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Presunção de inocência não mais orienta operadores do Direito, adverte ministro Sebastião Reis

Presunção de inocência não mais orienta operadores do Direito, adverte ministro Sebastião Reis

Ministro do STJ elenca reflexões necessárias às Cortes Superiores, parquet e advocacia.

A presunção de inocência não mais orienta boa parte de nossos doutrinadores, julgadores e legisladores, que preferem sempre a opção de se acelerar a punição, encurtando o processo, mesmo que sem culpa formada de modo definitivo.” A dura realidade é apontada por ninguém menos que o ministro Sebastião Reis Jr., integrante da 6ª turma do STJ, responsável por julgamentos de matéria Penal.

Com olhar vigilante, S. Exa. constata que operadores do Direito chegaram à conclusão de ser preferível, atualmente, “pecar punindo errado ou em excesso a se evitar a punição injusta ou desarrazoada”. 

Em texto exclusivo para Migalhas, ministro Sebastião – carinhosamente conhecido na comunidade jurídica como ministro Sebá –, lembra a recente onda punitivista que dominou manifestações populares, imprensa e parte significativa da doutrina e da jurisprudência nos últimos tempos. E ponderou: “Incomoda-me o fato de que não vi, naqueles que são mais incisivos nas críticas à pouca efetividade da pena, soluções que visassem à melhoria também do sistema penal como um todo, sem necessariamente possuir um viés punitivo.

Aliás, recentemente, em participação em webinar promovido por Migalhas, ministro Sebastião alertou justamente para a necessidade de propostas preventivas no âmbito Penal: “Só tenho visto nos últimos anos medidas de repressão: aumento de pena, novos tipos de crime, dificuldade na progressão.”

É a partir deste cenário que S. Exa. discorre acerca do tempo do processo penal, clama os julgadores por um mea culpa e elenca reflexões necessárias às Cortes Superiores, parquet e advocacia na seara criminal. Leia abaixo o texto na íntegra.

O tempo do processo penal 

Por Sebastião Reis Jr.

Recentemente, antes do surgimento da crise causada pela Covid-19, vi inúmeras manifestações populares, na imprensa e em parte significativa da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que há necessidade de se tornar a condenação penal mais efetiva (leia-se mais rápida) como meio de se combater a criminalidade.

Há críticas severas quanto à ineficiência do processo penal, que ou deixa de punir ou impõe sanção desproporcional ao crime a ser punido; ou, ainda, impõe uma pena que, por razões diversas, não se efetiva. A leniência penal seria, para muitos, o maior incentivo ao recente crescimento da criminalidade no Brasil.

Em resposta a esses reclamos, nos últimos tempos (para não dizer anos), várias propostas surgiram no sentido de tornar o cumprimento da pena mais rápido e, consequentemente, no entendimento de muitos, o combate à criminalidade também mais efetivo.

O interessante é que, em sua grande maioria, as propostas possuem um viés punitivo. As sugestões vão da criação de novos tipos penais, passando pelo aumento do quanto da pena bem como do tempo do seu efetivo cumprimento e pela sua execução imediata após o esgotamento das vias ordinárias, e chegando, no fim, a obstáculos à progressão no seu cumprimento.

Incomoda-me o fato de que não vi, naqueles que são mais incisivos nas críticas à pouca efetividade da pena, soluções que visassem à melhoria também do sistema penal como um todo, sem necessariamente possuir um viés punitivo. Parece-me lógico que se tivermos um sistema devidamente estruturado, com uma Polícia, um Ministério Público e um Judiciário satisfatoriamente equipados, tanto no sentido material como no sentido instrumental e humano, a pena imposta será não só cumprida, mas cumprida em um tempo razoável, satisfatório.

A presunção de inocência não mais orienta boa parte de nossos doutrinadores, julgadores e legisladores, que preferem sempre a opção de se acelerar a punição, encurtando o processo, mesmo que sem culpa formada de modo definitivo. É preferível, hoje em dia, pecar punindo errado ou em excesso a se evitar a punição injusta ou desarrazoada.

Daí, inclusive, para mim, a obsessão em se antecipar o cumprimento da pena para o momento em que se esgotam as vias ordinárias, mesmo tendo números que demonstram que cerca de 1/4 dos habeas corpus que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (no ano passado foram mais de 70.000) tem a ordem concedida, seja para absolver (menos casos, é verdade), anular processos ou – e aí em um número bem considerável – modificar a dosimetria da pena e o regime de seu cumprimento.

Ou seja, essa tão desejada antecipação do cumprimento de pena pode obrigar alguns milhares de condenados ou a cumprirem uma pena indevida ou a cumprirem em regime não adequado. Lembro, só, que tal situação é irremediável e não há como se recuperar nem um dia apenas sem liberdade plena.

A meu ver, não são as medidas repressivas que tornarão o processo penal mais efetivo no “combate à criminalidade”. Recentes experiências, no sentido de se endurecer a questão penal, não deram qualquer resultado concreto.

Por exemplo: a nova Lei de Drogas, com o aumento da pena para os crimes ali previstos, não diminuiu o tráfico; tornar qualificado o homicídio em que a vítima é a mulher, quando cometido em razão desta condição, também não diminuiu a quantidade de feminicídios, pelo contrário; e as regras mais rígidas para os crimes hediondos também não diminuíram a sua ocorrência.

O processo penal hoje é, em regra, lento? Sim, é. Existem muitos incidentes que criam dificuldades ao seu andamento célere? Sim. No entanto, a solução para a sua efetividade, no meu singelo entender, não passa pelo aumento da repressão. Pelo contrário.

Para o processo ser efetivo, a pena há de ser aplicada e cumprida e isso em um prazo razoável, aceitável.

Na verdade, o questionamento hoje se deve, na maioria das vezes, não ao não cumprimento da pena, mas, sim, à demora para que o processo chegue a um momento em que a pena deverá ser cumprida.

A antecipação do cumprimento para o momento em que há o esgotamento das vias ordinárias não é nada mais nada menos do que a insatisfação com a demora do processo. Infelizmente, criou-se a ideia de que os Tribunais Superiores são verdadeiros cemitérios de processos, o que não condiz com a verdade.

No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, mais de 60% dos processos que lá chegam transitam em julgado em até um ano e raríssimos são aqueles cuja duração chega a três anos. No Supremo Tribunal Federal os números são até melhores: 77% transitam em julgado em até um ano e pouco mais de 5% chegam até três anos.

Hoje em dia, acrescento ainda, não vejo prescrição ser declarada no dia a dia dos Tribunais Superiores. Quando isso ocorre, na maioria das vezes, minha experiência mostra que ela decorre da modificação (redução), pelo tribunal, da pena fixada nas vias ordinárias, modificação essa que dá causa à prescrição.

E é aqui que chamo a atenção para o pouco cuidado com o devido aparelhamento de todos aqueles que atuam no processo penal. Essa, talvez, seja a solução mais simples e menos traumática.

Vale a pena citar, aqui, a situação do Júri. Quase 90% dos casos de homicídio não são desvendados. E aí pergunto se será o aumento do quanto da pena possível de ser cumprida ou mesmo a possibilidade de seu cumprimento se iniciar após a sentença de primeira instância, ou após o esgotamento das instâncias ordinárias, que tornará o Estado mais eficiente na punição do crime de homicídio?

Não é preferível se aparelhar a Polícia para que investigue a contento os casos de homicídio e a Justiça para que os julgue com a celeridade necessária antes mesmo de se discutir se a condenação deve ser cumprida de imediato ou após o esgotamento das vias ordinárias ou após o seu trânsito em definitivo?

De que adianta se alterar a lei para permitir o cumprimento de até 40 anos de prisão se não é factível, na maioria das vezes, encontrar-se o possível responsável pelo crime?

Isso sem contar que estudos recentes mostram que, em São Paulo, um processo do Tribunal do Júri demora, em média, mais de doze anos. No Brasil, como um todo, processos já encerrados, entre os anos de 2015 e 2018, duraram, em média, seis anos e oito meses; e aqueles em andamento estão durando, em média, seis anos e um mês.

Seria necessário realmente discutirmos a antecipação do cumprimento da pena se esses processos durassem, por exemplo, o que duram, em média, no Paraná – dois anos e nove meses?

Será que essa efetividade que se procura não passa, primeiro, pelo aparelhamento da Polícia? Por uma maior agilidade da Justiça, agilidade essa que depende, não só da legislação, mas da sua estruturação humana e material?

Quando se discute, no Superior Tribunal de Justiça, o excesso de prazo é comum nos depararmos com situações nas quais se verifica que as dificuldades para o processo caminhar em um ritmo aceitável decorrem, via de regra, não, como se costuma dizer, de ações – ou omissões – dos advogados de defesa, mas, sim, da própria falta de estrutura do Estado-Juiz: nulidades declaradas pelos Tribunais Superiores (HC n. 528.685, da minha relatoria); demora na apreciação de recursos (HC n. 543.569 e HC  n. 531.719, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro); indefinição do juízo competente e até ausência de denúncia (HC n. 537.062, Min. Rogerio Schietti Cruz) e demora na instrução (HC n. 449.633, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, e RHC n. 70.366, Rel. Min. Ribeiro Dantas).

Há casos, inclusive, em que inquéritos ou foram trancados, tendo em vista o prazo excessivo de sua duração (HCs n. 480.079 e 482.141, ambos da minha relatoria), ou tiveram pelo Superior Tribunal de Justiça prazos fixados para o seu término (HC n. 444.293, Rel. Min. Ribeiro Dantas, e RHC n. 91.389, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca). 

Aqui, cabe-me fazer uma penitência. No meu dia a dia, tenho endossado a jurisprudência que, infelizmente, tem atuado para compensar a ineficiência do Estado-Juiz.

A norma processual penal estabelece prazos a serem obedecidos. Hoje, raro é o processo que obedece a esses prazos. Réus frequentemente permanecem presos enquanto duram processos que extrapolam em muito os prazos legais. E a jurisprudência diante dessa situação é unânime em afirmar que a configuração de excesso de prazo não decorre da soma aritmética de prazos legais, que deve ser aferido segundo os critérios de razoabilidade, tendo em vista as peculiaridades de cada caso.

Ou seja, a jurisprudência – e aqui reconheço que também assim decido – supera a falta de estrutura do Judiciário para cumprir os prazos legais e, de uma certa forma, desestimula que esse tipo de problema seja solucionado, já que não há mais qualquer consequência para o desrespeito ao prazo legal.

Em defesa do Tribunal, não posso deixar de ressaltar que tal entendimento surgiu em razão de nossa realidade. Cientes estamos de que a nossa Justiça não está preparada para suportar a carga de processos que lhe é submetida.

E, aqui, fazendo um parênteses, observo que pode ocorrer o mesmo com o tão defendido alongamento dos prazos prescricionais. Sem o risco de uma possível pena ser fulminada pela prescrição não haverá mais a preocupação do Juiz da causa em julgar com celeridade. Eventual demora não trará consequências reais para o processo.

Diante desse quadro, no qual é clara a ausência de estrutura de todos aqueles que contribuem para a ação penal, no sentido de enfrentar a carga de investigações e processos que surgem a cada dia que passa, pergunto porque, então, corrermos o risco de encarcerar um inocente ou mesmo um culpado, mas em um regime que não corresponde à pena justa e correta? Não seria melhor lutar para que processos não demorassem anos e anos, evitando que estes demorassem em razão do acúmulo de perícias pendentes; em razão da dificuldade de se levar um preso para estar fisicamente presente quando da instrução do seu processo; ou mesmo, simplesmente, em razão da demora no cumprimento de precatórias? Não é mais prático e óbvio solucionar tais problemas mundanos?

Por que discutirmos a diminuição de recursos (como, por exemplo, o fim dos embargos previstos no art. 609 do CPP), o que aumentaria, evidentemente, o risco de uma condenação injusta, em lugar de discutirmos o aumento do número de juízes?

Por que discutirmos, como já proposto, a aceitação de provas ilícitas em lugar de discutirmos o aparelhamento da Polícia, material e humano, e uma maior efetividade no controle de sua atuação tanto pelo Ministério Público como pela Justiça, de modo a garantir que as provas sejam obtidas de forma lícita?

Será que não é o momento de os próprios juízes fazerem um mea culpa e pararem de oferecer resistência à aceitação da jurisprudência fixada pelos tribunais competentes para tanto (STF e STJ), dando causa, assim, à interposição de inúmeros recursos que impedem a solução rápida dos processos?

Será que não é hora de o próprio Superior Tribunal de Justiça aprimorar seu sistema de julgamento, de modo a rapidamente identificar aquelas teses que ou recebem tratamento diferenciado em suas duas Turmas competentes para o direito penal ou possam indicar um futuro acréscimo no número de processos a serem encaminhados, solucionando os conflitos mais rapidamente e já firmando seu entendimento em teses controversas nas instâncias ordinárias?

Será que não é hora de o próprio Supremo Tribunal Federal dar prioridade em seus julgamentos às repercussões gerais em matéria penal e àqueles casos nos quais é notória a divergência de posicionamento entre as suas duas Turmas (se, por exemplo, o termo inicial da prescrição é a data do trânsito em julgado para a defesa ou para as duas partes, ou se condenações anteriores ao período depurador podem ser consideradas para justificar o acréscimo da pena por maus antecedentes)?

Será que não é hora de os juízes e o Ministério Público darem atenção ao art. 319 do Código de Processo Penal e começarem a se utilizar efetivamente da possibilidade de se substituir a prisão por outras cautelares?

Será que não é hora de a própria advocacia se aprimorar treinando seus integrantes, de modo que usem os instrumentos processuais de forma objetiva, sem abusos ou excessos, parando de, por exemplo, interpor habeas corpus manifestamente inadmissíveis ou interpor recursos fadados ao insucesso?

Em suma, vejo a discussão quanto à necessidade de se tornar mais célere e efetivo o processo penal centrada quase exclusivamente nas propostas repressivas. Não há, salvo raras exceções (e aqui cito como exemplo as propostas apresentadas recentemente por grupo de trabalho criado no âmbito do CNJ e presidido pelo Min. Rogerio Schietti Cruz para otimizar o julgamento de competência do Tribunal do Júri, bem como a recente Lei n. 13.964/2019, que permite o acordo de não persecução penal), propostas concretas que visem ao aprimoramento da estrutura estatal responsável pela condução da investigação e do processo penal que possam, sem piorar a situação do acusado, tornar o processo penal mais célere, mais efetivo.

Temos que encarar a efetividade penal por um outro enfoque que não aquele que defende que o processo só é efetivo quando rapidamente condena e prende.

Artigo publicado originalmente no Migalhas.

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