Por Pedro Zambarda de Araujo
O jurista Lenio Luiz Streck tem 65 anos e é reconhecido como um dos maiores críticos da Operação Lava Jato e do ex-juiz Sergio Moro. Com o fim da Força-Tarefa da operação após sete anos, o professor de Direito Constitucional, colaborador do Grupo Prerrogativas e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados deu uma entrevista exclusiva ao DCM sobre as novas conversas reveladas em 50 páginas da Operação Spoofing, que tiveram sigilo retirado pelo ministro Ricardo Lewandowski.
As conversas fazem parte de um arquivo de 7 TB de espaço digital dos hackers que foram presos pela Polícia Federal. Acredita-se que uma pequena parte desses dados, 43 GB, foi base das reportagens da série Vaza Jato, do The Intercept e veículos parceiros.
Lenio Streck falou sobre as implicações dos novos diálogos e a discussão no STF: se a Suprema Corte vai levar adiante um “golpe antijurídico” para salvar Sergio Moro de ser julgado como parcial nos processos do ex-presidente Lula ou se os ministros retomarão o Estado Democrático de Direito.
DCM: Em artigo recente no ConJur, o senhor afirmou que há um golpe antijurídico em curso para salvar Moro de ser julgado parcial nos processos da Operação Lava Jato. A tentativa de impedir punições ao ex-juiz subvertem mais o Direito? Em que nível?
Lenio Streck: Esse golpe em curso para salvar as ilicitudes de Moro, na verdade, é uma tentativa para que não se considere nulo o processo da Lava Jato, senão dividiria as provas em dois tempos. Uma seria a prova que o Moro colheu. Ela seria nula, mas não seria nulo porque a juíza Gabriela Hardt, no caso do sítio em Atibaia, não teria participado do que Sergio Moro fez parte. A juíza teria sentenciado, e essa segunda parte não seria nula.
Isso é uma trampa jurídica, porque um processo é nulo quando as raízes são envenenadas e os frutos também são envenenados. Não é por acaso que na Justiça americana chamam de “frutos da árvore envenenada”. Então, todo o conluio de Moro, de Dallagnol e companhia anula o processo. Essa tentativa de criar dois tempos é o modo de salvar um processo.
Basta um processo para tornar Lula inelegível.
Essa tão flagrante tentativa de conluio que já se considera, e é a leitura que faço, inexorável a anulação de mais de um processo. Esse da juíza Hardt pode tornar Lula impedido de exercer seus direitos políticos. Por isso é um golpe antijurídico em marcha.
DCM: O ministro Lewandowski levantou o sigilo de 50 páginas de diálogos de procuradores e do ex-juiz na Operação Spoofing. Na sua análise, eles apenas ampliam o que sabíamos sobre a parcialidade de Moro com Lula ou a subversão do Direito é mais profunda considerando o tratamento com outros réus para acordos de leniência?
LS: Já sabíamos, em essência, tudo o que apareceu. Essa Operação Spoofing, operação intrusão, podemos chamar assim, revela mais fortemente algumas coisas. O Glenn [Greenwald, ex-Intercept] não revela algumas coisas que estão nela. O importante é que o conjunto da obra é que todos nós sabemos o que se passava nesse sistema, ainda mais do que antes.
Por isso eu tenho ressaltado, como está no livro do John Cotzee, Prêmio Nobel da África do Sul que escreveu “À Espera dos Bárbaros”, um juiz personagem descobre que estão torturando num forte onde ele está quando ia se aposentar. Ele, que era um sujeito tranquilo, não sabia de nada, tem agora um dilema: O que fazer?
O que fazer quando se sabe o que se sabe?
Eis o dilema brasileiro. O que fazer agora que todos nós sabemos que Moro foi parcial, que houve conluio? O que fazer quando se sabe o que se sabe? Eis a questão.
DCM: Na sua análise, por que outros magistrados e procuradores foram contaminados pelo punitivismo que observamos por parte da Operação Lava Jato e de Moro?
LS: Há um imaginário jurídico que se forjou no Brasil. Isso é um longo processo. Começa pela criminalização da política por um moralismo, tipo velho udenismo. Esse moralismo, dessa vez, veio de dentro do Judiciário e do Ministério Público. Uma espécie de “tenentismo jurídico”. Um tenentismo de toga ou algo assim que acaba pensando que o voto não é suficiente, que o voto é ruim e que somente o Judiciário e o Ministério Público podem “limpar a sociedade”.
Com isso, as garantias processuais atrapalham. A Constituição atrapalha. O messiânico faz as coisas diretamente. O populista faz as coisas diretamente. Não tem intermediações. Durante as duas últimas décadas, tenho escrito muito sobre isso, o Brasil formou uma legião de estudantes de Direito reacionários.
As faculdades de Direito nunca formaram tantos reacionários e tantos fascistas.
O resultado é a formação de um pensamento De um paradigma, de um conjunto de ideias que vai contaminando. É como um nevoeiro que vai tapando uma cidade. Assim é esse pensamento messianista. Pensamento que enfraquece o processo. Em suma, se criou o pensamento no Brasil que o processo é instrumento, que o Direito é uma questão de fim. Eis o erro. Direito é uma questão de meio. Nesse imaginário, o processo atrapalha, por isso existem as figuras de Moro, Deltan e as figuras que representam esse populismo jurídico.
DCM: Esse punitivismo presente em outros magistrados permite que a gente tema o surgimento de “outros Moros”, como é o caso do juiz Bretas?
LS: A resposta dessa pergunta depende muito. Depende muito da formação de ideias. Depende da reação do Supremo. Se o STF declarar nulos os processos e reconhecer que Moro foi parcial, for duro nessa questão, a gente tem chance de estancar essa sangria. O Supremo Tribunal Federal tem a possibilidade de dizer que tudo o que aconteceu foi nulo. Rito nenhum pode acontecer assim. Se fizerem isso, a gente tem a chance de estancar o surgimento desse ovo da serpente, o Supremo pode deschocá-lo.
Se o Supremo não considerar Moro parcial, o futuro proporcionará o surgimento de novos Moros, Deltans e etc. Será uma multiplicação. Por isso o STF é tão importante para dar o recado para as faculdades. As faculdades de Direito andam muito mal nesse sentido, ensinando, ao invés do Direito, uma péssima teoria política do poder. Isso não pode ser assim. Eis ai a grande questão.
DCM: Em outro artigo no ConJur, o senhor e o jurista Pedro Serrano fizeram uma comparação da obra literária de Albert Camus, A Queda, e a distorção de fatos no Direito. Estamos vivendo tempos do “absurdo” nos meios jurídicos?
LS: Ali nós estávamos exatamente falando sobre o perigo da desmemorialização das lutas e das críticas que se fazem na área jurídica como, por exemplo, a Lava Jato. No Brasil se pensa que críticas feitas por advogados, professores em sites, acabam sendo comprometidas. E que, quando sai uma pesquisa, científica, de alguma universidade, ai as pessoas acreditam. Efetivamente aconteceu isso.
O que eu e o Pedro tentamos dizer é uma espécie de manifesto. Estamos dizendo: Olha, desde 2015, nós estamos dizendo o que estão afirmando hoje. Portanto, não vamos deixar que Pedro, eu e tantos lutadores percam a narrativa. Nós chegamos antes, concordamos com as pesquisas, cumprimentamos os livros que saem agora, porém nós queremos afirmar que apontamos antes. Vimos o corpo cair. Nós sabemos de quem é o corpo que caiu. Não nos tirem o mérito de ter visto isso antes.
Não vamos disputar narrativas, mas não tirem esse mérito. Mérito de quem deu a cara a tapa no escândalo que foi essa Operação Lava Jato. Com todas essas mensagens, agora sabemos o que está ai. De todo modo eu cumprimento a todos que escrevem sobre isso, mas nós chegamos antes.
DCM: O senhor acredita que novos diálogos da Operação Spoofing, que reafirmem tudo o que está sendo evidenciado, levaram ao julgamento da parcialidade do juiz Moro no STF?
LS: O que está ai já o suficiente. O rei já está nu. Novas revelações deixará mais claro. A grande questão, quando já está provado, não tem mais muito algo a dizer. Como diz o Bill Gates, que é um homem muito rico, que doa bastante seu dinheiro, não existe vinho melhor do que outro melhor. Existem provas melhores do que as que ai estão.
Mas, no Brasil, nesse caso, sempre tem que se aproximar o máximo para se evitar o drible nas provas. É isso que eu gostaria de dizer sobre tudo o que está acontecendo.
Todas essas revelações deveriam sensibilizar o estudante de Direito.
Entrevista publicado originalmente no DCM.
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