Recentíssima decisão da 2ª Turma do STF acaba de proclamar a impossibilidade de se aplicar o in dubio pro societate na fase da pronúncia (ARE 1.067.392, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 2/7/2020). O tema, obviamente, não é virgem na doutrina e muito menos nos tribunais, mas merece ser revisitado em razão da verdadeira quebra de paradigma que o novo acórdão apresenta.
Sérgio Pitombo, em artigo publicado há mais de 20 anos no Boletim dos Procuradores da República (janeiro de 2000) e republicado por seu filho, o advogado Antonio Pitombo, na coletânea “Obra em Processo Penal” (São Paulo: Singular, 2018, p. 427), com a dupla autoridade de juiz e grande professor que foi, já advertia para o fato de que em “tema de direito probatório, afirmar-se: ‘na dúvida em favor da sociedade’ consiste em absurdo lógico-jurídico” (p. 431). Dizia ele com seu português peculiar: “Ainda porque não provou o alegado, em face do acusado, deve decidir-se, contra o último”.
É farta e muito conhecida a jurisprudência segundo a qual na fase da pronúncia, “havendo dúvida, resolve-se a mesma pelo princípio do in dubio pro societate“ (STJ, 6ª T., REsp. n. 152.988, rel. Min. Anselmo Santiago, DJ 18/12/1998, idem na 5ª T., AgRg no AREsp n. 1.452.839, rel. Min. Ribeiro Dantas) ou, como preferiu o ministro Edson Fachin no seu voto vencido no “a aplicação do brocardo in dubio pro societate pautada nesse juízo de probabilidade da autoria destina-se, em última análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao tribunal do júri” (ARE 1.067.392).
Como se vê, no procedimento bifásico do júri pronuncia-se porque a prova equívoca não favorece o réu nessa fase e também para se preservar a competência do seu juiz natural, o júri. Ambas as premissas foram rebatidas no acórdão solidamente fundamentado pelo ministro Gilmar Mendes.
O julgado comentado aponta a “lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto ‘princípio in dubio pro societate’, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova”. Mais: “Desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia”.
Não por acaso, Guilherme de Souza Nucci, com carradas de razão, há mais de dez anos alerta:
“É preciso cessar, de uma vez por todas, ao menos em nome do Estado democrático de Direito, a atuação jurisdicional frágil e insensível que prefere pronunciar o acusado, sem provas firmes e livre de risco. Alguns magistrados, valendo-se do criativo brocardo in dúbio pro societate (na dúvida, decide-se em favor da sociedade), remetem à apreciação do tribunal do júri as mais infundadas causas — aquelas que, fosse ele o julgador, certamente, terminaria por absolver. Ora, se o processo somente comporta a absolvição do réu, imaginando-se ser o juiz togado o competente para apreciação do mérito, por que o jurado poderia condenar?”. (Tribunal do júri. São Paulo: RT, 2008, p. 61/62).
Em outro trabalho, o mesmo Nucci, que durante anos presidiu o tribunal do júri de Santo Amaro, em São Paulo, e hoje atua na seção criminal do TJ-SP, discorrendo sobre a soberania constitucional do tribunal do júri e a possibilidade de impronúncia ou absolvição sumária pontua que “Não há qualquer afetação à soberania dos veredictos, pois já se disse anteriormente que soberania, de fato, não é sinônimo de onipotência, nem de puro arbítrio” (Júri, princípios constitucionais, São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 94/95). Ensina ele que “o controle judiciário deveria ser exercido com firmeza nessa fase. Se existem provas suficientes para condenar, o juiz envia o caso ao júri. Não havendo provas mínimas para sustentar uma condenação, por que mandar o réu a julgamento pelo tribunal popular? Somente para, em caráter formal, cumprir os pretensos ‘mandamentos constitucionais’ (soberania dos veredictos e competência para apreciar os crimes dolosos contra a vida)? … O que não pode acontecer é, a pretexto de garantir a supremacia do veredicto popular, o juiz togado pronunciar qualquer caso, mesmo com indícios mínimos de autoria para, depois, o tribunal togado (em apelação ou revisão) contrariar eventual condenação dos jurados”.
E Aury Lopes Jr. processualista que, além da cátedra, exerce a advocacia, sensível ao drama de que pronunciar burocraticamente os réus desconsidera “o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário” (Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1012). É certo, como assevera o mestre gaúcho, que a pronúncia não é “o momento para realização de juízos de certeza ou pleno convencimento” (p. 1009), contudo, como pontuou o ministro Gilmar Mendes no voto condutor do ARE 1.067.392 a partir de uma perspectiva cognitivista, “a submissão de um acusado ao julgamento pelo tribunal do júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias”.
Numa palavra, na dicção do acórdão: “Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (artigo 5º, LVII, CF), convencionais (artigo 8.2, CADH) e legais (artigos 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro”.
Deve, pois, ser combatido o que o saudoso Hermínio Marques Porto chamava de “gigantismo absorvedor” da instituição do júri e conceber-se a garantia em prol do acusado e não contra si. Para chegar ao júri, como anota Nucci com precisão: “É preciso a filtragem da magistratura togada. (…) Dizer de um lado que a prova na polícia não presta para a condenação, mas serve para a pronúncia, é ingressar num patente contra-senso. E o Judiciário deve evitar decisões contraditórias, justamente para, depois, não cometer um erro judiciário e ser obrigado a arranhar, seriamente, a soberania do tribunal do júri”. (“Júri — princípios constitucionais”, ob. cit. p. 95/96).
Nessa linha de pensamento, colocam-se as sábias palavras do ministro Celso de Mello no julgamento do referido ARE:
“Em uma palavra: se o juiz se convencer de que há prova inquestionável em torno da materialidade do fato delituoso e de que existem indícios suficientes de autoria ou de participação, legitimar-se-á, então, nessa hipótese, a decisão de pronúncia, cujo efeito processual imediato consistirá em submeter o réu pronunciado a julgamento perante o Conselho de Sentença.
Se, no entanto, for insuficiente a prova penal produzida pelo Ministério Público quanto à autoria e/ou à participação do acusado, impor-se-á a prolação de sentença de impronúncia, eis que, no modelo constitucional do processo penal de perfil democrático, revelar-se-á incompatível com o texto da Carta Política a utilização da fórmula autoritária do in dubio pro societate“.
Aliás, a Sexta Turma do STJ, em acórdão unânime relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, há muito dizia:
“A acusação, no seio do Estado Democrático de Direito, deve ser edificada em base sólidas, corporificando a justa causa, sendo abominável a concepção de um chamado princípio in dubio pro societate“. (HC n. 84.579, DJe 31/5/2010).
Para concluir como começamos, só resta dizer com o sempre lembrado mestre Sérgio Pitombo: a máxima in dubio pro societate é enganosa. “Até os que aceitam a ideia de dúvida não suportariam o rifão in dubio pro societate, posto que contrário a qualquer sistema probatório” (p. 441).
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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