satisfazer integralmente a vítima, pois não restitui o bem perdido.

Por isso, a proposta deste trabalho é de que as condutas atualmente tipificadas como furto simples, dano, estelionato, apropriação indébita e receptação sejam descriminalizadas e que os prejuízos materiais resultantes destas condutas sejam processados como ato ilícito, nos termos dos art. 186 e 187, do Código Civil, pois que seria o meio mais adequado a apuração dos fatos e a restituição da coisa e reparação do dano.

Concluindo, essa proposta de descriminalização é uma política criminal que entende que ao direito penal deveria ser relegado apenas a tutela dos direitos fundamentais.


[1] BACCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 102

[2] Idem.

[3] Ibid. p. 107.

[4] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direto penal: introdução à sociologia do Direto Penal. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.165.

[5] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990. pp. 38-9.

[6] Decreto de 27 de setembro de 1823, sancionado e publicado em 20 de outubro de 1823. Art. 1º.

[7] Cumpre informar que este tribunal da Relação foi fechado em 1626. ZAFFARONI, E. R., BATISTA, N., ALAGIA, A., SLOKAR, A. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Teoria Geral do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 418.

[8] PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 55.

[9]  Ibid. p 43.

[10] Ibid. p. 58.

[11] “Art. 1º . Não haverá crime ou delicto (palavras synonimas neste Codigo) sem uma lei anterior que o qualifique.” Ibid. p. 235.

[12] A Constituição de 1824, em seu art. 179, influenciou sobremaneira o Código Penal do Império.

[13] Observe-se que as cláusulas abertas são contrárias ao princípio da legalidade, pois não respeita o brocado nullum crimen nulla poena sine lege, que diz respeito à publicização da reação penal, porque é necessário que o acusado saiba qual é a conduta que lhe pode ser imputada. Nas palavras do professor Nilo Batista: “Por um lado resposta pendular aos abusos do absolutismo e, por outro, afirmação de nova ordem, o princípio da legalidade a um só tempo garantia o indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder com o espaço exclusivo da coerção penal. Sua significação e alcance políticos transendem o condicionamento histórico que o produziu, e o princípio da legalidade conctitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 65.

[14] PIERANGELI, José Henrique. op. cit. p. 62.

[15] Ibid. p. 63.

[16] “Historicamente o capitalismo recorreu ao sistema penal para duas operações essenciais: 1ª garantir a mão-dobra; 2ª impedir a cessação do trabalho. (…) Para impedir a cessação do trabalho, criminalizava-se o trabalhador que se recussasse ao trabalho tal como ele ‘era’: criou-se o delito de greve.” BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 35.

[17] “Art. 205. Seduzir, ou alliciar, operários e trabalhadores para deixares os estabelecimentos em que forem empregados, sob promessa de recompensa, ou ameaça de algum mal:

                Penas – de prisão cellular por um a três mezes, e multa de 200$000 a 500$000.

                “Art. 206. Causar ou provocar cessação ou suspensão de trabalho, para impor aos operários ou patrões augmento ou diminuição de serviço ou salário:

                Pena – de prisão cellular por um a três mezes.

  • 1º Si para esse fim se colligarem os interessados:

                Pena – aos chefes ou cabeças da colligação, de prisão cellular por dous a seis mezes

  • 2º Si usarem de violência:

                Pena – de prisão cellular por seis mezes a um anno, além das mais em que incorrerem pela violência.” PIERANGELI. op. cit. p. 294.

[18] ZAFFARONI, E. R., BATISTA, N., ALAGIA, A., SLOKAR, A. op. cit. pp. 456-457.

[19] Para Juarez Cirino: “O conceito de modo de produção desenvolvido pelo pensamento marxista, formado pela articulação de forças produtivas em determinadas relações de produção da vida material, permite identificar os objetos reais do Direito, em geral – cuja existência é encoberta pelos objetivos declarados do discurso jurídico oficial -, que revelam o significado político do Direito Penal como instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas – esclarecendo, completamente, a formação econômica das classes sociais nas relações de produção e a luta política dessas classes sociais no terreno das ideologias (…), rompendo, assim, a “opacidade” do real produzida pelo discurso jurídico oficial dos objetivos declarados do Direito Penal”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005. p. 8.

 Os professores italianos Melossi e Pavarini, estabelecem uma ligação entre o surgimento da instituição carcerária moderna com o modo de produção capitalista. Explicam que no período de produção pré-capitalista, o cárcere não era visto como pena privativa de liberdade. Entretanto, o capitalismo influenciou o cárcere, tornando a pena privativa de liberdade uma pena por excelência, por se poder aproveitar a mão-de-obra dos detentos como meio de produção, ocorrendo, assim, a mudança de paradigma. MELLOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006.  pp. 20-21.

[20] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001. p. 125.

[21] Professor universitário, advogado, político militante, considerado o pai da moderna Sociologia Criminal. Entende que o delito é um fenômeno social, por isso, a prevenção do delito deve se dar por meio de uma ação do poder público que se antecipe a ele e incida sobre fatores criminógenos, neutralizando-o. Vale destacar que confiava no regime fascista, tinha preferência pelo sistema de medida de segurança e pela sentença indeterminada e admitia, em alguns casos, a aplicação da pena de morte. GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. Trad. Luiz Flávio Gomes. 4. Ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp. 194-8.

[22] Ocorre no ordenamento jurídico pátrio quando o legislador resolve não mais incriminar determinada conduta. Assim, é retirada do ordenamento jurídico a infração revogada. Tem previsão no art. 2º, caput do CP. O Estado abre mão do ius puniendi e declara extinta a punibilidade de todos os fatos ocorridos anteriormente à edição da lei revogadora, conforme art. 107, III do CP, cessa os efeitos penais da sentença condenatória, lembrando que permanecem os efeitos civis, sendo o nome do agente retirado do rol dos culpados, sua condenação não conta para os efeitos da reincidência nem para os antecedentes penais. No caso em tela, poder-se-ia dizer da aplicação do princípio constitucional implícito da co-culpabilidade, tendo em vista que, a mendicância decorre de uma menor autodeterminação do agente, tendo em vista as mazelas sociais, o desemprego, a não prestação digna dos direitos socias por parte do Estado etc. Desta forma, o Estado, assumindo para si parcela de sua responsabilidade, através do legislador, revogou tal infração penal. Ver por co-culpabilidade: MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no Direito Penal. Niterói: Impetus, 2006.

[23] Tema amplamente debatido na obra Cárcere e fabrica, de MELLOSSI e PAVARINI, citada neste trabalho.

[24] SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005. p. 43.

[25] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Madrid: Editorial Trotta, 1999. p. 45.

[26] Ibid. p.47

[27] Ibid. pp.48-9

[28] Ibid. p. 50.

[29] O exemplo mais evidente desta distorção é o tratamento penal que se dá a lesão corporal simples, do art. 129 do Código Penal, que prevê pena de três meses a um ano, e a resposta penal que se dá a violação patrimonial do furto, que não atinge a integridade física, que prevê pena três vezes maior, de um a quatro anos.

[30] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 312.

[31] FERRAJOLI, Luigi. op. cit. pp. 311-2.

Texto publicado originalmente na Revista Discursos Sediciosos.

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