Resumo: a) Existem no Supremo Tribunal Federal mais de 500 razões a favor da literalidade da presunção e b) STF não é porta voz do sentimento social
Dia 10 de abril está marcado o julgamento do século no Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um easy case que foi tornado, por aspectos morais e políticos, um hard case e, para o nosso sistema de garantias, um tragic case. Fui, com André Karam Trindade, quem elaborou a petição da ADC 44 (com a revisão de Juliano Breda). Como não poderei estar no STF nesse dia — estarei na Colômbia ministrando aulas — deixo aqui minhas contribuições ao presidente Felipe Santa Cruz e a quem fizer a sustentação no plenário.
Na ADC 44 sustentamos a clareza do texto do artigo 283 do CPP. Há que exaurir as instâncias e recursos para que o réu inicie o cumprimento da pena. Quer dizer: fora das hipóteses de prisão cautelar, não pode prender. Não pode antecipar pena.
Para que o leitor saiba bem do que se trata, deixemos que os textos falem. Textos importam, diz Müller. Para facilitar, oiçamos a voz dos textos:
Constituição da República | Código de Proceso Penal |
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Artigo 5º LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. |
Artigo 283 Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. |
Peço que os leitores comparem os três dispositivos. Somem os dois dispositivos constitucionais e vejam se o dispositivo do artigo 283 não encaixa como uma luva. Basta tirar um pedaço do artigo 283 e lê-lo: Ninguém poderá ser preso senão […] em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado […]. Comparem, agora, com os dois incisos do artigo 5º. E tirem suas conclusões.
A literalidade e o relativismo interpretativo
Interpretar não quer dizer atribuir qualquer sentido a um texto. Não está autorizado o vale-tudo hermenêutico. Ou abraçamos o relativismo. Interpretação tem limites.
Sendo mais claro, literalidade não é tudo… mas também não pode ser nada. Não esqueçamos que, se assim quisermos, podemos “brincar” com a “vontade do legislador”, claramente contra a prisão antecipada! Porque a redação do artigo 283 exsurgiu exatamente de uma decisão do STF que garantiu a presunção da inocência em sua plenitude. Exatamente assim. Não há sofisma para mostrar o contrário.
Veja-se a exposição de motivos constante no anteprojeto de lei que alterou a redação do dispositivo legal em 2011:
“O projeto sistematiza e atualiza o tratamento da prisão […]. Nessa linha, as principais alterações com a reforma projetada são […] impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”.
Aqui poderíamos parafrasear uma tese de Christian Baldus (introduzido e estudado no Brasil por Otavio Luiz Rodrigues Jr., quem melhor fala sobre a autonomia epistemológica de cada ramo do Direito) sobre o Verwerfungsargument, o argumento de rejeição que exsurge de uma interpretação histórica negativa: “[D]eterminado comando ou certa hipótese de incidência não são aceitáveis ou compreensíveis porque o legislador, se os desejasse, tê-los-ia incluído no texto de lei.” Simples assim.
Há, hoje, 6 votos a favor da presunção que consta na Constituição e no CPP. Havia 5 e agora há o voto do ministro Gilmar. Nesse sentido, a perspectiva de afirmação do texto é alvissareira. Retornemos à exposição de motivos grifada acima. Por um momento. Vejam: “impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”.
Feito isso, relida a exposição de motivos, sigo.
Não há grau zero de sentido para o intérprete, que interpreta o texto a partir do texto; não há grau zero de sentido para o texto, que se insere em meio a uma tradição de significados e ressignificados, de circunstâncias e contextos (com-textos).
Na linda analogia de Goethe, trata-se de recriar o que já foi criado. Trata-se de conferir ao texto seu significado. Seu significado correto. O significado que lá já estava.
O STF e a literalidade – milhares de eventos (afinal, textos são… eventos!)
Nesse sentido, ainda, diga-se: o próprio Supremo Tribunal também reconhece, em inúmeros momentos, que a literalidade, ou melhor, o respeito a esta, quando do momento da interpretação de textos legais, é necessária, enquanto padrão e fundamento decisório. Fiz uma pesquisa a respeito. Há quase 500 acórdãos, cuja maioria utiliza, seja a literalidade ou os limites semânticos normativos, enquanto parâmetros decisórios.
Os números vão além: mais de 1,8 mil decisões monocráticas no mesmo sentido, somadas a 33 decisões da presidência. A massiva maioria indicando a importância do respeito à autoridade do texto legal. Afinal, qual é o valor de um texto jurídico?
Tomemos como pequeno exemplo o caso em que o STF fixou que “[é] inconstitucional todo pronunciamento judicial ou administrativo que afaste, amplie ou reduza a literalidade do comando previsto no art. 100 do ADCT e, com base neste fundamento, assegure a qualquer agente público o exercício das funções relativas a cargo efetivo ou vitalício após ter completado setenta anos de idade.” (ADI 5.316 MC/DF) Tivéssemos um sistema de precedentes sério…
Para ilustrar melhor ainda: Há um voto do ministro Barroso na AP 565 (competência para cassar mandato), em que disse que, embora não acreditasse que esta fosse uma boa decisão, o que vale é o que diz a Constituição: “[…] Mas a Constituição diz o contrário. O dia que a Constituição for o que os intérpretes quiserem independentemente do texto, nós vamos cair numa situação muito perigosa”. A decisão seguiu — e isso foi dito pelo próprio ministro — a “letra da Constituição”. Nada mais tenho a acrescentar. E nem é necessário.
Literalidade: algumas palavras sobre uma palavra
Como diz Friedrich Müller, die Texten können zurück schlagen (os textos podem revidar!). Este meu texto fala sobre a autoridade de um texto; fala sobre a relação entre literalidade e respeito ao texto-enquanto-texto. Isso exige algumas explicações, porque pode trazer problemas; problemas que só existem porque há coisas que ainda não parecem ter sido compreendidas por uma dogmática que insiste em ficar presa a seus dogmas.
Vamos lá: eu digo que o texto tem autoridade; que essa autoridade impõe limites ao intérprete, e que o intérprete tem a responsabilidade de respeitar os limites que a tradição e a autoridade do texto impõem. E quando digo isso, é comum que digam: “Positivista!”
Quem diz isso ainda não entendeu o que é positivismo. O positivismo, afinal, não se preocupa com a decisão; confundir positivismo com legalidade é ter em mente o exegetismo francês do século XIX. Sugiro a leitura deste texto: Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? E o verbete de meu Dicionário.
A outra objeção que se faz é a seguinte: “Streck é um textualista! Fala em Dworkin mas é um Scalia!” Não, não sou. Sou, sim, um hermeneuta. Sou, provavelmente, uma das últimas pessoas no mundo que diria que um texto é, por si só, suficiente e responsável por antecipar hipóteses de aplicação, respostas, sentidos. A interpretação é um processo construtivo. Respeitar a tradição é renová-la no tempo.
O texto não é tudo…, mas disso não se segue que o texto seja nada. Com Gadamer, repito, digo que, sobre um texto, só pode dizer algo aquele que, antes, deixa que o texto lhe diga alguma coisa. Hermenêutica é isso: não é objetivismo nem subjetivismo.
While we’re at it… Colegialidade: (mais) algumas palavras sobre (mais) uma palavra.
Por precaução, sugiro, que na sustentação, seja levantada esta retranca. Explico. Todos lembram que, quando do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, a ministra Rosa Weber invocou o “princípio” [sic] da colegialidade. Foi em nome desse princípio-que-não-é-princípio que Rosa Weber disse seguir o entendimento em favor da prisão em segunda instância. O voto está aqui.
Já falei sobre isso em vários textos. Hoje, o que quero mesmo dizer é que a colegialidade, ainda que princípio autêntico fosse — não é, mas concedo para fins de mera argumentação —, não pode entrar na jogada agora; não pode entrar na jogada pelos próprios termos que a colegialidade pressupõe.
Porque vejam: ao invocar a colegialidade, Rosa Weber disse que “o tema de fundo”, para quem pensa como ela, “há de ser sim revisitado no exercício do controle abstrato de constitucionalidade, vale dizer, nas ADCs”. Traduzindo: “temos de rever essa questão, mas não agora; o momento para rever o entendimento é no julgamento de sua (in)constitucionalidade”. Pois é. O momento chegou. Essa é a hora.
Se a colegialidade, que é nada mais que seguir a maioria, fosse sempre seguida, sequer haveria que se falar em colegialidade; os entendimentos seriam fixados porque fixos, fixos porque fixados. Se houvesse colegialidade irrestrita, Lawrence v. Texas não existiria; o 5-4 de Bowers v. Hardwick seria gravado em pedra ao lado da criminalização da sodomia, e seria eternizada a injustiça do dia em que a Suprema Corte errou.
Rosa Weber sabe disso. Foi por essa razão que sustentou que a ideia de colegialidade quer dizer que os precedentes devem ser revistos em momento oportuno. Pois é. O momento chegou. Essa é a hora.
Quem não acredita na colegialidade deve votar em favor da resposta correta. Quem acredita na colegialidade… também.
De todo modo, digo que, na democracia, não é feio aplicar aquilo que a lei diz. Não nos envergonhemos de aplicar a lei.
Sinonímias epistêmicas são desejáveis na democracia. Bom julgamento a todos. Da Colômbia, estarei torcendo pela Constituição!
Sobre Barroso dizer que STF perderá legitimidade se deferir ADC 44
O Brasil leu a entrevista do ministro Roberto Barroso. Disse ele que se o Supremo Tribunal não “corresponder aos sentimentos da sociedade” — isto é, se não reforçar o entendimento em favor da prisão em segunda instância —, vai acabar por “perder sua legitimidade”.
O problema é que, ainda que estivesse certo, o Ministro Roberto Barroso estaria errado. Porque o Supremo Tribunal não existe para “corresponder aos sentimentos da sociedade”; sua legitimidade não está e nem deve estar subordinada à tônica da “voz das ruas”.
Barroso diz que “[e]stamos falando de optar por um sistema que funciona ou um sistema que não funciona”. Errado, ministro. Estamos falando sobre optar por seguir o Direito ou por abandonar o único critério que sustenta a democracia. Estamos, sim, falando sobre decidir com base em critérios objetivos ou escolher a partir de um vazio epistêmico subjetivista.
O Supremo pode, é verdade, perder sua legitimidade. Mas pode perder sua legitimidade se fizer exatamente o que propõe a tese de Barroso, e capitular em face de um consequencialismo difuso e abstrato. Em 2013, o ministro Marco Aurelio disse o contrário de Barroso: “— Não julgamos para multidões”. Perfeito, ministro Marco Aurelio. Não fosse assim, não precisaria existir o STF. Ele é contramajoritário. E sabem por quê? Porque a Constituição é um remédio contra maiorias.
Só mais uma coisa: fosse verdadeira a tese de que um Tribunal Constitucional deve seguir as maiorias, em qual critério de maioria o ministro Barroso se baseia? Qual é o dado empírico?
Permito-me perguntar: o que é isto – os sentimentos da sociedade? Quem é o seu porta-voz? O STF?
A professora alemã Ingeborg Maus já advertiu de há muito:
O Judiciário não é o superego da sociedade!
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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