O debate em torno da PEC 5, que altera a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, leva à reflexão sobre o perigo de medidas autoritárias e de cerceamento a instituições e princípios basilares à democracia.
Já vimos isso no passado recente quando, na esteira da Lava Jato, a operação nascida com ares redentores para o país, um pacote de ações foi desenhado para endurecer a punição aos corruptos.
Batizada de Dez Medidas de Combate à Corrupção, capitaneada pelo Ministério Público Federal (MPF), a campanha ganhou forte apoio popular. Como nada é absoluto, sobretudo quando se fala em legislação, a iniciativa ganhou opositores, como a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e mais uma extensa lista de juristas conhecidos por seu viés garantista.
Para eles, ao mirar o colarinho branco, o pacote feria direitos fundamentais. Hoje, seis anos depois, o curso da história mostra que a pedra lançada para atingir corruptos poderia atingir em cheio o telhado de seus próprios idealizadores. Uma das propostas, por exemplo, admitia a chamada prova ilícita, tais como escutas clandestinas, pela acusação. É mais ou menos o que fizeram os hackers que violaram mensagens dos procuradores da República, que hoje usam a ilicitude da prova como defesa.
Nada como um dia após o outro e todo esse roteiro traz à memória uma certa tarde no Centro de Curitiba. O ano era 2016 e havia um misto de ansiedade e expectativa no grupo de defensores públicos do Rio que chegava ao Edifício Patriarca, espécie de QG da Lava Jato.
Na agenda, o esperado encontro com um dos líderes da operação e símbolo, à época, do combate à corrupção no Brasil: o procurador da República Deltan Dallagnol, que acaba de abandonar a carreira.
Um prédio comercial de fachada modesta em nada parecia ser o centro da operação que abalava as estruturas do mundo político e empresarial brasileiro, onde se reuniam membros do MPF, Receita Federal, Polícia Federal e outros órgãos que auxiliavam na obtenção e análise de documentos e provas que prometiam passar o Brasil a limpo.
Pouco tempo de espera separou os defensores públicos de um afável procurador. O temor inicial de qualquer mal-estar ocasionado pelo questionamento sobre pontos controversos do pacote foi logo desfeito. Ao contrário, foi sinalizada uma real gratidão pela disposição do grupo em debater o projeto das “Dez medidas de combate à corrupção”.
Durante o city tour pelas salas do prédio que já era considerado um dos pontos turísticos do roteiro lavajatista em Curitiba, aquele grupo garantista era apresentado a todos os servidores públicos, nas diversas salas daquele andar inteiro dedicado a encontrar medidas punitivas à corrupção, como os “defensores do Rio que vieram falar das dez medidas”. Pacientemente, Dallagnol explicava a função de cada setor.
Acostumados a lidar com instalações modestas reservadas à Defensoria Pública, era visível o impacto de toda aquela estrutura entre os defensores. Punir, afinal, andava muito mais em alta do que defender. Encerrado o périplo, foi a vez de conhecer a sala onde, nas palavras do anfitrião, muitos acordos de delação premiada haviam sido firmados.
Aquele encontro, inesperado para a maioria do grupo de defensores, talvez fosse o ápice da campanha lançada alguns meses antes para fazer um contraponto ao tal projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção.
O forte apelo midiático assustava aqueles que viviam o cotidiano das varas criminais estaduais, por onde raramente passam milionários de colarinho branco mas, sim, criminosos comuns, sobretudo pretos, pobres e favelados.
Havia alguns meses que cerca de 15 defensores públicos do Rio – com apoio da administração da Instituição – debruçaram-se sobre a proposta de alteração legislativa. O ambiente político no Brasil estava tenso em razão da tramitação do processo de impeachment da presidenta Dilma e, a cada semana, uma nova ação da Lava Jato era deflagrada, atingindo figuras importantes da política nacional e do empresariado.
Surfando na euforia da população, que acreditava naqueles jovens procuradores da República que pareciam inverter a lógica do sistema de justiça criminal de atingir apenas o andar de baixo, a campanha das “Dez medidas”, muito bem executada por profissionais de comunicação, parecia algo que fazia total sentido e quem a ela fosse contrário era defenestrado como favorável à corrupção histórica no Brasil.
O tamanho da campanha do MPF crescia a cada operação e a cada nova adesão, seja de membros do Judiciário, Ministério Público e até advogados e defensores públicos, seja de artistas, jornalistas e de movimentos sociais.
Um enorme trabalho de coleta de assinaturas, que envolvia voluntários, entidades religiosas e organizações da sociedade civil, foi construído para que o projeto fosse apresentado como de iniciativa popular, com apoio suficiente para pressionar os parlamentares já acuados pelas semanas de operações que transformaram em celebridade o até então desconhecido “japonês da Federal”.
Porém, para quem tinha muitos anos de atuação na defesa criminal pública, como aquele grupo de defensores recebidos no QG de Curitiba, havia um incômodo no ar com o clima de unanimidade e ausência de debate público para tantas propostas que alteravam profundamente o sistema recursal, o habeas corpus, aumentava pena, restringia a aplicação de medidas alternativas, tudo, enfim, com o que lidavam no cotidiano das varas criminais.
Esse incômodo também era gerado pela interdição do contraditório, já que o discurso era de que não bastavam as espetaculares operações matinais da Lava Jato, pois o fim da corrupção, algo desejado pela população cansada de tantas notícias de desvios de recursos públicos, só seria alcançado com mudanças nas leis.
Só que o olhar da defesa pública criminal, majoritariamente exercida no Brasil por defensores públicos, servidores estáveis aprovados em concurso, permitia enxergar que o conjunto de mudanças – as dez medidas, na verdade, passavam de cem – atingiria não a elite empresarial e política supostamente corrupta, mas sim a clientela preferencial do sistema de justiça criminal estadual: aqueles negros, jovens e pobres moradores de favelas que abarrotam as cadeias e são réus na maior parte dos processos criminais da Justiça estadual.
Esse grupo de defensores públicos voluntários introduziu o debate sobre o risco da exacerbação do punitivismo, valendo-se também de estratégias de comunicação para que a mensagem chegasse à população sem o formalismo dos debates jurídicos.
Como a campanha avassaladora liderada por Dallagnol utilizava-se fortemente de ferramentas de marketing e comunicação muito bem construídas, buscamos o auxílio de profissionais voluntários da área para que fizéssemos o necessário contraponto. E nasceu, então, a campanha “Dez medidas em xeque: pelo fim da corrupção sem perda de direitos”.
Na época do lançamento da campanha pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em setembro de 2016, as “Dez medidas” gestadas pelo MPF já haviam sido entregues em cerimônia com ampla cobertura da imprensa ao Congresso Nacional, com mais de 2 milhões de assinaturas, em 26 de março daquele ano. Estávamos, portanto, com um “déficit” temporal.
A Lava Jato vivia seu auge, pois a campanha vinha sido muito bem conduzida. Disputar narrativa neste cenário foi talvez dos maiores desafios já enfrentados pela Defensoria Pública.
Para abrir brecha num espaço de debate interditado, foi necessária muita estratégia. Afinal, o tempo era curto para “levar a palavra” aos não convertidos. Uma série de ações foi desencadeada, a começar pelo lançamento de uma análise crítica do projeto apenas naquilo que atingia os usuários da Defensoria, afinal, havia uma série de propostas que diziam respeito a crimes financeiros e mecanismos de controle de atividades empresariais que ficavam fora da nossa atuação.
O lançamento da campanha “Dez medidas em xeque”, realizado na sede da Defensoria Pública, no Centro do Rio de Janeiro, contou com a presença de muitos professores de Direito, advogados, militantes de direitos humanos e estudantes. Num clima de catarse coletiva e desabafo, criou-se um espaço de críticas à Lava Jato, o que seria natural, mas, principalmente, de questionamentos coletivos a um projeto ambicioso do MPF de reduzir direitos de pessoas acusadas num processo criminal.
O advogado Técio Lins e Silva, primeiro defensor público geral do estado do Rio, desabafou, chamando de talibãs os autores de um projeto que mexia tanto no sistema processual e penal brasileiro. Professores com longa carreira acadêmica como Juarez Tavares, Afrânio Silva Jardim e Vitória Sulocki, em poucos minutos, escancaram o autoritarismo das “Dez medidas”, renovaram as forças da luta até então adormecida e chamaram a uma mobilização de quem busca um sistema menos punitivista.
Ali foi início de um movimento que resultou em um site com notícias, manifestações e análises críticas ao projeto, além da produção de vídeos didáticos sobre os impactos de tantas mudanças no sistema prisional brasileiro e, em última análise, na vida da população que mora nos locais mais pobres e que cotidianamente sofre com o braço forte do punitivismo seletivo.
Com o objetivo de aumentar a fresta da discussão pública, defensores foram convidados a dar palestras e a participar de debates jurídicos em universidades, ampliando as vozes que diziam que corrupção não se combate com perda de direitos.
Pelas andanças nos corredores do Congresso Nacional, via-se um ambiente muito difícil para uma visão crítica ao projeto de iniciativa popular, seja porque alguns parlamentares estavam genuinamente eufóricos com a perspectiva de um amplo projeto de lei consolidar vitórias da operação Lava Jato no combate à corrupção, seja porque parlamentares estavam acuados pela musculatura da Força tarefa e o apoio que angariava em alguns veículos de imprensa.
Esse era o ambiente sufocante no qual se tentava discutir um projeto de lei que alterava uma série de diplomas legais e reduzia substancialmente o direito de defesa.
De início, apenas veículos especializados em notícias jurídicas abriam espaço para campanha “Dez medidas em xeque”. Aos poucos, a receptividade aumentou e atingiu veículos de comunicação tradicionais que pareciam fechados a críticas à proposta do MPF. O Jornal O Globo realizou um debate, transmitido ao vivo pela internet e reproduzido no dia seguinte na versão impressa, entre dois defensores públicos e duas procuradoras da república. Foi um dos primeiros espaços relevantes para a contraposição a um projeto que, à época, parecia unanimidade no Brasil.
A sequência da história foi uma reviravolta inesperada no Congresso Nacional, talvez indicando a reação da classe política aos excessos da Força Tarefa, desidratando o projeto a ponto de o próprio MPF emitir nota contrária ao texto aprovado e a questão ser judicializada junto ao STF.
Passados três anos daquele encontro em Curitiba, as mensagens da Vaza Jato vieram a público e, desde então, as “Dez medidas”, sob o olhar de parte da opinião pública, passou de projeto que acabaria com a corrupção no Brasil a um instrumento autoritário de consolidação do poder de uma fração do sistema de justiça. Hoje, como se vê, mesmo seus autores, bem lá no fundo, devem agradecer ao parlamento por sua rejeição.
Artigo publicado originalmente no UOL.
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